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Processo n.º 152/12
Plenário
Relator: Conselheiro José Cunha Barbosa
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
O Provedor de Justiça veio requerer a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma «…do artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho, (…) por violação da norma por sua vez constante do artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, enquanto corolário do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Lei Fundamental».
Fundamentou o pedido, em essência e síntese, alegando o seguinte:
O Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho, veio proceder a nova alteração do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º l39-A/90, de 28 de abril.
O diploma em causa, que teve essencialmente em vista garantir uma efetiva avaliação do desempenho docente e a valorização do mérito, terminou com a divisão da carreira docente nas categorias de professor e de professor titular, voltando a carreira docente a estruturar-se numa única categoria, e estabeleceu regras de transição e de reposicionamento na carreira.
Dessas regras resulta o seguinte:
Os docentes, que, à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 75/2010, isto é, em 24 de junho de 2010, fossem detentores da categoria de professor titular e estivessem posicionados no índice 245 há mais de 4 anos mas há menos de 5, foram reposicionados, nessa mesma data, no índice 272, desde que preenchidos certos requisitos cumulativos relativos à avaliação do desempenho, ou seja, desde que 'tenham obtido no ciclo de avaliação do desempenho de 2007-2009 no mínimo a menção qualitativa de Bom' e 'tenham obtido na última avaliação do desempenho efetuada nos termos do Decreto Regulamentar n.º 11/98, de 15 de maio, classificação igual ou superior a Satisfaz' (art.° 7.º, n.º 2, alínea b)).
Por sua vez, os docentes, detentores da categoria de professor titular ou não, que, naquela mesma data estivessem posicionados no índice 245 há mais de 5 anos mas há menos de 6 anos e preenchessem precisamente os mesmos requisitos relativos à avaliação do desempenho, seriam posicionados no índice 299, mas o seu reposicionamento no índice 299 foi diferido para o momento em que completassem a antiguidade de 6 anos (art.° 8.°, n.º 1).
Assim sendo, ao contrário do que sucede com os docentes abrangidos pelo art° 7.º, n.º 2, alínea b), com menos tempo de posicionamento no escalão 245, o reposicionamento dos docentes a que se refere o art.° 8.°, n.º 1, não ocorre no momento da entrada em vigor do diploma mas em momento posterior, concretamente no momento em que venham a perfazer 6 anos de tempo de serviço no referido índice 245 (art.° 8.°, n.º 1, alínea a). E até tal facto ocorrer, resulta a contrario das normas aplicáveis à situação que os docentes abrangidos pela previsão do art.° 8.°, n.º 1, se manterão naquele mesmo índice 245.
A conjugação das soluções legais explicitadas levou a que docentes com mais tempo de serviço no escalão correspondente ao índice 245, concretamente com um tempo de serviço entre os 5 e os 6 anos, preenchendo os mesmíssimos requisitos funcionais previstos na lei - concretamente detendo a categoria de professor titular e tendo obtido as mesmas classificações no âmbito da avaliação do desempenho - tenham sido ultrapassados no posicionamento na carreira, logo no momento da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 75/2010, por docentes com menos tempo de serviço nesse mesmo escalão, isto é, com tempo de serviço entre os 4 e os 5 anos.
De facto, segundo o Decreto-Lei n.º 75/2010, um professor titular que, em 24 de junho de 2010, estivesse nas condições a que se refere o seu art.° 8.°, n.º 1, isto é, estivesse posicionado no índice 245 há mais de 5 anos mas há menos de 6 anos, deveria manter-se posicionado naquele mesmo índice até ao momento em que viesse a completar 6 anos de serviço nesse escalão.
Por seu turno, um professor titular que, na mesma data, isto é, em 24 de junho de 2010, estivesse nas condições a que se refere o art.° 7, n.º 2, alínea b), do diploma, isto é, estivesse posicionado no mesmo índice 245 mas há menos tempo, concretamente há mais de 4 anos mas há menos de 5 anos, foi, naquela mesma data, posicionado no índice 272 (desde que preenchidos os mesmíssimos requisitos de mérito previstos para os professores titulares que se enquadram na previsão do art.° 8.°, n.º 1).
Deste modo, os professores titulares a que se refere o art.° 8.°, n.º 1, do Decreto- Lei n.º 75/2010, cumprindo na íntegra os demais requisitos de ordem substantiva, com mais tempo de serviço no escalão a que corresponde o índice 245 (entre 5 e 6 anos), foram, na data da entrada em vigor do diploma, isto é, em 24 de junho de 2010, automaticamente ultrapassados, em termos remuneratórios, pelos professores titulares a que se refere o art.° 7.º, n.º 2, alínea b), com menos tempo de permanência (entre 4 e 5 anos) no mesmo escalão 245.
Poder-se-ia aduzir que a norma consubstanciada no artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 75/2010, se revelaria idónea para evitar a distorção apontada, uma vez que veda a possibilidade de, na transição para a nova estrutura da carreira docente, ocorrerem ultrapassagens de docentes em relação ao posicionamento anterior nos escalões da carreira por docentes que, no momento da sua entrada em vigor, tivessem menos tempo de serviço nos escalões em que se posicionavam.
Tal significaria, à partida, que uma interpretação conjugada das normas dos artigos 7.º, n.º 2, alínea b), 8.°, n.º 1, e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 75/20 10, imporia que, na prática, os professores titulares abrangidos pela previsão do art.° 8.°, n.º 1, fossem, à data da entrada em vigor do diploma, isto é, em 24 de junho de 2010, pelo menos posicionados igualmente no índice 272, isto sem prejuízo do ulterior reposicionamento no índice 299, quando ocorresse a condição a que alude a alínea a) do n.º 1 do art.° 8.º
Não é esta, no entanto, de acordo com as dezenas de queixas dirigidas aos Provedor de Justiça, a interpretação, e consequente aplicação, que a Administração faz a norma, tendo mantido, e mantendo ainda, os docentes abrangidos pela previsão do art.° 8.°, n.º 1, do Decreto-Lei em causa no índice 245.
Sucede, além disso, que o reposicionamento que estava previsto no artigo 8.º, n.º 1, ao fim de seis anos, e que se antevia pois como verificado no prazo máximo de um ano após a entrada em vigor do diploma original, ficou entretanto prejudicado com a proibição das valorizações do posicionamento remuneratório, nos termos estabelecidos pelo artigo 24.º, n.ºs 1, 2 e 9 do Orçamento do Estado para 2011 e mantida pelo artigo 2.º, n.ºs 1 e 5 do Orçamento do Estado para 2012.
Assim sendo, os docentes abrangidos pela previsão do art.° 8.°, n.º 1, do Decreto- Lei n.º 75/2010, que, por aplicação da respetiva alínea a), seriam reposicionados no índice 299 entre 1 de janeiro e 23 de junho de 2011, mantêm-se, até ao momento e pelo menos até idêntica data no decurso do ano de 2013, posicionados no índice 245.
Conclui-se, assim, que por força da aplicação das regras de transição previstas no Decreto-Lei n.º 75/2010 acima mencionadas, os docentes inseridos na previsão do art.° 8.°, n.º 1, foram, na data da entrada em vigor do diploma, isto é, em 24 de junho de 2010, ultrapassados, na sua progressão na carreira, por docentes com menos tempo de serviço no escalão em que todos se encontravam, situação que foi perpetuada, até à presente data, por força da vigência das normas citadas constantes das Leis do Orçamento do Estado para 2011 e 2012.
Ora, tal situação mostra-se contrária ao princípio da igualdade, na perspetiva de “salário igual para trabalho igual” (decorrente do art.° 58.º, n.º 1, alínea a), da Lei Fundamental, enquanto corolário do princípio da igualdade consagrado genericamente no artigo 13.º da Constituição).
A circunstância de a lei permitir que trabalhadores em funções públicas com mais tempo de serviço sejam ultrapassados em termos remuneratórios por trabalhadores com menos tempo de serviço, provocando-se as chamadas inversões de posições remuneratórias, tem vindo, aliás, a ser censurada pelo Tribunal Constitucional em já ampla jurisprudência sobre a matéria, de que constituem exemplo os seus acórdãos n.ºs 323/2005 e 405/2003.
2. O Primeiro-Ministro, em representação do Governo enquanto órgão autor da norma, apresentou alegações, nas quais, respondendo ao pedido formulado, invocou, em essência e síntese, o seguinte:
O Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho, veio realizar uma reforma relevante no Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 139-A/90, de 28 de abril.
Um dos aspetos mais significativos da reforma operada pelo referido decreto-lei foi o termo da dualidade de categorias da carreira: professor e professor titular, tendo isso implicado o ajustamento dos escalões de remuneração para a categoria única assim criada e a necessidade de regular a transição dos docentes abrangidos para a nova definição de índices remuneratórios.
Estabeleceu-se como regra geral que a transição, independentemente da categoria, se faria para o índice a que corresponda o montante pecuniário de remuneração base idêntico ao que anteriormente auferiam (cfr. o artigo 7.°, n.º 1)
Só que, com o intuito de compensar os docentes que haviam transitado para a anterior categoria de professor titular, dadas as provas a que se sujeitaram, foram estabelecidas exceções à referida regra geral de que relevam três.
A primeira foi a que determinou que os professores titulares que estivessem no escalão 245 há mais de quatro anos e há menos de cinco, à data de início de vigência do diploma, e mediante certos requisitos de desempenho, transitariam, naturalmente na nova categoria única de professor, para o índice 272.
A segunda foi a que determinou que os docentes que estivessem no índice 245 há mais de seis anos, professores titulares ou não, e sob os mesmos pressupostos, transitariam para o índice 299 da nova categoria única.
A terceira, por fim, foi a que determinou que os docentes que estivessem há mais de cinco anos e a menos de seis no índice 245, também professores titulares ou não, e igualmente sob os mesmos pressupostos, transitariam para o índice 299 dessa nova categoria única.
Todavia, neste último caso, e ao contrário dos dois anteriores, a transição não operava no exato momento do início de vigência do Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho, mas, diferentemente, quando os referidos docentes perfizessem os seis anos de tempo de serviço no referido índice 245.
Como é logo visível, a diferença no momento em que a transição se efetuava o início da vigência, por um lado, e o momento de cumprimento dos seis anos de tempo de serviço, por outro criou logo um «problema de «ultrapassagem» entre os docentes abrangidos pela primeira exceção e os docentes abrangidos pela terceira exceção.
De facto, os primeiros transitariam logo no dia 24 de junho de 2010 para o índice 272, enquanto os últimos ficariam nesse mesmo índice 245.
É verdade, que progressivamente, ao longo do ano imediato ao início de vigência, passariam para o índice 299, mas até esse momento ficavam no índice 245.
A situação torna-se mais grave, como é apontado no requerimento do Provedor de Justiça, pois as Leis dos Orçamentos de Estado para 2011 e 2012 impediram quaisquer valorizações remuneratórias, abrangendo o caso, para o que agora interessa, dos professores abrangidos pela terceira exceção: os que apenas passam para o índice 299 quando perfizerem seis anos de tempo de serviço no índice 245.
Daqui parece decorrer que, à luz do Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho, nada impediria que tivéssemos professores titulares com quatro anos de serviço no índice 245 a 24 de junho de 2010 a serem remunerados, hoje, pelo índice 272 e, ao mesmo tempo, professores titulares com mais de cinco anos de serviço no índice 245, a 24 de junho de 2010, a serem remunerados, ainda hoje, pelo índice 245.
À primeira vista, parece ser uma situação clara de ultrapassagem, que justificará a inconstitucionalidade alegada.
Sucede, porém, que o Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho, não permite tal ultrapassagem, sendo claro o seu artigo 10.º ao determinar que, com a transição para o novo regime, 'não podem ocorrer ultrapassagens de posicionamento nos escalões da carreira por docentes que, no momento da entrada em vigor do presente decreto Lei, tivessem menos tempo de serviço nos escalões'.
Ora os pressupostos de aplicação deste artigo 10.º, cuja função é tão-só corrigir os possíveis defeitos que resultem da articulação das normas de transição para diferentes escalões remuneratórios, como o artigo 7.º, n.º 2, alínea b) e o artigo 8.º, n.º 1, são cabalmente preenchidos na situação presente.
E isto implica, necessariamente, que, a 24 de junho de 2010, e como efeito direto do artigo 10.°, n.º 1, os docentes da terceira exceção, ou seja, os docentes que não completavam logo aí seis anos de tempo de serviço no escalão, passaram imediatamente para o índice 272.
Apesar dessa passagem imediata para o índice 272 não resultar, desde logo, do artigo 8.°, n.º 1, ela resulta, claramente, do n.º 1 do artigo 10.º, cuja função normativa é, apenas e tão só, essa.
Assim, não há, juridicamente, qualquer «ultrapassagem»: os professores titulares com mais de quatro anos e menos de cinco, a 24 de junho de 2010, passaram logo para o índice 272, tal como os professores (titulares ou não) com mais de cinco anos e menos de seis também passaram, logo a 24 de junho de 2010, para o índice 272.
Os primeiros, por efeito da norma da alínea b) do n.º 2, do artigo 7.°; os segundos, embora em transição para o índice 299 (ao abrigo do artigo 8.°, n.º 1), por efeito da norma do n.º 1 do artigo 10.º e, logo, com efeitos a partir do dia 24 de junho de 2010.
Não o reconhecer é, pura e simplesmente, não aplicar o artigo 10.º, n.º 1.
A norma do artigo 8.°, n.º 1, é pois totalmente compatível com o artigo 59, n.º 1, alínea a), da Constituição quando, por efeito da norma do artigo 10.°, n.º 1, os docentes aí abrangidos são considerados como tendo transitado para o índice 272, no dia 24 de junho de 2010, não havendo assim «ultrapassagem».
Por isso, independentemente de aqueles docentes virem ou não, posteriormente, a transitar para o índice 299, não é posto em causa o princípio segundo o qual salário igual deve corresponder salário igual.
3. Debatido o memorando apresentado pelo Presidente e fixada a orientação do Tribunal sobre a questão a resolver, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
II. Fundamentação
4. O Provedor de Justiça, no uso da competência prevista no artigo 281.°, n.º 2, alínea d), da Constituição, vem requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade da norma contida no artigo 8.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho, pedindo que se declare a sua inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
O mencionado preceito apresenta a seguinte redação:
Artigo 8.º
Regime especial de reposicionamento indiciário
1 - Os docentes que, à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, estejam, independentemente da categoria, posicionados no índice 245 há mais de cinco anos e menos de seis para efeitos de progressão na carreira, são reposicionados no índice 299 de acordo com as seguintes regras cumulativas:
a) No momento em que perfizerem seis anos de tempo de serviço no índice para efeitos de progressão na carreira;
b) Tenham obtido no ciclo de avaliação do desempenho de 2007-2009 no mínimo a menção qualitativa de Bom;
c) Tenham obtido na última avaliação do desempenho efetuada nos termos do Decreto Regulamentar n.º 11/98, de 15 de maio, classificação igual ou superior a Satisfaz.
Esta norma constitui, portanto, o objeto do pedido formulado, devendo, em consequência, sobre ela ser formulado o respetivo juízo de (in)constitucionalidade.
Vejamos.
5. Entende o Provedor de Justiça que, tendo em vista o disposto no artigo 7.°, n.º 2, alínea b), Decreto-Lei n.º 75/2010, o artigo 8.º, n.º1 do mesmo diploma, viola o princípio da igualdade da remuneração laboral consignado no artigo 59.°, n.º 1, alínea a), da Constituição, enquanto concretização específica do princípio fundamental da igualdade consagrado, em termos globais, no artigo 13.º da mesma Constituição.
O artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição consagra o direito a uma 'justa retribuição do trabalho' o qual implica exigências de igualdade, isto é, que 'a trabalho igual em quantidade, natureza e qualidade deve corresponder salário igual' e, naturalmente também, que a trabalho diferente, em função da sua quantidade, natureza e qualidade, deve corresponder um salário diferente (ver Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, 4ª ed, Coimbra 2007, Vol. I, p. 772 e seg.). Mas o que não deve suceder, à luz destas exigências de igualdade, é que se faça corresponder a uma prestação de trabalho essencialmente igual (nomeadamente do ponto de vista da sua natureza, da sua quantidade ou das qualificações, experiência e desempenho de quem o presta) remunerações diferentes. Menos ainda se poderão admitir remunerações diferentes relativamente a prestações de trabalho essencialmente iguais sob todos os pontos de vista, salvo em termos tempo de serviço, estabelecendo uma remuneração mais baixa para quem tem mais tempo de serviço face a quem tem menos tempo de serviço, apenas por esse único facto. Na verdade, 'o princípio trabalho igual salário igual proíbe que se pague de maneira diferente sem que exista «justificação ou fundamento material bastante» (…). Assim, numa relação de emprego público, não havendo razões de mérito a justificar a diferenciação, não é admissível que funcionários mais antigos na mesma categoria aufiram uma remuneração inferior à de outros de menor antiguidade e idênticas qualificações (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra 2010, p. 1152).
Com efeito, sendo o tempo de serviço, por regra, um fator potenciador de maior conhecimento prático e maior capacidade de desempenho profissional, ele poderá ser mais ou menos valorizado, mas não poderá obviamente ser por si só negativamente valorado em termos de prestação de trabalho e, consequentemente, de remuneração. Mais tempo de serviço não pode pois significar só por si e em si, sem qualquer outra justificação ou fundamento, menos remuneração. Tal estaria em flagrante contradição com o princípio de que 'a trabalho igual em natureza, qualidade e quantidade deve corresponder salário igual'.
Constitui jurisprudência uniforme e constante deste Tribunal, que são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade da remuneração laboral (consignado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), como decorrência do princípio fundamental da igualdade a que genericamente se refere o artigo 13.º da Constituição), as normas do regime da função pública que conduzam a que funcionários mais antigos numa dada categoria passem a auferir remuneração inferior à de outros com menor antiguidade e idênticas habilitações, por virtude de reestruturações de carreiras ou de alterações do sistema retributivo em que interfiram fatores anómalos, de circunstância puramente temporal, estranhos à equidade interna e à dinâmica global do sistema retributivo e sem relação com a natureza do trabalho ou com as qualificações, a experiência ou o desempenho dos funcionários confrontados. O Tribunal considera, portanto, inconstitucionais as situações em que funcionários de maior antiguidade são 'ultrapassados ' no escalão remuneratório por funcionários de menor antiguidade, apenas por virtude da entrada em vigor de uma nova lei, sem qualquer justificação, nomeadamente, em termos de natureza ou qualidade do trabalho. São neste sentido, em especial, os acórdãos n.º 254/2000, 356/2001, 426/2001, 405/2003 e 323/05, todos decididos em Plenário, que declararam com força obrigatória geral a inconstitucionalidade de diversas normas legais relativas à função pública pelo facto de permitirem as acima mencionadas ultrapassagem de escalões remuneratórios, e são também, neste sentido, os mais recentes acórdãos n.ºs 105/06, 167/08, 195/08, 196/08, 197/08 e 378/12.
Ora, neste caso, parece ocorrer precisamente um caso de ultrapassagem de escalão remuneratório.
O artigo 7.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 75/2010, determinou que os professores titulares que, à data da entrada em vigor do diploma, isto é, em 24 de junho de 2010, estivessem posicionados no índice 245 há mais de 4 anos mas há menos de 5 fossem reposicionados, nessa mesma data, no índice 272, desde que 'tenham obtido no ciclo de avaliação do desempenho de 2007-2009 no mínimo a menção qualitativa de Bom' e 'tenham obtido na última avaliação do desempenho efetuada nos termos do Decreto Regulamentar n.º 11/98, de 15 de maio, classificação igual ou superior a Satisfaz'.
