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Proc. nº 115/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em processo de contra-ordenação que correu termos na Câmara Municipal da Póvoa de Varzim foi aplicada a M... a coima de 30.000$00 pela prática de um ilícito contra-ordenacional previsto no artigo 24º, nº 2, da Postura Sanitária sobre Lixos da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, aprovada pela Câmara Municipal em 11 de Novembro de 1986 e pela Assembleia Municipal em 6 de Março de
1987.
Não se conformando com tal decisão, o arguido impugnou-a perante o Tribunal Judicial da Comarca da Póvoa de Varzim, invocando a inconstitucionalidade formal da norma com base na qual tinha sido condenado, por não constar da referida Postura Sanitária qualquer menção à lei habilitante.
O Tribunal Judicial da Comarca da Póvoa de Varzim, por sentença de
24 de Novembro de 2000 (fls. 33 e seguintes), concedeu provimento ao recurso, julgando formalmente inconstitucional a mencionada Postura Sanitária, por não conter a indicação da lei habilitante, em violação da exigência estabelecida pelo nº 7 do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa, na versão vigente ao tempo em que tal Postura fora aprovada.
2. Da sentença foi interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, pela representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca da Póvoa de Varzim, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, para apreciação da constitucionalidade da Postura Sanitária sobre Lixos, em vigor no Município da Póvoa de Varzim.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 38.
3. Nas alegações que apresentou, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
'1º- Não constando da Postura Sanitária sobre Lixos, em vigor no Município da Póvoa de Varzim, qualquer referência às normas legais que definem a competência objectiva e subjectiva para a sua emissão pelos órgãos autárquicos, padece o dito regulamento de inconstitucionalidade formal, por violação da exigência constante do actual nº 8 do artigo 112º da Constituição da República Portuguesa.
2º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
O recorrido M... não apresentou alegações.
II
4. O presente recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade das normas que proíbem e punem como contra-ordenação a actividade de 'despejar entulhos de construção civil em qualquer terreno privado, sem prévio licenciamento municipal e consentimento do proprietário', constantes da Postura Sanitária sobre Lixos da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, aprovada pela Câmara Municipal em 11 de Novembro de 1986 e pela Assembleia Municipal em 6 de Março de 1987, que o Tribunal Judicial da Comarca da Póvoa de Varzim julgou formalmente inconstitucionais, por violação do artigo
115º, nº 7, da Constituição da República Portuguesa, e que, nos termos do artigo
204º da Constituição, se recusou a aplicar.
5. Dispunha o artigo 115º, nº 7, da Constituição da República Portuguesa, na versão de 1982, vigente ao tempo em que a Postura Sanitária em apreciação foi aprovada: 'Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão'.
Sobre o sentido e alcance do mencionado preceito constitucional
(cujo texto se mantém desde a Lei Constitucional nº 1/82 e que hoje consta do artigo 112º, nº 8), disse este Tribunal no acórdão nº 76/88 (Diário da República, I Série, nº 93, de 21 de Abril de 1988, p. 1547 ss):
'É, pois, claro, [...] que abrangidos pela regra bidireccional do nº 7 do artigo
115º da Constituição da República Portuguesa estão todos os regulamentos, nomeadamente os que provenham do Governo [...] e dos órgãos próprios das autarquias locais [...]. Todos esses regulamentos, de um ou de outro modo, estão umbilicalmente ligados a uma lei, à lei que necessariamente precede cada um deles, e que, por força do disposto no nº 7 do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa, tem de ser obrigatoriamente citada no próprio regulamento. O papel dessa lei precedente – di-lo o nº 7 do artigo 115º – não é sempre o mesmo. Umas vezes a lei a referir é aquela que o regulamento visa regulamentar. Será esse o caso dos regulamentos de execução stricto sensu ou dos regulamentos complementares. Outras vezes a lei a indicar é a que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão. De facto, no exercício do poder regulamentar têm de ser respeitados diversos parâmetros, e assim é que «cada autoridade ou órgão só pode elaborar os regulamentos para cuja feitura a lei lhe confira competência, não podendo invadir a de outras autoridades ou órgãos (competência subjectiva)» e nessa «feitura deverá visar-se o fim determinante da atribuição do poder regulamentar (competência objectiva)» – Afonso Rodrigues Queiró, «Teoria dos regulamentos», Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, nºs 1-2-3-4, p.
19. A necessidade de citação dessa lei definidora da competência, subjectiva e objectiva da autoridade ou órgão que emite o regulamento, verificar-se-á designadamente no caso dos regulamentos autónomos.'
A exigência de indicação da lei habilitante formulada pelo artigo
115º, nº 7, da Constituição da República Portuguesa (actual artigo 112º, nº 8) tem, assim, como objectivo, por um lado, disciplinar o uso do poder regulamentar, obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, se podem ou não emitir determinado regulamento, e, por outro lado, garantir a segurança e a transparência jurídicas, dando a conhecer aos destinatários o fundamento do poder regulamentar.
Como este Tribunal disse no acórdão nº 357/99 (Diário da República, II Série, nº 52, de 2 de Março de 2000, p. 4255), 'não impõe a lei constitucional que a indicação da lei definidora da competência conste de um qualquer trecho determinado do Regulamento'. A Constituição exige todavia que a menção seja 'expressa', recusando deste modo a legitimidade de referências meramente implícitas à base legal autorizante.
Ora, a Postura Sanitária sobre Lixos da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, aprovada pela Câmara Municipal em 11 de Novembro de 1986 e pela Assembleia Municipal em 6 de Março de 1987 (cujo texto integral consta de fls.
26 a 32 destes autos), não se refere nem directa nem indirectamente à lei que visa regulamentar ou que define a competência do órgão autárquico para a sua emissão.
É deste modo patente a inconstitucionalidade formal desta Postura Sanitária, por violação do disposto no artigo 115º, nº 7, da Constituição da República Portuguesa (versão de 1982).
E, tal como refere o Ministério Público nas suas alegações, 'a circunstância de se tratar de um regulamento autónomo não dispensa o cumprimento do dever de citação da lei habilitante, imposto pelo nº 8 do artigo 112º da Constituição relativamente a todos os regulamentos: na verdade, tratando-se de regulamentos autónomos, deverão conter indicação – não da lei que directamente executam – mas das que definem a competência objectiva e subjectiva para a sua emissão'.
III
6. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere ao julgamento de inconstitucionalidade.
Lisboa, 10 de Julho de 2001- Maria Helena Brito Artur Maurício Vìtor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa