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Processo n.º 669/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
(Conselheiro João Cura Mariano)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
A. e B., Limitada, foram condenados no 2.º Juízo do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha, por sentença proferida em 4 de dezembro de 2006, como coautores materiais de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 5 de junho (RGIT), relativo a IVA, nas penas de 150 dias de multa, à taxa de € 4 diários, o que perfaz a multa de €. 600, para cada um dos arguidos, e na mesma pena de 150 dias de multa, à mesma taxa, pelo crime de abuso de confiança fiscal relativo a IRS, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1 e 2, do RGIT.
Em cúmulo foram os arguidos condenados nas penas de 200 dias de multa, à taxa de € 4 para cada um deles, o que perfaz € 800 de multa.
Nos termos do artigo 22.º, do RGIT, dispensou-se de pena o arguido A..
Por despacho proferido em 17 de maio de 2011, considerou-se o arguido A. solidariamente responsável pelo pagamento da multa em que havia sido condenada B., Limitada, nos termos do n.º 7, do artigo 8.º, do RGIT, uma vez que aquele era o gerente desta sociedade na data da prática dos factos, pelos quais ambos foram condenados, sendo que a condenação da sociedade adveio da prática da infração por parte do seu gerente.
A. recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 28 de junho de 2012, negou provimento ao recurso.
O arguido recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nas alíneas b) e g), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
Após convite, apresentou requerimento com o seguinte teor:
«1. Vem o presente recurso da aplicação de normas, ou melhor, da interpretação de normas, cuja inconstitucionalidade oportunamente se invocou, tanto na motivação como nas conclusões de recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa, no qual se finalizou dizendo que:
- “Tem sido entendimento que a aplicação da responsabilidade subsidiária no âmbito de multas e coimas parece ser inconstitucional, como fundamento da violação, entre outros, do princípio da presunção da inocência. Vejamos a título de exemplo,
- (...) “Por isso, a aplicação de sanção a pessoa a quem não pode ser imputada responsabilidade pela sua prática não é necessária para satisfação dos fins que a previsão de sanções tem em vista e, por isso, é constitucionalmente proibida a sua aplicação, por força do preceituado no art. 18.º, n.º 2, da C.R.P. que estabelece o princípio nuclear da necessidade de qualquer restrição de direitos fundamentais” (...)
- (...) “Por outro lado, a própria presunção legal de que a falta de pagamento consubstanciadora da infração fiscal é imputável aos gerentes parece igualmente inconstitucional por inconciliável com a presunção de inocência vigente em matéria sancionatória – artigo 32.º, n.º 2, da Constituição”.
- (...) É, assim, de concluir que, também no domínio do ilícito contraordenacional, se deve aplicar os princípios da intransmissibilidade das coimas e da presunção de inocência, pelo que estas não podem ser exigidas ao revertido, ainda que em termos de responsabilidade subsidiária, nos termos do art. 8º do RGIT”.
- O entendimento de responsabilizar subsidiariamente o gerente de uma sociedade pelo pagamento de uma multa é certamente inconstitucional, pelo que, o de o responsabilizar solidariamente também o será!
- Face ao exposto, considera o ora recorrente ter sido violado entre outros o artigo 8.º do RGIT e o artigo 32.º da CRP.”
2. Com efeito, tem sido esta a posição adotada pelo Supremo Tribunal Administrativo, Acórdão de 04/02/2009, Processo 0829/08, em face da Constituição vigente e dos princípios fundamentais que a ela estão subjacentes.
3. Em face da errónea interpretação legal e consequente errada aplicação, para além de não ter sido administrada a Justiça foi, na prática, violada a Lei Fundamental, designadamente, o disposto no artº 32º da Constituição República Portuguesa.»
Neste Tribunal, o Recorrente apresentou alegações, que concluiu nos seguintes termos:
«1. A questão em apreciação prende-se com a existência de responsabilidade solidária por parte do ora recorrente no pagamento de multa aplicada à sociedade arguida.
