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Processo n.º 172/13
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 155/2013:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e B. e recorrida C., S.A., foi interposto recurso, em 14 de janeiro 2013 (fls. 538), ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição e da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido, em conferência, pela 7ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 18 de outubro de 2012 (fls. 485 a 496), posteriormente confirmado por acórdão proferido pelo mesmo Tribunal e Secção, em 18 de dezembro de 2012 (fls. 532 e 533), que indeferiu reclamação deduzida, pelos recorrentes, relativamente ao primeiro acórdão.
Pretendem os recorrentes que seja apreciada a constitucionalidade “do disposto no art.º 13º n.º 2 da EUP, artigos 1129.º e 1152.º do C. Civil, pois são violadores do princípio constitucional do direito à habitação ínsito no disposto no art. 65.º da C.R.P.” (fls. 538).
Tudo visto, importa apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do Relator junto do tribunal “a quo”, proferido em 30 de janeiro de 2013 (cfr. fls. 552), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator verifique que não foram preenchidos os pressupostos de interposição de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Desde logo, por força do artigo 79º-C da LTC, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer de normas jurídicas (ou de interpretações delas extraídas) que tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos. Ora, da análise da decisão recorrida resulta que a mesma não aplicou nem o artigo 1129º, nem o artigo 1152º do Código Civil (CC) como fundamento determinante do juízo proferido. Não aplicou o artigo 1129º do CC – que se limita a uma mera qualificação legal do “contrato de comodato” – porque rejeitou o entendimento de que o gozo do imóvel que pertence à recorrida, por parte dos recorridos, se traduzisse num “contrato de comodato”. Por outro lado, também não pode afirmar-se que o artigo 1152º do CC tenha constituído a “ratio decidendi” da decisão recorrida, já que o mesmo se limita, mais uma vez, a dar uma mera qualificação legal do “contrato de trabalho”.
Como resulta evidente da decisão recorrida, a verdadeira razão determinante resulta da configuração da posição jurídica dos recorrentes como simples detentores do imóvel, ao abrigo da alínea b) do artigo 1253º do CC, “por ato de mera tolerância da parte da A” (fls. 495).
Acresce ainda que os recorrentes pretendiam que fosse apreciada a constitucionalidade do “art.º 13 n.º 2 da EUP” (fls. 538), sem identificarem a que diploma legal o mesmo se refere. Ainda assim, após uma análise da decisão recorrida, resulta que aquela abreviatura (“EUP”) corresponde ao “Regulamento de Postos de Trabalho em Estaleiros de Centros Electroprodutores e Energia Elétrica”, aprovado pelo Despacho n.º 61/81, do Conselho de Gerência da recorrida e integrado no Estatuto Unificado do Pessoal da C., S.A. (fls. 137 a 144), que corresponde a um regulamento interno daquela empresa, que hoje assume a natureza de pessoa coletiva privada. Evidentemente, aquele regulamento interno visa regular as relações jurídico-laborais entre a recorrida e os seus trabalhadores – incluindo o ora recorrente –, não assumindo a natureza de norma jurídico-pública. Além disso, não se entende que a mesma preencha os requisitos exigidos a um “conceito funcional de norma”, designadamente uma imperatividade específica proveniente de uma pessoa jurídica colocada numa posição de particular exercício de poderes de supremacia jurídica face a outro contratante.
Não preenchendo esse “conceito funcional de norma”, fica precludida a possibilidade de conhecimento do objeto também quanto a essa parte.
4. A título meramente subsidiário, diga-se ainda que, mesmo que se admitisse a natureza de “norma (funcionalmente) jurídico-pública” daquele preceito do regulamento interno da recorrida – o que não se admite e por mera exaustão de fundamentação se pondera – sempre se diria que os recorrentes nunca suscitaram a inconstitucionalidade normativa desse preceito regulamentar ou de qualquer outro preceito legal. Pelo contrário, limitaram-se a invocar, de modo genérico, o seu (alegado) direito à habitação, com vista a opor resistência ao abandono do imóvel que é propriedade da recorrida, sem imputarem qualquer inconstitucionalidade a uma específica norma jurídica (cfr. fls. 415 e 416, das alegações de recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça).
III – DECISÃO
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto do presente recurso.
Custas devidas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformados com a decisão proferida, os recorrentes vieram deduzir reclamação, cujos termos ora se resumem:
«Sempre com o devido e muito respeito, que é muito, pela Exma. Doutora Juíza Consª Relatora, é intenção do presente recurso demonstrar a tremenda injustiça que sofreram os recorrentes com a d. decisão sumária que foi proferida no âmbito do processo supra referido.
Com efeito, foi decidido não conhecer do objeto do recurso, por vários motivos que os recorrentes não concordam.
Desde logo, pelo facto de o Tribunal Constitucional apenas poder conhecer de normas jurídicas (onde interpretações delas extraídas) que tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos.
Ora, ao contrário da decisão recorrida, entendem os reclamantes que no caso em apreço, ao ter sido aplicada a norma do artigo 1152º do C. Civil, foi violado o disposto no artigo 65º, nº 1 da C.R.P. que preconiza o direito à habitação: “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e confronto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
Acresce ainda que, mesmo que assim não se entenda, sempre o Tribunal poderia fazer uso da segunda parte do disposto no artigo 79º-C da LTC – “… mas pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada” – isto é, independentemente de qualquer invocação de ilegalidade de normas ou princípios reclamantes.
Por outro lado, julgámos que a natureza da norma, eventualmente jurídica-privada constante no artigo 13º nº 2 do Regulamento de Postos de Trabalho em Estaleiros de Centros Electroprodutores e Energia Elétrica, aprovado pelo despacho nº 61/81, do Conselho de Gerência da recorrida e integrado no estatuto Unificado do Pessoal da C., S.A. não é determinante para o não conhecimento do objeto do recurso, por não se tratar do “conceito funcional de norma”.
Isto porque, de acordo com o princípio da constitucionalidade todos os atos devem ser material e formalmente conformes à Constituição independentemente da sua natureza.
E, por último, pela mesma razão já enunciada quanto ao disposto no artigo 79º-C da LTC, também o Tribunal Constitucional poderia conhecer do objeto do recurso quanto a esta norma – artigo 13º nº 2 da EUP, por aplicação da segunda parte daquele dispositivo legal.
Termos em que, nos termos expostos e nos melhores de direito e com sempre o mui douto suprimento de V. Exas. deve ser considerada procedente a presente reclamação e, afinal decidir-se pelo conhecimento do objeto do recurso.» (fls. 563 a 565)
3. Notificada para o efeito, a recorrida deixou esgotar o prazo de resposta, sem que viesse aos autos apresentá-la.
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Em primeiro lugar, o reclamante procura extrair do artigo 79º-C, in fine, da LTC, uma legitimação para que o Tribunal Constitucional conheça de questões normativas que não tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos. Ora, a referência daquela norma processual à circunstância de que “pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada” apenas significa que este Tribunal pode julgar uma norma inconstitucional, ainda que com fundamentos distintos daqueles invocados pelo recorrente. Porém, cingindo-se à norma especificamente identificada como objeto do recurso (e efetivamente aplicada pela decisão recorrida). Não tendo a decisão recorrida aplicado efetivamente qualquer norma extraída dos artigos 1129º e 1152º do Código Civil (CC) – este último, que se limita a fixar uma definição legal de “contrato de trabalho” –, não pode este Tribunal conhecer da inconstitucionalidade de outras normas que não tenham sido expressamente fixadas como objeto do presente recurso.
Em segundo lugar, o reclamante afirma que o “princípio da constitucionalidade” imporia a conformidade (direta) de todos os atos – incluindo os de natureza jurídico-privada –, com a Constituição, razão pela qual seria admissível fiscalizar a constitucionalidade do artigo 13º, n.º 2, do Regulamento de Postos de Trabalho em Estaleiros de Centros Electroprodutores e Energia Elétrica, aprovado pelo Despacho n.º 61/81, do Conselho de Gerência da C..
Ainda que se admitisse estar preenchido o “conceito funcional de norma” – o que é duvidoso, conforme já demonstrado pela decisão reclamada –, a reclamação ora deduzida não consegue ultrapassar, em momento algum, a constatação de que a inconstitucionalidade do artigo 13º, n.º 2, do referido regulamento, nunca foi suscitada, de modo processualmente adequado, perante o tribunal recorrido, em devido tempo.
Em suma, o modo como o reclamante configurou a presente reclamação apenas acentua as fragilidades já apontadas pela decisão sumária ora reclamada ao requerimento de interposição de recurso, pelo que se confirma a impossibilidade de conhecimento do objeto do referido recurso.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 29 de maio de 2013. – Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.