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Processo. n.º 77/00
2ª SecçãoRelator – Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório Pelo Acórdão n.º 685/99, proferido nos presentes autos, o Tribunal Constitucional deferiu a reclamação apresentada por P... e mulher contra o despacho de não recebimento do recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo do disposto na b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, 'para apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 3º, n.º 1, alínea c), do diploma preambular do Regime do Arrendamento Urbano, que revogou genericamente o Decreto-Lei n.º 293/77, de 20 de Julho, por violação do direito à habitação consagrado nos artigos 65º e 81º da Constituição', desapacho proferido pelo Tribunal da Relação do Porto nos autos de acção especial de posse avulsa intentada por L... e outros contra os reclamantes, nos termos que melhor se descrevem nesse Acórdão. Analisando o despacho de não recebimento do recurso de constitucionalidade, escreveu-se no já citado Acórdão n.º 685/99:
'O recurso não foi admitido com fundamento em que ‘a inconstitucionalidade invocada pelos recorrentes não foi suscitada durante os articulados vindo, meramente, a ser referida no requerimento de interposição do recurso’ (despacho de fls. 30 destes autos).
5. P... e mulher reclamaram do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando que invocaram a inconstitucionalidade nas alegações de recurso de apelação e que esse é ainda momento adequado para invocar uma questão de inconstitucionalidade.
6. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação. Embora reconhecendo que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, o Senhor Procurador-Geral Adjunto entende que ‘o recurso de constitucionalidade é de qualificar como «manifestamente infundado», nos termos e para os efeitos do n.º 2 do art. 76º da Lei n.º 28/82, já que não pode manifestamente inferir-se da consagração na Lei Fundamental de um direito social
– como é o invocado «direito à habitação» – a oponibilidade ao legítimo proprietário de um imóvel, abusivamente ocupado e fruído, ao longo do tempo, sem qualquer título – e que acabou de ver o seu direito judicialmente reconhecido – de uma pretensão ao diferimento da desocupação, que seja susceptível de paralisar a imediata exequibilidade da sentença condenatória proferida’.' Recebido o recurso no tribunal a quo em cumprimento do decidido pelo Tribunal Constitucional, escreveu-se nas conclusões das alegações apresentadas pelos ora recorrentes:
'1º) Nos arts. 1º e 22º do DL 293/77 previa-se o diferimento da desocupação de casa para habitação, nomeadamente nas acções em que se pedisse a entrega judicial de imóvel, como é o caso dos autos;
2º) Porém, o art. 3º/1-c) do diploma preambular do RAU veio originar, aparentemente, a revogação expressa do citado diploma na sua integralidade;
3º) Dever-se-á, contudo, entender que a formulação desse art. 3º/1c) não pretende abranger os preceitos referentes às acções de restituição de posse e de entrega judicial de imóvel, ou outras em que esteja em causa a habitação de imóveis, pois o RAU veio especial e especificamente regulamentar as relações jurídicas locatícias, não se pronunciando – nem o devendo fazer – sobre as demais hipóteses de desocupação habitacional, pois que estas estão (ou podem estar) já reguladas em diplomas específicas;
4º) E se no RAU não existe qualquer disposição que, à semelhança do que dispõe o art. 22º do DL 293/77, faça aplicar determinados aspectos do regime do arrendamento às ex-acções de entrega judicial, tal não significará que estas acções não merecem alguma da protecção deste regime, mas antes que tal extensão de regime a estas outras formas de desocupação se revela desnecessária visto que tal previsão consta (ou pode já constar) de diploma específico;
5º) Se assim não se entender, estaremos então na presença de um absurdo retrocesso social, que inquinaria aquele preceito – ou essa sua interpretação – de inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos arts. 65º e 81º da Constituição da República Portuguesa.' Não foram apresentadas alegações por parte dos recorridos. Cumpre agora decidir. II. Fundamentos Como é sabido e o próprio Tribunal Constitucional já reiteradamente afirmou
(Acórdãos n.ºs 21/87, 339/87, 279/92 e 186/00, publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5º, 1985, pp. 403-409, e Diário da República, II série, de 23 de Novembro de 1992), não cabe à jurisdição constitucional intervir em controvérsias doutrinárias ou jurisprudenciais, para além do que o impõe a apreciação da conformidade constitucional das normas que lhe incumbe apreciar. Pelo que a justeza da interpretação dada pelo tribunal a quo à norma revogatória da alínea c) do n.º 1 do artigo 3º (e seu proémio) do decreto preambular do Regime do Arrendamento Urbano (Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro) não está agora em discussão. Neste momento só releva a questão da conformidade constitucional da norma revogatória tal como foi entendida e aplicada pela decisão recorrida – ou seja, no sentido de que a revogação do 'direito anterior relativo às matérias reguladas no Regime do Arrendamento Urbano' e a menção do Decreto-Lei n.º 293/77, de 20 de Junho na alínea c) do n.º 1 do artigo 3º deste Regime entre os diplomas designadamente (e, portanto, expressamente) revogados implicou a revogação total do Decreto-Lei n.º 293/77, de 20 de Junho. Está em causa, em particular, a revogação dos artigos 1º e 22º deste Decreto-Lei n.º 293/77, dos quais resultava a extensão da possibilidade de diferimento judicial da desocupação de prédio urbano, prevista para o arrendamento para habitação, ao caso de acção em que se peça a restituição da posse de prédio urbano ocupado, ainda que provisória, ou a sua entrega judicial. Para o recorrente, os parâmetros constitucionais violados seriam o artigo 65º
(Habitação e Urbanismo) e o artigo 81º (Incumbências prioritárias do Estado) em resultado de 'um absurdo retrocesso social'. Ora, podendo duvidar-se, não só da consagração de um princípio constitucional geral de 'proibição do retrocesso', como, ainda da própria conclusão pela existência de um retrocesso social (designadamente se, em perspectiva ampla, se considerar, não apenas a situação dos inquilinos existentes, mas, também, os efeitos de certas medidas sobre o mercado do arrendamento – já para não falar da situação dos senhorios), a ratio da desconformidade constitucional haverá de residir num ou noutro desses artigos invocados, e não em tal princípio. Em todo o caso, estando em jogo a desocupação de uma habitação, pode certamente confrontar-se a interpretação adoptada (ao menos implicitamente) na decisão recorrida com o teor do artigo 65º e com as duas primeiras alíneas do artigo 81º da Constituição (por as restantes serem manifestamente alheias ao que aqui está em causa).
É o que passa a fazer-se, começando justamente por estas duas alíneas do artigo
81º. A propósito deste artigo 81º salienta-se na doutrina que 'normas com grau de generalidade e de abstracção das als. a, c e d, por exemplo, terão bastante menos peso jurídico do que normas que implicam concretas obrigações do Estado – como, por exemplo, as als. e, h e j. Todavia, para além do seu significado na interpretação de outras normas constitucionais (e legais), todas podem, em certas circunstâncias, fundamentar não só inconstitucionalidades por omissão mas também, até, inconstitucionalidades por acção, quando se trate de concretas e definidas tarefas impostas ao Estado e este não só as realize como, ao invés, as contrarie directamente.' (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Anotada, Coimbra, 1993, pp. 398-399, anotação III ao artigo 81º). Na verdade, incumbências constitucionais como as de 'promover o aumento do bem-estar social e económico e da qualidade de vida do povo, em especial das classes mais desfavorecidas' (alínea a) do artigo 81º da Constituição – aliás, também dita na obra citada 'menos concreta do que a al. d) do art. 9º') e de
'operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento' (alínea b) do mesmo artigo – 'um dos vários afloramentos do princípio constitucional da igualdade material ou igualdade real') só poderiam fundamentar uma inconstitucionalidade por acção quando a intervenção legislativa contrariasse directamente uma tarefa constitucionalmente imposta ao Estado –
único sujeito passivo dos referidos deveres, com as regiões autónomas e os municípios, como se escreveu no Acórdão n.º 32/97, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 36, pp. 203-208. Ora, em matéria de direito à habitação o que a Constituição impõe ao Estado consta do artigo 65º da Constituição, pelo que é, verdadeiramente, em face deste parâmetro que há-de proceder, ou improceder, a pretensão do recorrente. Isto não obstante a norma do n.º 1 do artigo 22º do Decreto-Lei n.º 293/77, de
20 de Julho, em que a recorrente funda a sua pretensão de protecção (pugnando pela inconstitucionalidade da norma revogatória) ter um âmbito de aplicação que vai para além do direito à habitação ('1. O disposto nos artigos anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, às acções em que se peça a restituição da posse de prédio urbano ocupado, ainda que provisória, ou a sua entrega judicial' – itálico aditado). No referido Acórdão n.º 32/97 escreveu-se que, 'como se sublinhou nos Acórdãos ns. 130/92 e 131/92, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Julho de 1992, o ‘direito à habitação’, ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social (...) é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos ns. 2 a 4 do artigo 65º da Constituição. (...) Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada
‘reserva do possível’ (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais (...).' E no Acórdão n.º 633/95 (publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Abril de 1996) salientou-se: 'Como se ponderou já neste Tribunal, não pode aceitar-se como constitucionalmente exígível que a realização do direito à habitação esteja dependente de limitações intoleráveis e desproporcionadas dos direitos de terceiros, porventura também constitucionalmente consagrados, como é o direito de propriedade privada (cfr. Acórdão n.º 101/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992); de outro ângulo, o cidadão só pode exigir o cumprimento do direito à habitação nas condições e nos termos definidos por lei, ou seja, depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo (cfr. Acórdão n.º 130/92, publicado no Jornal Oficial citado, II Série, de 24 de Julho de 1992).' Ora, em nenhum dos diversos números do artigo 65º da Constituição, designadamente nas três alíneas do n.º 2, é cometida ao Estado uma terefa da qual resulte, de alguma forma, a obrigação geral de manter soluções jurídicas anteriomente estabelecidas em relação ao que o Preâmbulo do Decreto-Lei n.º
293/77 designou como o 'problema dos despejos', designadamente quando, no quadro de uma reforma global do regime do arrendamento urbano, decide alterar algumas soluções vigentes e características daquele regime. O que logo mostra que nenhuma limitação obrigava o legislador a manter a opção tomada no diploma de 1977 e confessada no referido preâmbulo: isto é, a de
'reforçar até aos limites do possível a tutela dos interesses do réu no respectivo processo.' (itálico aditado) Sendo o legislador livre, em face do disposto no artigo 65º da Constituição, de revogar o Decreto-Lei n.º 293/77 sem manter as soluções nele consagradas, é claro que não há inconstitucionalidade em tal revogação. Nem se diga, aliás, que a revogação em causa se afigura violadora do princípio da igualdade devido à manutenção de um regime de diferimento das desocupações para o caso de cessação de contrato de arrendamento para habitação (artigos 102º e seguintes do Regime do Arrendamento Urbano). Tal alegação não consideraria a diferença – que constitui justificação razoável para uma distinção de regimes – entre a desocupação de um prédio pelos arrendatários, isto é, por quem o ocupava com fundamento no título que é o contrato de arrendamento para habitação, e a pura e simples restituição de posse de prédio ocupado sem qualquer título. Ora, é justamente em consideração da relação jurídica locatícia que se prevê tal diferimento da desocupação, a facultar na decisão da acção de despejo, não violando o princípio da igualdade a falta de extensão desse regime a outras acções em que se peça a restituição de posse, ou a entrega judicial, do prédio. Por outro lado, como notou o Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal quando se pronunciou a propósito da reclamação que deu origem ao Acórdão n.º 685/99, não pode 'inferir-se da consagração na Lei Fundamental de um direito social – como é o invocado ‘direito à habitação’ – a oponibilidade ao legítimo proprietário de um imóvel, abusivamente ocupado e fruído, ao longo do tempo, sem qualquer título – e que acabou de ver o seu direito reconhecido – de uma pretensão ao diferimento da desocupação, que seja susceptível de paralizar a imediata exequibilidade da sentença condenatória proferida.' Tanto mais que, como na mesma oportunidade salientou ainda o Ministério Público,
'(...) o artigo 930º - A do CPC tutela, no âmbito da execução para entrega de coisa certa, o interesse do executado que possa ser privado da casa de habitação principal, permitindo, não apenas a suspensão do despejo por motivo de doença, mas cometendo ao tribunal, no n.º 2 de tal preceito, o encargo de comunicar às entidades assistenciais competentes a iminência da desocupação – por esta via se direccionando o ‘direito social’ à habitação para a entidade a que o mesmo é efectivamente oponível: o Estado e demais entidades públicas' O presente recurso tem, pois, de improceder. III. Decisão Nestes termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao presente recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita. Custas pelos recorrentes, com 15 (quinze) unidades de conta sw taxa de justiça.
Lisboa, 24 de Outubro de 2001 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Bravo Serra Guilherme da Fonseca (com declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa DECLARAÇÃO DE VOTO Acompanhei o acórdão quando se analisa a questão jurídico-constitucional na
óptica dos parâmetros constitucionais que o recorrente alega terem sido violados e que 'seriam o artigo 65º (Habitação e Urbanismo) e o artigo 81º (Incumbências prioritárias do Estado) em resultado de ‘um absurdo retrocesso social’'. Manifestei, porém, dúvidas e que o acórdão não dissipou quando nele se diz não haver inconstitucionalidade na revogação do Decreto-Lei nº 293/77, de 20 de Julho, por não se afigurar tal revogação 'violadora do princípio da igualdade devido à manutenção de um regime de diferimento das desocupações para o caso de cessação de contrato de arrendamento para habitação (artigos 102º e seguintes do Regime do Arrendamento Urbano)'. Isto porque aquele diploma consagrou medidas de protecção do réu e de terceiros na acção de cessação de arrendamento (artigos 1º e seguintes) e estendeu-as 'às acções em que se peça a restituição da posse do prédio urbano ocupado, ainda que provisória, ou a sua entrega judicial' (artigo 22º, nº 1). Tais medidas transitaram em grande parte para o Regime do Arrendamento Urbano, como se conhece no acórdão, mas com a revogação em bloco do Decreto-Lei nº
293/77, face ao artigo 3º, nº 1, c), do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, teria desaparecido aquela extensão. Isto marca uma diferença que parece não constituir 'justificação razoável para uma distinção de regimes', para usar as palavras do acórdão, pois trata-se sempre da mesma situação fáctica relacionada com o diferimento das desocupações, em que deve colher mais proveito a parte desfavorecida, que é o arrendatário ou simples ocupante de prédio de habitação (estes são o que merecem mais protecção, a protecção da sua casa, do seu lar, e não é o titulo do contrato de arrendamento a fazer prevalecer tal diferença). Guilherme da Fonseca