2. Pelo Tribunal a quo foi considerado que o ora recorrente deveria ser solidariamente responsável pelo pagamento da multa a que a sociedade foi condenada.
3. No entanto, no ano de 2005 o ora recorrente procedeu à renuncia da gerência, não podendo salvo melhor opinião ser imputada responsabilidade por factos cujo apuramento ocorreu no ano de 2006, sob pena de ser aberto um precedente à (dupla) condenação sem limite de tempo.
4. A considerar possível responsabilizar um gerente de uma sociedade, independentemente da data em que ocorre tal imputação, legítima se torna a possibilidade de reabertura de processos já prescritos.
5. Se o Tribunal a quo tem que atender à data em que ocorre a condenação significa que um facto criminal de origem fiscal ocorrido no ano de 1980 poderá ser agora objeto de impugnação à pessoa que figurava como gerente naquele ano.
6. O entendimento de responsabilizar solidariamente o gerente de uma sociedade pelo pagamento de uma multa é certamente inconstitucional.
7. Com efeito, foi esta a posição adotada pelo Supremo Tribunal Administrativo, Acórdão de 04/02/2009, Processo 0829/08, em face da Constituição vigente e dos princípios fundamentais que a ela estão subjacentes.
8. Face ao exposto consideramos para além de não ter sido administrada a Justiça foi, na prática, violada a Lei Fundamental, designadamente, o disposto no art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa.»
O Ministério Público contra-alegou, pronunciando-se pelo não conhecimento do mérito do recurso.
Notificado para se pronunciar sobre as questões suscitadas pelo Ministério Público, o Recorrente nada disse.
II. Fundamentação
Não conhecimento do recurso
O Recorrente, invocando o disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) e g), da LTC, requereu que fosse julgado inconstitucional o artigo 8.º, do RGIT.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido do recurso não ser conhecido, com fundamento em que o Recorrente não identificou de forma minimamente correta e inequívoca a norma cuja inconstitucionalidade invocava, assim como não indicou qualquer acórdão do Tribunal Constitucional que já a tivesse julgado inconstitucional.
Com inteira razão.
Cumpre afastar, desde logo, a possibilidade do recurso poder ser conhecido nos termos da alínea g), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, uma vez que o Recorrente não indicou qualquer acórdão do Tribunal Constitucional que já houvesse julgado inconstitucional qualquer sentido normativo reportado ao artigo 8.º do RGIT.
Tomando o recurso, face ao disposto na alínea b), do n.º 1, do mesmo artigo 70.º, da LTC, verifica-se que, mesmo após o convite que lhe foi dirigido, o Recorrente persistiu na ausência de indicação, com o mínimo de precisão e clareza, da norma cuja desconformidade constitucional pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Com efeito, o Recorrente escolheu socorrer-se no requerimento de resposta ao convite da transcrição de parte das conclusões da motivação do recurso que dirigiu ao Tribunal da Relação de Lisboa, segmento em que alude tanto à responsabilidade subsidiária como à responsabilidade solidária do gerente de uma sociedade pelo pagamento de multa imposta a essa pessoa coletiva. Termina esse segmento transcrito pela infração do artigo 32.º da Constituição, com referência ao artigo 8.º do RGIT.
Ora, e como bem refere o Ministério Público, o artigo 8.º do RGIT acolhe essas duas formas de responsabilidade do gerente em segmentos normativos distintos – a responsabilidade subsidiária mostra-se prevista no n.º 1, enquanto a responsabilidade solidária encontra sede no n.º 7 do preceito – sem que se denote do impulso formulado pelo recorrente qual o sentido normativo cuja solvência constitucional coloca em crise.
Por outro lado, verifica-se do segmento transcrito que o recorrente avança conjuntamente com a violação de parâmetros constitucionais e legais e não com a ilegitimidade constitucional do preceituado no artigo 8.º do RGIT, face ao artigo 32.º da Constituição. Assim decorre do remate: «considera o ora recorrente ter sido violado entre outros o artigo 8.º do RGIT e o artigo 32.º da CRP».
Não se pode, então, extrair das conclusões transcritas, com o mínimo de certeza, e em termos compatíveis com o princípio do pedido, qual o sentido normativo que o Recorrente pretende ver fiscalizado: a responsabilidade subsidiária do gerente, nos termos do n.º 1, do artigo 8.º do RGIT; a responsabilidade solidária, nos termos do n.º 7 do preceito, sendo certo que a ratio decidendi do Acórdão recorrido assentou apenas nesta última forma de responsabilidade do gerente; ou, por fim, a correção da afirmação de responsabilidade do gerente perante o ordenamento infraconstitucional.
Acresce que o remanescente conteúdo do requerimento apresentado pelo Recorrente não permite ultrapassar a apontada ambiguidade.
O Recorrente alude a Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 4 de fevereiro de 2009, em que se recusou a aplicação, por inconstitucional, do artigo 8.º, n.º 1, do RGIT, relativo à responsabilidade subsidiária pelo pagamento de multas e coimas. Porém, logo de seguida, reitera queixa de «errónea interpretação legal e consequente errada aplicação», denotando novamente a pretensão de ver fiscalizada a correção do percurso subsuntivo efetuado pelo Tribunal a quo perante o direito infraconstitucional – o que escapa ao controlo do Tribunal Constitucional -, e não a compatibilidade constitucional de sentido normativo pelo mesmo empregue como determinante do julgado.
Assim, por inidoneidade do objeto delimitado pelo requerimento formulado pelo recorrente, também face à alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, cumpre proferir decisão de não conhecimento do recurso.
III. Decisão
Nestes termos decide-se:
a) Não conhecer do recurso apresentado pelo Recorrente A.;
b) Condenar o recorrente nas custas, que se fixam, de acordo com os critérios seguidos e a dimensão do impulso exercido, em 12 (doze) unidades de conta.
Lisboa, 10 de abril de 2013. – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete (vencido, pelo essencial das razões invocadas na declaração do Senhor Conselheiro Cura Mariano) – João Cura Mariano (vencido pelas razões que constam da declaração que junto) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergi da decisão de não conhecimento do recurso por entender que era perceptível qual a norma, cuja constitucionalidade o Recorrente pretendia ver fiscalizada com a interposição do presente recurso.
Se é verdade que o requerimento de interposição apresentado pelo arguido, já em resposta a um convite à correção do inicialmente junto, não prima pelo rigor nem pela clareza, apesar disso, é possível identificar, com o mínimo de certeza, que o Recorrente pretende a fiscalização de constitucionalidade da norma contida no n.º 7, do artigo 8.º, do RGIT, quando aplicável a gerente de uma pessoa coletiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infração tributária, tal como já o havia denunciado nas alegações dirigidas ao Tribunal recorrido.
Embora se refira sempre ao artigo 8.º, do RGIT, sem distinção entre os seus números, ao referir-se à inconstitucionalidade da responsabilização solidária do gerente pelo pagamento de uma multa da sociedade, situação que havia ocorrido no caso sub iudice, só poderia querer referir-se ao n.º 7 desse preceito legal, uma vez que só ele contempla esse tipo de responsabilidade.
E a referência à posição do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 4 de fevereiro de 2009 que julgou inconstitucional o artigo 8.º, n.º 1, do RGIT, relativo à responsabilidade subsidiária pelo pagamento de multas e coimas, é apenas efetuada como argumento de identidade de razão, como resulta da seguinte expressão: “o entendimento de responsabilizar subsidiariamente o gerente de uma sociedade pelo pagamento de uma multa é certamente inconstitucional, pelo que, o de o responsabilizar solidariamente também o será”.
Por isso, entendi que era possível restringir o objeto do recurso à constitucionalidade da norma constante do n.º 7, do artigo 8.º, do RGIT, quando aplicável a gerente de uma pessoa coletiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infração tributária, interpretando-se nestes termos o pedido deduzido pelo Recorrente.
E conhecendo do mérito do recurso julgaria inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, a referida norma, tal como já o fez o Acórdão n.º 1/2013 deste Tribunal, julgando-o procedente.
João Cura Mariano