Por seu turno, nos termos do artigo 8.º, n.º 1, do mesmo diploma, os professores que fossem detentores da categoria de professor titular, que preenchessem precisamente os mesmos requisitos relativos à avaliação do desempenho, e à data da entrada em vigor da lei estivessem posicionados no índice 245 há mais de 5 anos e menos de 6 anos seriam posicionados no índice 299, mas o seu reposicionamento no índice 299 foi diferido para o momento em que completassem a antiguidade de 6 anos. Parece resultar a contrario desta disposição que, até atingirem os seis anos de serviço no escalão 245, não haveria qualquer alteração da sua posição em termos de escalões remuneratórios e se manteriam no índice 245.
Esta interpretação isolada do artigo 8.º, n.º 1, não é, contudo, sistemicamente aceitável.
Na verdade, temos de ter em conta o artigo 10.º, do Decreto-Lei n.º n.º 75/2010, de 23 de junho, cujo artigo 8.º, n.º 1, é agora impugnado, que, sob a epígrafe 'garantia durante o período transitório', determina que 'da transição entre a estrutura da carreira regulada pelo Decreto-Lei n.º 15/2007, de 19 de janeiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 270/2009, de 30 de setembro, e a estrutura da carreira definida no presente decreto-lei não podem ocorrer ultrapassagens de posicionamento nos escalões da carreira por docentes que, no momento da entrada em vigor do presente decreto-lei, tivessem menos tempo de serviço nos escalões'.
Este preceito implica, portanto, que dentro do universo de docentes considerados pela lei em situação de igualdade em termos de mérito ou avaliação de desempenho e colocados antes da entrada em vigor da nova lei num mesmo escalão remuneratório, não possa suceder que os docentes mais antigos fiquem, por força da entrada em vigor da nova lei, reposicionados num escalão remuneratório mais baixo do que outros com menor antiguidade.
Ora o artigo 7.º, n.º 2, alínea a), fez transitar para o índice 272 os professores titulares que estivessem posicionados no índice 245 há mais de 4 anos mas há menos de 5 e apresentassem determinadas avaliações de desempenho, logo com a entrada em vigor da lei (24 de julho de 2010). Assim, não é legalmente admitido que os professores titulares posicionados precisamente no mesmo índice 245 e exatamente com as mesmas condições legalmente definidas em termos de avaliação de desempenho, mas sendo mais antigos no escalão remuneratório, passem, com a nova lei, a ficar num escalão remuneratório mais baixo. Deverão ser reposicionados, pelo menos, no mesmo escalão 272.
O atual Estatuto da Carreira de Educadores de Infância e professores do ensino Básico e Secundário visa introduzir critérios de progressão na carreira que valorizem mais o mérito na atividade docente do que a mera antiguidade na carreira. Mas isso não poderá nunca implicar que, por absurdo, fiquem prejudicados, em termos de remuneração, determinados docentes pelo simples e único facto de terem maior antiguidade, tendo exatamente as mesmas condições legais em termos de avaliação de desempenho. É precisamente esse absurdo que o artigo 10.º, n.º 1, da lei visa evitar.
Da conjugação do artigo 10.º, n.º 1, com os artigos 7.º, n.º 2, alínea b) e 8.º, n.º 1, resulta pois que os professores titulares com mais de cinco anos e menos de seis anos de tempo de serviço no escalão 245 (a que se refere o artigo 8.º, n.º 1), deverão pois ficar abrangidos no índice 272, logo com a entrada em vigor da lei, tal como sucede com os de menor antiguidade.
É, aliás, esta a interpretação da lei que faz o próprio Primeiro-Ministro, em representação do Governo enquanto órgão autor da norma, na sua resposta.
Na verdade, dispondo o artigo 7.º, n.º 2, alínea b), que os docentes que, à data de entrada em vigor da lei, sejam detentores da categoria de professor titular e estejam posicionados no índice 245 há mais de quatro anos e menos de cinco para efeitos de progressão na carreira, transitam para a categoria de professor da nova estrutura da carreira reposicionados no índice 272, verificadas que estejam determinadas condições de avaliação de desempenho, não é admissível, à luz do artigo 10.º, n.º 1, da lei, que não se proceda a uma recolocação, pelo menos nesse mesmo índice 272, dos professores titulares (referidos pelo artigo 8.º, n.º 1) que estão posicionados no índice 245 há mais de cinco anos e menos de seis, ou seja, há mais tempo, e com as mesmíssimas avaliações de desempenho que os professores titulares referidos no citado artigo 7.º, n.º 2, alínea b).
Com efeito, caso tal não sucedesse, ocorreriam 'ultrapassagens de posicionamento nos escalões da carreira por docentes que, no momento da entrada em vigor do presente decreto-lei, tivessem menos tempo de serviço nos escalões'. Ou seja, ocorreria uma violação do que o artigo 10.º, n.º 1, expressamente proíbe.
O Provedor de Justiça afirma, contudo, que uma tal interpretação não é seguida pela administração que não procedeu, e continua a não proceder, à atualização de escalões remuneratórios dos professores titulares em causa. Contudo, se assim sucede efetivamente, então a administração não estará a aplicar a lei de acordo com a sua devida interpretação sistemática à luz do artigo 10.º, n.º 1. A questão será então de legalidade e já não de constitucionalidade. A inconstitucionalidade da norma do artigo 8.°, n.º 1, só se verificaria se a norma do artigo 10.°, n.º 1, não existisse. Assim, não há qualquer problema de contrariedade com a Constituição.
É verdade, que os orçamentos de Estado para 2011 e 2012, dentro de uma política de contenção da despesa pública, vieram proibir as valorizações do posicionamento remuneratório. Mas, como é de regra, também estas disposições legais apenas se aplicam para o futuro, não se aplicando retroativamente às transições remuneratórias operadas antes da sua vigência. Ora tem de se entender que o reposicionamento no índice 272 dos professores titulares referidos no artigo 8.º, n.º 1, se deu logo com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho, isto é, a 24 de julho de 2010, pois só assim se evita o resultado legalmente excluído pelo artigo 10.º, n.º 1, do mesmo decreto-lei.
Dado que o disposto no artigo 10.º, n.º 1, do diploma em causa impede a aplicação do critério normativo impugnado pelo requerente, não se verifica qualquer violação do princípio “salário igual para trabalho igual” (decorrente do artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, enquanto corolário do princípio da igualdade consagrado genericamente no artigo 13.º da mesma Constituição).
III - Decisão
6. Nos termos e com os fundamentos supra expostos, o Tribunal Constitucional decide:
- não declarar a inconstitucionalidade, da norma contida no artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º n.º 75/2010, de 23 de junho.
Lisboa, 8 de maio de 2013.- José da Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins – Maria João Antunes – Pedro Machete (vencido nos termos da declaração em anexo) – Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida nos termos da declaração do Sr. Conselheiro Pedro Machete) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, no essencial, pelas seguintes ordens de razões:
1.ª - Apreciação de norma diferente daquela que foi objeto do pedido de fiscalização formulado pelo Provedor de Justiça
O requerente enunciou o objeto do seu pedido de fiscalização abstrata sucessiva nos seguintes termos:
A «norma do artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho, nas seguintes condições cumulativas:
a) quando aplicada a docentes que, à data da entrada em vigor deste diploma, detenham a categoria de professor titular;
b) na medida em que tenha como efeito a ultrapassagem, em termos remuneratórios, dos docentes nela abrangidos por outros docentes com menos tempo de posicionamento no escalão 245, nos termos do artigo 7.º, n.º 2, b), do mesmo diploma.»
Desta formulação infere-se um critério normativo que não se reconduz ao simples enunciado do artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho, mas à norma dele extraída, segundo a qual, os docentes que, à data da entrada em vigor deste diploma, detenham a categoria de professor titular e se encontrem posicionados no índice 245 há mais de cinco anos e menos de seis anos para efeitos de progressão na carreira, só poderão ser reposicionados em novo índice no momento em que perfizerem seis anos de tempo de serviço naquele índice. E é a aplicação pela Administração deste mesmo critério normativo que tem motivado as queixas dirigidas ao Provedor de Justiça.
No presente acórdão procede-se a uma interpretação sistemática do direito infraconstitucional, nomeadamente “da conjugação do artigo 10.º, n.º 1, com os artigos 7.º, n.º 2, alínea b) e 8.º, n.º 1”, todos do mencionado Decreto-Lei n.º 75/2010, para concluir que o citado artigo 8.º, n.º 1, não pode ser interpretado com o sentido que lhe tem vindo a ser imputado pela Administração. Com efeito, afirma-se no presente acórdão: “se assim sucede efetivamente [- se, portanto, a Administração não procedeu, e continua a não proceder, à atualização dos escalões remuneratórios dos professores titulares em causa -], então a administração não estará a aplicar a lei de acordo com a sua devida interpretação sistemática à luz do artigo 10.º, n.º 1. A questão será então de legalidade e já não de constitucionalidade. A inconstitucionalidade da norma do artigo 8.º, n.º 1, só se verificaria se a norma do artigo 10.º, n.º 1, não existisse” (itálico aditado).
Esta conclusão, todavia, implica a consideração de um segundo critério normativo, que é diferente daquele cuja fiscalização foi pedida. E a sua correção em face da pertinente fonte de direito infraconstitucional não afasta a existência do primeiro critério nem a respetiva ilegitimidade constitucional. Acresce que, contrariamente ao que seria possível em sede de fiscalização concreta, mediante o recurso à técnica da interpretação conforme prevista no artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, a presente decisão negativa quanto à declaração de inconstitucionalidade, embora fundada numa dada interpretação da norma apreciada – interpretação essa que é diferente daquela que motivou o pedido de fiscalização - não impõe juridicamente a «interpretação correta» a terceiros. Na verdade, mesmo depois de reconhecida a ilegitimidade do critério normativo aplicado pela Administração e sindicado pelo Provedor de Justiça, aquela não fica vinculada pela presente decisão a abandoná-lo.
2.ª – Inutilização no caso concreto das queixas dirigidas ao Provedor de Justiça e consequente desvalorização da ação deste órgão
O Provedor de Justiça é um órgão ao qual os cidadãos que se considerem agravados por ações ou omissões dos poderes públicos se podem dirigir, tendo em vista a reparação das injustiças (artigo 23.º da Constituição e artigo 1.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril). Sem poder decisório, o Provedor de Justiça pode, além do mais, dirigir recomendações à Administração e tem legitimidade para requerer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
In casu, e conforme referido no Acórdão, o Provedor de Justiça recebeu “dezenas de queixas” relativas à “ interpretação, e consequente aplicação, que a Administração faz [da lei aplicável]”, porquanto a mesma Administração tem “mantido, e [mantém] ainda, os docentes abrangidos pela previsão do art.° 8.°, n.º 1, do Decreto-Lei em causa no índice 245”. O Provedor de Justiça entendeu que o seguimento adequado a tais queixas seria a obtenção de uma decisão de caráter geral e vinculativa que eliminasse a desigualdade de tratamento de alguns docentes. E muitos dos docentes afetados consideraram a queixa ao Provedor de Justiça a via adequada para a defesa dos seus direitos, atenta a ilegitimidade do critério normativo adotado pela Administração e a decisão daquele de requerer a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do mesmo critério.
A presente decisão, sem embargo de reconhecer a ilegitimidade deste último, acaba, todavia, e na prática, por reencaminhar os interessados para os tribunais, onde, caso a caso (ainda que sem prejuízo de ações coletivas), deverão defender os seus direitos. Resultam, assim, objetivamente, inutilizadas as queixas apresentadas ao Provedor de Justiça, não obstante a manifesta inconstitucionalidade do critério normativo aplicado pela Administração.
Pedro Machete