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Processo n.º 178/2001 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A empresa M..., LDª interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 14 de Fevereiro de 2001, para apreciação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 110º, n.º 1, e 272º do Código de Processo Tributário.
O acórdão recorrido negou provimento ao recurso que a recorrente interpôs do acórdão do Tribunal Central Administrativo. Este tinha, por sua vez, negado provimento ao recurso que ela havia interposto da sentença do Juiz do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Coimbra. Esta sentença tinha julgado improcedente a oposição à execução fiscal que a recorrente deduzira, invocando, entre o mais, a prematuridade da execução.
A prematuridade da execução, no entender da recorrente, 'constitui uma flagrante violação dos direitos do contribuinte', já que os artigos 110º, n.º 1, e 272º do Código de Processo Tributário são inconstitucionais. A violação dos direitos do contribuinte – sustenta a recorrente – decorre do facto de, como no caso aconteceu, a execução poder ser instaurada 'antes de decorrido o prazo da impugnação fiscal' (recte, 'no prazo de 24 horas após o recebimento do título executivo'), que o mesmo é dizer, 'imediatamente após o termo do prazo para pagamento' voluntário.
Neste Tribunal, alegou a RECORRENTE, que formulou as seguintes conclusões com interesse para o recurso de constitucionalidade:
1. Perante todos os graus da hierarquia dos tribunais tributários, desde a 1ª Instância até ao Supremo Tribunal Administrativo, passando pela 2ª Instância, a ora recorrente suscitou sempre a questão da inconstitucionalidade, quer da norma do artigo 110º, n.º 1, e do artigo 272º, ambos do Código de Processo Tributário, designando, para o efeito, de prematura a instauração da execução fiscal, sem que fosse dada a possibilidade ao contribuinte de impugnar o acto dado à execução e de prestar caução nessa impugnação como a lei permite.
2. Instaurada a execução, segue-se imediatamente a penhora e o contribuinte, que ainda está em tempo de impugnar o acto de liquidação, sujeita-se a ver os seus bens penhorados, muitas vezes sem razão porque o acto tributário é anulado, pelo que entende a recorrente que os citados artigos são inconstitucionais e sempre alegou essa inconstitucionalidade em todo o processo.
3. Comprovada a apresentação de impugnação judicial com o referido fundamento, é ilegal a instauração da presente execução com manifesta violação dos direitos de impugnação da ora oponente, pois constitui direito dos cidadãos o recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos, nos termos do artigo 268º, n.º 4, da Constituição da República.
4. Do mesmo modo, a instauração de execução antes de decorrido o prazo da impugnação fiscal, como aconteceu nos presentes autos, constitui uma flagrante violação dos direitos dos contribuintes, sendo o artigo 110º, n.º 1, do Código de Processo Tributário, por violador do artigo 268º, n.º 4, da Constituição, uma norma flagrantemente inconstitucional.
5. Por maioria de razão, provada documentalmente a impugnação judicial do acto dado à execução, e requerido o seu efeito suspensivo, nos termos legais, não pode dar-se andamento à execução da dívida sem que se mostrem não cumpridas as suas obrigações legais, pelo que esse fundamento que integra a alínea h) do n.º
1 do artigo 268º do Código de Processo Tributário, deve a presente execução ser declarada extinta.
6. É também inconstitucional a norma do artigo 272º do Código de Processo Tributário, que obriga à instauração da execução no prazo de 24 horas, após o recebimento do título executivo, sem haver decorrido o prazo de impugnação e sem nesta ter sido dada ao impugnante a possibilidade de garantir a quantia fiscal, na medida em que o seu conteúdo contrasta com 'as normas ou princípios da Constituição', nomeadamente os constantes do artigo 106º, n.º 2, e 268º, n.º 4, da Constituição da República.
7. Deve, por isso, ser declarada a inconstitucionalidade das normas dos artigos
110º, n.º 2, e 272º do Código de Processo Tributário, na medida em que o seu conteúdo contrasta com 'as normas ou princípios da Constituição', consubstanciados nos artigos 106º, n.º 2 e 268º, n.º 4, da Constituição da República.
