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Processo nº 55/01
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, instaurados ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vindos do Tribunal de Contas, em que são recorrente C... e recorrido Presidente do Júri do Concurso Curricular para Recrutamento de Juízes para o Tribunal de Contas, foi proferida decisão sumária, em 3 de Abril último, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A daquele diploma legal, que se passa a transcrever integralmente:
'1. - C... recorreu para o Plenário Geral do Tribunal de Contas da deliberação do júri do concurso curricular para o recrutamento de juízes para o Tribunal de Contas, nos termos dos artigos 18º a 22º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, aberto pelo aviso nº 17 497/99 (2ª série), publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Dezembro de 1999, deliberação essa, proferida a 28 de Março de
2000, que manteve a exclusão da sua candidatura. O Plenário Geral desse Tribunal, por acórdão de 20 de Dezembro de 2000, julgou improcedente o recurso, deste modo mantendo a deliberação que excluíra o recorrente do referido concurso.
2. - Inconformado, este interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 20 de Dezembro, por meio de requerimento que, já neste Tribunal, seria completado nos termos e para os efeitos dos nºs. 1, 2, 5 e 7 do artigo
75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Dezembro. Ficou, então, a saber-se que o recurso é apresentado ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º deste diploma legal, pretendendo-se a apreciação da conformação constitucional das seguintes normas: a) as constantes do artigo 105ºdo Código de Procedimento Administrativo e do nº
5 do artigo 34º do Decreto-Lei nº 204/98, de 11 de Julho, 'com o sentido de que basta que a entidade administrativa decisora ouça o particular interessado, sem ter que se pronunciar minimamente sobre o que o mesmo tiver dito; com esse sentido, essas normas violam o disposto no nº 5 do artigo 267º da Constituição'; b) a constante da alínea c) do nº 1 do artigo 19º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, «com o sentido de que a determinação do que sejam 'outras áreas adequadas ao exercício das funções' seja feita através do exercício dum poder discricionário; com esse sentido, essa norma viola o nº 2 do artigo 47º da Constituição'; c) «norma (sem preceito legal que a estabeleça, mas defendida por alguma doutrina e aplicada – como no caso vertente – pela jurisprudência), segundo o qual, fora de erro manifesto, é insindicável o preenchimento, pela Administração Pública, de conceitos indeterminados ou a utilização da chamada
'discricionariedade técnica'; tal norma viola o nº 4 do artigo 268º da Constituição, na medida em que (esta) consagra a tutela contenciosa efectiva, do cidadão, perante a lesão dos seus direitos e interesses legalmente protegidos'. As questões terão sido suscitadas oportunamente.
3. - O facto de o recurso de constitucionalidade ter sido admitido no Tribunal a quo, não vincula o Tribunal Constitucional, de acordo com o disposto no nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82. Ora, o certo é que se considera não poder conhecer-se do objecto do recurso, sendo de proferir decisão sumária nesse sentido, de acordo com o nº 1 do artigo
78º-A do mesmo diploma legal.
4. - Com efeito, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade com base na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, para ser admissível, pressupõe a congregação de vários pressupostos, um dos quais – como decorre do texto legal e constitui jurisprudência corrente e pacífica – implica que a decisão recorrida tenha aplicado determinada norma jurídica, no seu todo ou em algum segmento, ou em certa dimensão interpretativa da mesma, desde que essa norma ou o sentido que lhe é dado se assuma como uma das rationes decidendi. E, por outro lado, só cabe recurso deste tipo quando articulado com um determinado quadro normativo, não sendo esse o caso quando se pretende reagir, de algum modo, à decisão judicial proferida, visando-se a sua reapreciação.
4.1. - Considera o recorrente que as normas referidas no ponto 2-a) foram interpretadas com um sentido que lhe negou ver analisados os argumentos por si adiantados, assim se frustrando a sua audição. No entanto, não foi com o sentido impugnado que o acórdão se pronunciou. No entendimento que no aresto fez vencimento, o júri não ignorou a sua resposta e o acto encontra-se devidamente fundamentado. Escreveu-se aí, designadamente, que '[...] basta ler o teor da resposta do recorrente e da deliberação recorrida para se concluir, de forma clara e inequívoca, que ao proferir a deliberação o júri teve em conta a resposta' e, bem assim, que '[...] não pode confundir-se o direito de participação nas decisões com o pretenso 'dever' de o órgão decisor acolher o que resultar dessa participação' (cfr. fls. 105 e 106 dos autos). De resto, o controlo de constitucionalidade incide sobre normas e não sobre decisões judiciais, em si mesmas consideradas, surpreendendo-se, in casu, um juízo de ponderação singular, que resulta da conjugação dos factos com o critério normativo que os enquadra, numa subsunção que ao poder cogniscitivo do Tribunal Constitucional escapa.
4.2. - Idêntica solução se há-de conceder relativamente à questão enunciada em
2-b). Também aqui não foi atribuída à norma pela decisão recorrida uma interpretação que aponte no sentido da insindicabilidade de conceitos indeterminados, como o da 'discricionariedade técnica': o Tribunal recorrido entendeu que o júri, embora utilizando a palavra 'discricionário', não actuou de forma arbitrária,
'antes procurou pautar a sua conduta de acordo com as normas jurídicas' (fls.
108).
4.3. - Por fim, é manifesto que não pode conhecer-se do recurso ao colocar-se a constitucionalidade de uma norma não positivada, vagamente ancorada numa corrente doutrinária e jurisprudencial nos termos da qual, fora de erro manifesto, é insindicável a integração de conceitos indeterminados ou a utilização da chamada discricionariedade técnica por parte da Administração. Não há, com efeito, uma suscitação directa e operativa de questão de constitucionalidade, cuja apreciação compita ao Tribunal Constitucional. E se de uma insuficiência de fundamentação na resolução das questões colocadas se trata, esta, além de não ter sido colocada, sempre estaria subtraída aos parâmetros da competência deste Tribunal.
5. - Em face do exposto, decide-se, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, não tomar conhecimento do recurso. Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 5 unidades de conta.'
2. - Notificado, reagiu o recorrente, mediante reclamação deduzida nos termos do nº 3 do citado artigo 78º-A, sustentando, em suma, que o recurso deve ser recebido quanto às matérias contidas nas alíneas a) e b) do ponto 2 da decisão sumária.
Cumpre decidir, circunscrevendo o objecto da reclamação a esses parâmetros.
3. - Entendeu-se, no tocante às normas do artigo 105º do Código de Procedimento Administrativo e do nº 5 do artigo 34º do Decreto-Lei nº
204/98, de 11 de Julho – ou seja, referentemente ao conjunto normativo englobado naquela alínea a) – que a interpretação que lhes foi atribuída como tendo sido a efectivamente aplicada pelo tribunal recorrido – a de que basta a mera audição do particular pela entidade decisora, sem que a esta caiba o ónus de se deter e se pronunciar sobre a resposta emitida, suficiância essa que, na tese do recorrente, afronta o disposto no nº 5 do artigo 267º da Constituição –, não foi, na realidade, a adoptada na decisão recorrida.
E sustentou-se, então, esse juízo conclusivo com a ponderação dos termos com que, nesse lugar, se teve em conta a argumentação aduzida pelo interessado.
Ora, na verdade, o reclamante reage ao modo como esses seus argumentos foram considerados pelo tribunal recorrido, exprimindo a sua insatisfação sobre a 'fórmula genérica' utilizada na apreciação das respostas –
'aplicável a todos os que reclamaram, o que não garante, de forma alguma, que as razões de cada um tenham sido consideradas'.
Não se crê que os termos naturalmente enxutos dos fundamentos deliberativos do júri quanto à exclusão do candidato (cfr. fls. 38 e segs. dos autos), ou a sua confirmação pelo acórdão recorrido, assumam o perfil de mera fórmula tabeliónica, de modo tal que se possa considerar a audiência prévia como formalidade inútil e sem sentido.
Se é verdade que a fundamentação não tem de responder a toda e qualquer alegação, de facto ou de direito, feita pelo interessado no
âmbito da sua audiência mas que a suficiência formal deve ser alargada para, como escreve Pedro Machete (in – A Audiência dos Interessados no Procedimento Administrativo, Lisboa, 1995, pág. 504) as razões determinantes do acto expliquem 'a necessidade de sacrifício de interesses dos particulares que estes tenham querido preservar', assim exteriorizando o órgão competente para a decisão os principais interesses que teve de considerar e os motivos que o levaram, no caso concreto, a preferir uns em detrimento dos outros, não menos verdade é que o aresto recorrido abordou a questão equacionada e teve a resposta do júri como suficientemente fundamentada, como o ilustram algumas passagens do seu texto que se reproduzem parcialmente.
Assim, escreveu-se:
'Depois [o recorrente] acrescenta que o júri não teve minimamente em conta a sua resposta e que, neste particular, só teve em conta o nome do concurso. Ora, esta última afirmação é que não está minimamente demonstrada. Basta ler o teor da resposta do recorrente e da deliberação recorrida para se concluir, de forma clara e inequívoca, que ao proferir a deliberação o júri teve em conta a resposta. E, como bem diz o júri na sua resposta a este recurso, não pode confundir-se o direito de participação nas decisões com o pretenso ‘dever’ de o órgão decisor acolher o que resultar dessa participação. Que resulta da documentação é que o júri deliberou com base nos elementos de que dispunha e em nosso modo de ver sem qualquer desrespeito das normas jurídicas pertinentes. De facto e como resulta do que atrás dissemos, não é pelo facto de numa licenciatura estar incluída um ou outra disciplina ligada à área da economia que a mesma se pode considerar adequada para os fins previstos no artº
19º nº 1 al. c) da Lei 98/97.'
E, mais à frente:
'Nas conclusões A, B) e C) o recorrente alega que a sua resposta não foi considerada minimamente, pelo que o acto recorrido não foi fundamentado, encontrando-se violados os artºs. 105º do Código de Procedimento Administrativo ou o artº 34º do Decreto-Lei nº 204/98 de 11 de Julho. O recorrente não tem razão porque, como já se demonstrou, o júri não ignorou a sua resposta, o acto encontra-se suficientemente fundamentado, o artº 105º do Código do Procedimento Administrativo não se aplica ao caso ‘sub judice’ (porque o júri é o órgão competente para a decisão final) e pelas razões expostas não foi violado o referido artº 34º do Decreto-Lei nº 204/98.'
As transcrições feitas revelam-se úteis na medida em que permitem 'ler' a reclamação apresentada como uma manifestação de desacordo relativamente ao critério de valoração que o tribunal recorrido seguiu. O que, no entanto – até porque o problema da insuficiência de fundamentação nunca foi normativamente equacionado – consubstancia matéria que ao Tribunal Constitucional não compete conhecer, designadamente porque não funciona como tribunal de 'amparo'.
De resto, no fundo, o reclamante parece reconhecer que assim é: ao alegar que se está 'a trabalhar com um regime processual em que só há um grau de jurisdição', não podendo manifestar a sua discordância com a análise feita das suas razões, nem contradize-la, a sua inacção implicaria a violação da tutela efectiva do seu direito.
No fundo, está em causa a eventual inconstitucionalidade de uma decisão judicial, cujo conhecimento não compete ao Tribunal Constitucional (entre tantos outros, cfr. os acórdãos nºs. 90/85, 461/91,
166/92, 318/93 e 70/2001, publicados no Diário da República, II Série, de 11 de Julho de 1985, 24 de Abril de 1992, 18 de Agosto de 1992 2 de Outubro de 1993, respectivamente, sendo o último ainda inédito).
4. - O mesmo se terá de dizer no tocante à imputada discricionariedade da norma da alínea c) do nº 1 do artigo 19º da Lei nº 98/97.
Também relativamente a este específico ponto o tribunal entendeu que o júri não actuou de forma arbitrária, 'antes procurou pautar a sua conduta de acordo com as normas jurídicas'.
E, na verdade, resulta da leitura da acta nº 4/00 que o júri, na sua reunião de 28 de Março de 2000, foi unânime na exclusão do candidato ora recorrente com o fundamento da falta do requisito de admissão ao concurso relativo à licenciatura exigível ao candidato por entender que a fórmula legal – relativa às áreas adequadas ao exercício de funções, para além das expressamente enumeradas – subentende uma afinidade com estas últimas, de modo a não ser esse o caso da licenciatura em engenharia agronómica, que o candidato possui.
O problema não é, assim, o de uma certa indeterminação conceitual, nem se reconduz, nessa medida, a uma questão de inconstitucional normativa. Não está em causa um problema de livre escolha que conduza à inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador, como se escreveu no acórdão nº 205/99, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999.
Com efeito, como se reconheceu no acórdão recorrido, não há uma interpretação e aplicação das normas jurídicas de forma arbitrária, mas sim a ponderação de um critério. E, do mesmo passo, não está em causa uma específica dimensão normativa do preceito, mas sim o processo interpretativo que conduz à subsunção jurídica do caso.
Por isso se entendeu ter o legislador indicado expressamente as licenciaturas, ou mestrados, que os candidatos devem possuir, abstendo-se de uma elencação exaustiva de modo a que os detentores de outras licenciaturas, ou mestrados, também possam concorrer, desde que essas habilitações académicas sejam pertinentes a áreas adequadas ao exercício das funções de juiz-conselheiro do Tribunal de Contas.
A esta luz se compreende a ponderação do acórdão recorrido, feita a certo passo:
'Nos termos do artº 9º do C.Civil, na interpretação das leis deve ter-se em conta, para além do mais, a unidade do sistema jurídico e deve presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Tendo em conta estas directivas legais impõe-se a conclusão de que só as duas referidas áreas (jurídica e económica-financeira)são as adequadas ao exercício das funções de Juiz Conselheiro deste Tribunal. Pois, e desde logo, há que ter em conta as funções deste Tribunal, bem sintetizadas no artº 1º nº 1 da Lei nº 98/97 que estipula:
‘O Tribunal de Contas fiscaliza a legalidade e regularidade das receitas e das despesas públicas, aprecia a boa gestão financeira e efectiva responsabilidade por infracções financeiras.' Perante esta norma, e muitas outras se podiam indicar, haverá dúvidas de que os membros do Tribunal têm de possuir formação nas áreas jurídica ou económica-financeira? Mas se alguma dúvida subsistisse ela desapareceria, em nosso ver de forma totalmente concludente, se tivermos presente, na sua globalidade, o disposto no artº 19º nº 1 da mesma lei: Repare-se que:
- Na alínea b) se diz ‘Doutores em Direito, Economia, Finanças ou Organização e Gestão’, acrescentando-se a mesma expressão da alínea c) e atrás referida;
- Quanto à alínea c) já se transcreveu supra;
- Na alínea d) diz-se ‘Licenciados nas áreas referidas na alínea anterior ...’;
- Na alínea e) diz-se ‘Mestres ou licenciados em Direito, Economia, Finanças ou Organização e Gestão de Empresas de reconhecido mérito ...’;
- E, finalmente, na alínea a) não se mencionam áreas na medida em que, por imperativo legal, os Magistrados têm de possuir formação jurídica, no mínimo de uma licenciatura. Damos, por conseguinte, por assente que a formação dos candidatos tem de ser numa (ou em ambas) das referidas áreas. E daí que consideremos correcta a deliberação recorrida na parte em que diz que o juízo de adequação das licenciaturas do candidato há-de ser feito à luz da finalidade de recrutamento e que com a mencionada fórmula (outras áreas adequadas ao exercício das funções) o legislador pretendeu que as licenciaturas exigidas fossem afins daquelas que enuncia expressamente.'
Sendo assim, como se crê que seja, não é convocável um qualquer sentido específico da norma, constitucionalmente sindicável, mas sim uma tarefa de subsunção jurídica que escapa ao poder cogniscitivo do Tribunal. Ou seja, o acto de julgamento face à singularidade do concreto caso.
5. - Em face do exposto, decide-se indeferir a reclamação, condenando-se o reclamante nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 10 de Julho de 2001 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida