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Processo n.º 265/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
A., ora recorrente, foi condenado, pela 4.ª Vara Criminal do Porto, pelos crimes de contrafação de moeda, falsificação de documento, burla qualificada e arma proibida.
Inconformado, interpôs recurso do acórdão condenatório para o Tribunal da Relação do Porto, que lhe negou provimento em acórdão de 24 de outubro de 2012.
Por ainda inconformado, veio o recorrente interpor recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro [LTC]).
Convidado a melhor identificar as normas cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciadas, veio o recorrente dizer, em requerimento, o seguinte:
“A Decisão proferida em 1ª instância pelo Tribunal Criminal do Porto e o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto adotam um entendimento normativo do artigo 217º, nº 1, do Código Penal, conjugado com o artigo 256º, nº 1, alínea e), e nº 3, do mesmo Código Penal, no sentido de que, tendo o arguido apresentado a pagamento um cheque falso, tal conduta consubstancia um concurso real ou efetivo de crimes, devendo, por isso, o referido arguido ser condenado pela prática de dois crimes, concretamente pelo crime de burla, p. e p. artigo 217º, nº 1, do Código Penal, por utilizar, para a consumação de tal crime (burla), um cheque falso, e ainda pelo crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alínea e), e nº 3, do Código Penal, por usar o referido cheque falso.
Com o devido e merecido respeito, tal entendimento normativo é inconstitucional, por violação do princípio previsto no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, que estipula que ninguém pode ser condenado mais do que uma vez pela prática dos mesmos factos.
No modesto entendimento do Arguido, ora Recorrente, a interpretação dada pelo Tribunal às normas constantes do citado artigo 217º, nº 1, do Código Penal, conjugado com o artigo 256º, nº 1, alínea e), e nº 3, do mesmo Código Penal está ferida de inconstitucionalidade.
A inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Tribunal à norma dos artigos 217º, nº 1, e 256º, nº 1, alínea e), e nº 3, do Código Penal já foi suscitada pelo Arguido/Recorrente nas suas motivações de recurso do Acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª Instância, inconstitucionalidade de interpretação que se pretende seja apreciada pelo Tribunal Constitucional.”
Pela Decisão sumária n.º 204/13 decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto, com a seguinte fundamentação:
“5. O objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, apenas pode traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e incidental) deste recurso, tal como o mesmo se encontra recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da natureza da própria função jurisdicional constitucional.
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade deverá, efetivamente, refletir-se na decisão recorrida, implicando a sua reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que apenas sucede quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
6. Ora, no caso dos autos, o recorrente alegou que o Tribunal da Relação do Porto teria interpretado o «artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, conjugado com o artigo 256º, nº 1, alínea e), e nº 3, do mesmo Código Penal, no sentido de que tendo o arguido apresentado a pagamento um cheque falso, tal conduta consubstancia um concurso real ou efetivo de crimes, devendo, por isso, o referido arguido ser condenado pela prática de dois crimes» (cfr. requerimento de aperfeiçoamento, fls. 2715 dos autos).
Acontece, porém, que esta interpretação não teve lugar.
7. De facto, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto afirma (cfr. fls. 2596 dos autos) que:
“Questiona o recorrente a interpretação do tribunal a quo acerca do concurso efetivo dos crimes acima referidos, apontando a sua inconstitucionalidade, por violação do art. 29.º, n.º 5, da CRP.
O entendimento sufragado na decisão recorrida encontra suporte no Ac. do STJ n.º 8/2000, publidado no DR I-A de 23.05.2000, que fixou jurisprudência no seguinte sentido:
«No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do art. 256.º, n.º 1, al. a), e do art. 217.º, n.º 1, respetivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, verifica-se concurso real ou efetivo de crimes»
Como se argumenta nesse acórdão, trata-se de bens jurídicos diferentes os protegidos com as incriminações dos dois artigos, pelo que, tendo presente o preceituado no art. 30.º, n.º 1, do CP, têm de considerar-se dois crimes em concurso efetivo, não sendo rigorosamente os mesmos factos, razão por que não estamos perante um julgamento mais do que uma vez pelos mesmos factos”
Importa notar que, conforme resulta do acórdão recorrido supra transcrito, o Tribunal recorrido não aplicou, efetivamente, os preceitos referidos na interpretação reputada de inconstitucional pela recorrente.
Em passo algum defende o Tribunal da Relação do Porto que «tendo o arguido apresentado a pagamento um cheque falso, tal conduta consubstancia um concurso real efetivo de crimes» (cfr. requerimento de aperfeiçoamento, fls. 2715 dos autos). O Tribunal da Relação do Porto, pelo contrário, cita o Assento n.º 8/2000, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado na 1.ª Série - A do Diário da República, em 23 de maio 2000, que fixou jurisprudência no sentido de «No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do art. 256.º, n.º 1, al. a), e do art. 217.º, n.º 1, respetivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, verifica-se concurso real ou efetivo de crimes» (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, p. 153, fls. 2596 dos autos). Assim, de acordo com a decisão recorrida, para que se verifique a situação de concurso real efetivo de crimes não basta a apresentação a pagamento de um cheque falso, como refere o recorrente, sendo, pelo contrário, necessário que a conduta do agente preencha as previsões dos dois crimes em causa. Para que tal aconteça é necessário proceder à análise de uma factualidade distinta para ambos os crimes e que vai para além da apresentação do cheque falso – o que o acórdão recorrido fez (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, pp. 151 ss., fls. 2594 ss. dos autos). O Tribunal recorrido refere, expressamente, que não são os mesmos factos – mas factos diferentes – que são apreciados no âmbito das incriminações dos dois artigos em questão.
8. A interpretação invocada pelo recorrente não teve, pois, lugar, não se cumprindo este requisito legal para a admissão do recurso. Termos em que, na falta do preenchimento do requisito processual em causa, não é possível conhecer do recurso.”
Vem agora o recorrente reclamar daquela decisão com os seguintes fundamentos (fls. 2736-2737 dos autos):
“Deste modo, no caso dos outos, o Arguido não foi condenado pela prática de factos suscetíveis de preencher a previsão estabelecida na alínea a), do nº 1 , do artigo 256º do Código Penal mas pela prática de factos suscetíveis de preencher a previsão estabelecida na alínea e), do nº 1, do artigo 256º do Código Penal.
Acresce que, conforme resulta dos autos e consta dos factos provados, os factos que sustentam a condenação do Arguido pelo prática dos dois crime pelos quais vinha acusado - crime de falsificação de documento e crime de burla - são os mesmos.
Na verdade, não houve atuações distintas por parte do Arguido que preenchessem, por um lado, a previsão do crime de falsificação de documento e, por outro, a previsão do crime de burla.
Houve apenas e só uma atuação por parte do Arguido que o Tribunal considerou preencher autonomamente dois tipos legais de crime diferentes – o crime de falsificação de documento e o crime de burla.
Acontece que, no modesto entendimento do Arguido, no caso dos autos, o uso, a utilização de um documento falso para praticar um crime de burla não consubstancia a prática autónoma, do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1 al. e), do Código Penal, encontrando-se antes tal atuação abrangida ou incorporada (consumação) pelo crime de burla de que o arguido vinha acusado e foi condenado.
No modesto entendimento do Arguido, o crime de falsificação por que foi condenado não tinha, como não tem, autonomia face ao crime de burla por que também foi condenado.
De facto, no modesto entendimento do Arguido, o documento em causa nestes autos mais não é do que o meio utilizado pelo Arguido para tentar receber o quantia titulada no cheque, quantia que acabou por não ser paga por se ter verificado que o cheque não era genuíno.
Ou seja, o documento (cheque) em causa mais não era do que o meio utilizado pelo Arguido para a prática do alegado crime de burla.
De resto, se o arguido não tivesse usado tal documento (cheque), apresentando-o a pagamento por forma a tentar receber o dinheiro a que alegadamente não tinha direito, não teria praticado qualquer crime, concretamente o crime de falsificação de que vinha acusado.
Entende, assim, o Arguido, com o devido e merecido respeito, que se verifica um concurso aparente entre os crimes pelos quais vinha acusado e foi condenado, concretamente entre o crime de burla, p. e p. pelo artigo 217º, nº 1, do Código Penal, e o crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, al. e), do Código Penal.
Pelo que, a interpretação resultante do douto Acórdão recorrido de que no caso de a conduta do agente preencher as previsões dos crimes de falsificação de documento e de burla dos artigos 256º, nº 1, alínea e) e do artigo 217º, nº 1 do Código Penal, respetivamente, verifica-se um concurso real ou efetivo de crimes é inconstitucional, por violação do princípio constitucional previsto no artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual ninguém pode ser condenado mais do que uma vez pela prática dos mesmos factos.
Por estas considerações é que o Arguido/Recorrente vem reclamar junto de V.s Exas para que se conheça do objeto do recurso interposto para este Altíssimo Tribunal, como é da mais elementar justiça.”
Notificado, o Ministério Público apresentou resposta, manifestando a sua concordância com a decisão reclamada, pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação. Refere, nesse sentido que (fls. 2745-2746 dos autos):
“1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 204/2013, não se conheceu do objeto do recurso porque a interpretação invocada pelo recorrente não tivera lugar no Acórdão recorrido, que era o proferido pela Relação do Porto, que negou provimento ao recurso interposto da decisão condenatória proferida em 1.ª instância.
2º
Efetivamente, lendo a peça processual que apresentou na sequência do despacho-convite de fls. 2718, constata-se que o ali afirmado não corresponde ao que no acórdão recorrido se consignou, como claramente se demonstra na douta Decisão Sumária.
3º
Ora, é com o requerimento de interposição do recurso que se fixa o seu objeto e se definido este se constata que a interpretação acolhida no acórdão recorrido não corresponde à identificada, não poderá, naturalmente, conhecer-se do recurso, sendo desnecessária a averiguação sobre se se verificaram, ou não, outros requisitos de admissibilidade.
4º
No caso dos autos, se o recorrente entendia que o uso do documento falso não estava abrangido pelo que o Supremo Tribunal de Justiça decidira pelo Acórdão n.º 8/2000, devia ter suscitado, clara e adequadamente, na motivação do recurso para a Relação, uma questão de inconstitucionalidade normativa que radicasse nesse entendimento.
5.º
Também clara e inequivocamente, devia ter reafirmado essa mesma questão de inconstitucionalidade no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal.
6.º
Ora, não foi esse o procedimento processual adotado.
7.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Nos presentes autos foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso, por falta de efetiva aplicação da norma invocada como inconstitucional pelo tribunal recorrido – a Decisão sumária n.º 204/13.
A presente reclamação, depois de descrever a factualidade subjacente ao caso, apresenta como motivação que: «os factos que sustentam a condenação do Arguido pela prática dos dois crimes pelos quais vinha acusado (…) são os mesmos» pelo que «se verifica um concurso aparente entre os crimes pelos quais vinha acusado e foi condenado, concretamente o crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, e o crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea e), do Código Penal». Assim, a interpretação do Tribunal recorrido de que «no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, al. a), e do artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, respetivamente, verifica-se concurso real ou efetivo de crimes é inconstitucional, por violação do princípio constitucional previsto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, segundo o qual ninguém pode ser condenado mais do que uma vez pela prática dos mesmos factos» (cfr. reclamação para a conferência, fls. 2736, frente e verso, dos autos).
A presente reclamação não imputa qualquer vício ou erro à Decisão sumária. Toda a argumentação desenvolvida tem por objetivo demonstrar que o mesmo comportamento concreto do arguido foi interpretado como preenchendo as previsões de dois crimes distintos.
No entanto, a Decisão sumária n.º 204/13 teve como fundamento o facto de a “norma”, identificada no requerimento de recurso, não ter sido aplicada na decisão recorrida.
De facto, o recorrente alegou que o Tribunal da Relação do Porto teria interpretado o «artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, conjugado com o artigo 256º, nº 1, alínea e), e nº 3, do mesmo Código Penal, no sentido de que tendo o arguido apresentado a pagamento um cheque falso, tal conduta consubstancia um concurso real ou efetivo de crimes, devendo, por isso, o referido arguido ser condenado pela prática de dois crimes» (cfr. requerimento de aperfeiçoamento, fls. 2715 dos autos). A Decisão sumária concluiu que esta interpretação não teve lugar.
A reclamação, ao apresentar como argumentos em contrário que os factos dados como provados no caso concreto apenas diriam respeito a um comportamento e que esse comportamento concreto do arguido foi interpretado como preenchendo as previsões de dois crimes distintos, não contraria o fundamento da Decisão sumária.
8. O reclamante limita-se a insurgir-se contra o enquadramento jurídico-penal dos factos, adotado nas instâncias.
Ora, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional tem natureza estritamente normativa, não contemplando a apreciação da conformidade constitucional da decisão judicialmente proferida.
III – Decisão
9. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 21 de maio de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.