A FAZENDA PÚBLICA não apresentou resposta.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. As normas sub iudicio: O Código de Processo Tributário (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de Abril, e sucessivamente alterado por vários outros diplomas legais) – que, entretanto, foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, que aprovou o Código de Procedimento e de Processo Tributário, o qual entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2000, mas só se aplicou 'aos procedimentos iniciados e aos processos instaurados a partir dessa data' – regulava a cobrança das dívidas fiscais no capítulo VII do título II. Depois de dizer, no artigo 107º, quando é que o pagamento das dívidas fiscais é voluntário, preceituava, no artigo 110º, n.º 1, aqui sub iudicio, como segue: Artigo 110º (Extracção das certidões de dívida)
1. Findo o prazo de pagamento voluntário estabelecido nas leis tributárias, será extraída pelos serviços competentes certidão de dívida com base nos elementos que tiver ao seu dispor.
O n.º 2 deste artigo 110º preceitua que as certidões de dívidas fiscais devem ser assinadas e autenticadas, e indica os elementos que as mesmas devem conter. O seu n.º 3 prescreve que a assinatura das certidões pode ser feita por chancela ou outro meio de reprodução, e dispõe sobre o modo da sua autenticação. O n.º 4 dispõe que 'as certidões de dívida servirão de base à instauração do processo de execução fiscal a promover pelo chefe de repartição de finanças, nos termos do título V'.
O título V Código regula, efectivamente, o processo de execução fiscal. Nesse título V, depois de o artigo 233º definir o âmbito da execução fiscal, o artigo 272º, também aqui sub iudicio – que faz parte da secção II do capítulo II
– trata da instauração e autuação da execução. Dispõe como segue esse artigo 272º:
1. Instaurada a execução mediante despacho a lavrar no ou nos respectivos títulos executivos ou relação destes, no prazo de 24 horas após o recebimento e efectuado o competente registo, o chefe de repartição de finanças ordenará a citação do executado.
2. Serão autuadas conjuntamente todas as certidões de dívidas que se encontrem nas repartições de finanças à data da instauração e que tenham sido extraídas contra o mesmo devedor.
Os processos de execução fiscal são, pois, instaurados pelos serviços de administração fiscal, competindo a esses mesmos serviços 'realizar os actos a eles respeitantes' [cf. artigo 43º, alínea g), do mesmo Código], salvo aqueles que a lei comete aos tribunais tributários de 1ª instancia. A estes tribunais compete 'decidir os incidentes, os embargos, a oposição, a verificação e graduação de créditos e a anulação da venda, bem como os recursos referidos no artigo 355º' (cf. artigo 237º, n.º 2, do Código); e compete-lhes ainda 'o conhecimento de todas as questões relativas à legitimidade dos responsáveis subsidiários, incluindo a culpa das pessoas referidas nos artigos 12º e 13º'
(cf. o mesmo artigo 237º, n.º 3). O que marca a instauração da execução é o despacho do chefe de repartição de finanças, que o deve proferir no prazo de 24 horas após o recebimento dos respectivos títulos executivos ou da relação dos mesmos (cf. o artigo 272º, n.º
2). Os títulos executivos são as certidões de dívidas fiscais, que os competentes serviços devem extrair, findo o prazo de pagamento voluntário estabelecido nas leis tributárias (cf. o citado artigo 110º, nºs 1 e 4).
Em síntese, pois: findo o prazo do pagamento voluntário do imposto estabelecido na respectiva lei tributária, extrai-se certidão de dívida (artigo 110º, n.º 1, citado), para servir de base à instauração da execução fiscal (artigo 110º, n.º
4, citado), que se inicia com o despacho do chefe de repartição de finanças, a proferir no prazo de 24 horas após o recebimento daquela certidão (artigo 272º, n.º 1, citado). Decorre assim dos mencionados artigos 110º, n.º 1, e 272º, n.º 1, que a execução fiscal se instaura antes de decorrido o prazo de 90 dias (contados do termo do prazo para o pagamento voluntário do imposto) de que o contribuinte dispõe para a impugnar judicialmente a liquidação do mesmo [cf. artigo 123º, n.º 1, alínea a), Código de Processo Tributário].
É esta disciplina legal (é dizer: é a possibilidade de a administração fiscal instaurar a execução fiscal antes de decorrido o prazo da impugnação judicial da liquidação do imposto; e, bem assim, a circunstância de essa execução não ser declarada extinta, 'uma vez provada documentalmente a impugnação judicial do acto dado à execução', e 'requerido o seu efeito suspensivo') que, no entender da recorrente, viola as garantias dos contribuintes, designadamente o direito ao recurso contencioso.
É, por isso, esta questão de constitucionalidade que há que examinar.
4. A questão de constitucionalidade:
4.1. Sustenta a recorrente que as normas sub iudicio, ao permitirem que a instauração da execução fiscal 'imediatamente após o termo do prazo para pagamento' voluntário (recte, 'no prazo de 24 horas após o recebimento do título executivo') – e, assim, 'antes de decorrido o prazo da impugnação fiscal' – violam as garantias dos contribuintes. Escreveu ela que o artigo 272º do Código de Processo Tributário, 'que obriga à instauração da execução no prazo de 24 horas, após o recebimento do título executivo, sem haver decorrido o prazo de impugnação e sem nesta ter sido dada ao impugnante a possibilidade de garantir a quantia fiscal', é inconstitucional, 'na medida em que o seu conteúdo contrasta com as normas ou princípios da Constituição, nomeadamente os constantes do artigo 106º, n.º 2, e 268º, n.º 4, da Constituição'.
4.2. Vejamos, então:
4.2.1. A Constituição prescreve no artigo 103º, n.º 2, que 'os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes'. Em consonância com este princípio da legalidade fiscal, dispõe o n.º 3 do mesmo artigo 103º que 'ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei'. A própria cobrança dos impostos tem, assim, que fazer-se 'nos termos da lei'. Ora, como decorre do que se disse atrás, em matéria de cobrança de impostos, a lei prevê duas fases: uma, destinada ao pagamento voluntário do imposto por parte do contribuinte; a outra, visando a cobrança coerciva do mesmo, através do processo de execução fiscal. Esta – recorda-se – corre, em parte, nos órgãos periféricos da administração fiscal e, em parte também, nos tribunais tributários; e inicia-se com o despacho a ordenar a sua instauração, o qual deve ser proferido no prazo de 24 horas após o recebimento dos respectivos títulos executivos (é dizer, das certidões de dívidas fiscais) ou da relação dos mesmos.
Pois bem: o citado artigo 103º, n.º 2, da Constituição, ao impor que a cobrança dos impostos se faça 'nos termos da lei' – e, desse modo, ao proibir que se proceda a uma exacção ilegal de impostos –, não pode ser violado pelas normas sub iudicio, que justamente regulam o modo de dar início ao processo de execução fiscal, com vista à cobrança dos impostos que os contribuintes não saldaram no prazo destinado ao seu pagamento voluntário. Tanto mais que – como decorre do que, a seguir, se dirá – o modo como essa cobrança coerciva se acha regulada na lei não inviabiliza, nem torna particularmente onerosa, a defesa dos contribuintes contra uma eventual tentativa de cobrança ilegal de impostos.
4.2.2. As normas em causa também não violam a garantia dos contribuintes consistente no direito ao recurso contencioso, consagrado no artigo 268º, n.º 4, da Constituição, que permite aos administrados obter a anulação dos actos administrativos ilegais lesivos dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, seja qual for a forma que eles revistam.
Este direito consiste, para o que agora importa, na faculdade de os contribuintes impugnarem perante os tribunais tributários a liquidação de impostos feita pela administração fiscal, com fundamento em ilegalidade, com vista a obterem a sua anulação e a conseguir que a administração fiscal proceda
'à reconstituição plena da legalidade do acto' (cf. artigo 145º do Código de Processo Tributário). Ora, apesar de a administração fiscal poder instaurar a execução antes de decorrido o prazo da impugnação judicial da liquidação do imposto, o contribuinte pode na mesma impugnar judicialmente a legalidade do respectivo acto de liquidação perante os tribunais tributários; e, se o fizer e prestar caução idónea ('garantia bancária, caução, seguro caução ou qualquer outro meio susceptível de assegurar os créditos do exequente'), a execução será suspensa. Mais ainda: mesmo não prestando caução idónea, uma vez efectuada a penhora, a execução não prosseguirá os termos ulteriores, pois sempre será suspensa: sê-lo-á, se os bens penhorados garantirem 'o valor da quantia exequenda e do acrescido' (cf. artigo 255º, nº 1, do Código de Processo Tributário); e sê-lo-á também, mesmo que os bens penhorados sejam insuficientes (cf. ALFREDO JOSÉ DE SOUSA e JOSÉ DA SILVA PAIXÃO, in Código de Processo Tributário. Comentado e anotado, Coimbra, 1991, página 479, nota 5). Além disso, o executado pode deduzir oposição à execução fiscal, que 'é ainda, de algum modo, um meio de impugnação da liquidação tributária' [cf. JOSÉ CASALTA NABAIS (Direito Fiscal, Coimbra, 2000, página 302); e, nessa execução, se a lei não assegurar um 'meio judicial de impugnação ou recurso' contra o acto de liquidação do imposto, pode inclusive invocar a própria ilegalidade da liquidação da dívida fiscal dada à execução. Vale isto por dizer que os direitos do contribuinte ficam devidamente acautelados, não obstante a execução fiscal poder ser instaurada antes de expirado o prazo previsto na lei para a impugnação judicial do acto de liquidação do imposto dado à execução, e não obstante também, verificado o condicionalismo apontado, a execução ser suspensa, mas não extinta. Os actos de liquidação dos impostos praticados pela administração fiscal, como actos administrativos que são ('os actos tributários praticados por autoridade fiscal competente em razão da matéria são definitivos quanto à fixação dos direitos dos contribuintes, sem prejuízo da sua eventual revisão ou impugnação nos termos da lei': artigo 18º do Código de Processo Tributário), podem, pois, ser objecto de impugnação contenciosa perante os tribunais tributários. E, se o contribuinte os impugnar (ou seja, se impugnar judicialmente a liquidação do imposto), com fundamento na ilegalidade da dívida, e prestar garantia idónea ou, uma vez efectuada a penhora, se esta garantir 'a totalidade da quantia exequenda e do acrescido', ele (contribuinte) verá – como se disse – a execução fiscal suspensa (cf. artigo 255º conjugado com o artigo 282º do citado Código). Acresce que as normas sub iudicio tão-pouco impedem que, na própria execução fiscal, o executado deduza oposição, para se defender da tentativa de cobrança de 'um imposto que não existe (de todo ou à data dos factos)' ou 'que não existe na esfera do executado por falta de legitimidade', ou, até, para em certos casos provar que esse imposto 'é ilegal em virtude da ilegalidade da sua liquidação'
[cf. JOSÉ CASALTA NABAIS (ob. cit., página 302)], embora, neste último caso seja necessário que 'a lei não assegure um meio judicial de impugnação ou recurso contra este acto' [cf. o artigo 286º, n.º 1, alínea g), do Código de Processo Tributário, que este Tribunal, no acórdão n.º 1171/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 35º, página 423 e seguintes), julgou não violar o direito ao recurso contencioso], pois, se a lei assegurar 'meio judicial de impugnação ou recurso contra o acto tributário', a discussão sobre a sua ilegalidade deve fazer-se no processo de impugnação, e não no de execução fiscal: é que, como escreve JOSÉ CASALTA NABAIS (ob. cit., página 262), neste processo, 'não é, em princípio, admitida a discussão da ilegalidade do acto tributário, que deve ser discutida no processo de impugnação' [Cf. também ALFREDO JOSÉ DE SOUSA e JOSÉ DA SILVA PAIXÃO (Código de Procedimento e de Processo Tributário. Comentado e anotado, Coimbra, 2000, página 487)]. E bem se compreende que assim seja, pois, com isso – sublinha JOSÉ CASALTA NABAIS (ob. cit., página 302) –, a lei pretende
'evitar que a impugnação dos actos tributários se desloque para a execução fiscal e assim seja torneado o prazo de impugnação judicial de tais actos'. Ora, a oposição à execução – já atrás se sublinhou – 'é ainda, de algum modo, um meio de impugnação da liquidação tributária', um processo declarativo enxertado na execução fiscal, que tem justamente por objecto 'a discussão da existência do crédito de imposto exigido pelo Fisco', como também diz JOSÉ CASALTA NABAIS (ob. cit., página 302).
4.3. Em conclusão: Não obstante o facto de a execução fiscal poder ser instaurada antes de decorrido o prazo de que o contribuinte dispõe para impugnar judicialmente a liquidação do imposto que não pagou voluntariamente; e não obstante também a circunstância de essa execução não ser declarada extinta, 'uma vez provada documentalmente a impugnação judicial do acto dado à execução', e 'requerido o seu efeito suspensivo'; as normas sub iudicio (é dizer, as normas constantes dos artigos 110º, n.º 1, e 272º do Código de Processo Tributário, que tal permitem) não violam o direito ao recurso contencioso, nem qualquer outra garantia dos contribuintes. Há, por isso, que negar provimento ao recurso. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). negar provimento ao recurso; e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade;
(b). condenar a recorrente nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 10 de Julho de 2001 Messias Bento José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida