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Processo n.º 279/2013
Plenário
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. O Presidente da República requereu, ao abrigo do disposto no artigo 278.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e artigos 51.º, n.º 1, e 57.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação preventiva da constitucionalidade da norma constante da segunda parte do n.º 1 do artigo 8.ºdo Anexo do Decreto n.º 128/XII, quando conjugada com as normas dos artigos 4.ºe 5.º do mesmo Anexo, com fundamento:
a) na violação das normas do n.º 1 do artigo 20.º e do n.º 4 do artigo 268.º,conjugadas com o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), na medida em que a norma impugnada restringiu, de forma desproporcional, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva; e
b) na violação das normas do artigo 13.º da CRP, na medida em que se considera que a norma sindicada feriu o princípio da igualdade, por ter discriminado infundadamente, no plano garantístico, os cidadãos cujos litígios se encontrem sujeitos à arbitragem necessária do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) em relação a cidadãos cujo litígio se encontrem também submetidos a outras formas de arbitragem necessária.
É a seguinte a fundamentação do pedido:
1º
A norma impugnada consta do decreto nº 128/XII da Assembleia da República que cria o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) e suscita as dúvidas de constitucionalidade a seguir mencionadas.
I. Enquadramento factual
2°
A norma do nº 1 do artigo 1º do Anexo do Decreto nº 128/XII define o TAD como uma entidade jurisdicional de natureza arbitral e independente, nomeadamente, da Administração Pública e dos organismos do sistema desportivo, atribuindo-lhe o nº 2 do mesmo preceito competência específica para administrar litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou que se relacionem com a prática do desporto.
3º
Nos termos do decreto em apreciação, o TAD é investido na competência para julgar, tanto os litígios submetidos pelo mesmo diploma a um regime de arbitragem necessária (artigos 4° e 5°,) como também outros litígios que as partes decidam submeter-lhe em sede de arbitragem voluntária e que sejam, nos termos legais, passíveis de decisão arbitral (artigos 6° e 7°).
4°
No plano da definição das suas competências exercidas na qualidade de jurisdição arbitral necessária, cumpre ao TAD nos termos do diploma sindicado, conhecer:
a) Dos 'litígios emergentes dos atos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina' (nº 1 do artigo 4°);
b) Dos 'recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria das normas antidopagem ' previstas na legislação aplicável (artigo 5°).
5º
Em matéria recursória, o diploma, tanto em sede de arbitragem necessária como de arbitragem voluntária, prevê no proémio do nº 2 do seu artigo 8° e nas respetivas alíneas que a estrutura do T AD inclua uma instância superior designada 'câmara de recurso ', competente para julgar recursos dos colégios arbitrais interpostos de decisões que:
a) Sancionem infrações disciplinares previstas em lei ou regulamentos disciplinares aplicáveis;
b) Estejam em contradição com outra decisão arbitral do TAD já transitada em julgado no domínio da mesma normação e sobre a mesma questão fundamental de direito (salvo se as primeiras se mostrarem conformes com decisão ulterior, entretanto tomada sobre a questão pela câmara de recurso).
Ainda no plano recursório
6º
Se bem que o diploma salvaguarde, no nº 3 do artigo 8° do seu Anexo, o direito de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e a faculdade de 'impugnação da decisão' nos termos da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV)', a norma prevista na terceira parte do nº 1 do mesmo artigo determina que 'as decisões proferidas, em única ou última instância, pelo TAD são insuscetíveis de recurso '.
Assim,
7º
Enquanto uma regra geral da irrecorribilidade das decisões arbitrais para os tribunais estaduais se aplica, sem mais, às decisões do TAD, sempre que este funcione como tribunal arbitral necessário, já no que sucede à arbitragem voluntária que seja exercida por esta entidade jurisdicional, a irrecorribilidade é fundamentada numa disposição especial ínsita na parte final do nº 1 do artº 8°, a qual determina que 'a submissão do litígio ao Tribunal implica (...) a renúncia' ao direito de recorrer.
Ora,
8°
Resultando a arbitragem necessária de uma imposição legal que, à margem da vontade dos litigantes, subtrai uma determinada ordem de litígios à competência imediata dos tribunais estaduais para a atribuir, obrigatoriamente, à competência de um tribunal arbitral, existem fundadas dúvidas sobre se a regra da irrecorribilidade das decisões do TAD para os tribunais estaduais, sempre que este funcionar como como jurisdição arbitral necessária, não violará o direito de acesso ao aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, bem com o principio da igualdade, consagrados, respetivamente, no nº 1 do artigo 20 e no artigo 13° da CRP.
II. O Direito
9º
Sempre prevaleceu no Tribunal Constitucional um entendimento maioritário, segundo o qual, o nº 2 do artº 209º da CRP inclui, explicitamente, os tribunais arbitrais como uma, de entre as diversas categorias de tribunais que se encontram constitucionalmente previstas, daqui resultando o reconhecimento de que os mesmos entes exerceriam a função jurisdicional e que a 'jurisdictio não tem necessariamente de ser exercida por juízes' na medida em que 'certos litígios podem ser decididos por árbitros, em resultado de convenção ou disposição da lei' (cfr. Ac nº 52/92).
10º
De acordo com a jurisprudência vertente sobre a matéria, este critério valerá para os diversos tipos de tribunais arbitrais, tendo o Tribunal Constitucional, no Ac. n° 52/92, reconhecido que a Constituição para o efeito da admissibilidade de instâncias arbitrais, 'não distingue, expressamente, entre tribunais arbitrais voluntários e tribunais arbitrais necessários '.
11º
Assim, a submissão legal de certos litígios de natureza administrativa à arbitragem necessária resulta ser constitucionalmente admissível desde que observadas certas garantias inseparáveis na natureza obrigatória de maior vertente publicista deste tipo de arbitragem, já que se estará perante uma lei que, restringindo a autonomia privada de pessoas individuais e coletivas, impõe às partes a submissão dos referidos litígios a um 'exercício privado da função jurisdicional' do qual resulta o afastamento, a título imediato, da competência dos tribunais estaduais (Ac nº 230/86).
12º
Esta necessidade de previsão explícita de garantias especiais na arbitragem necessária pode ser recolhida na jurisprudência constitucional, cumprindo destacar a título exemplificativo, os seguintes passos de alguns arestos:
a) No tocante à inclusão do regime jurídico dos tribunais arbitrais necessários na reserva de lei parlamentar, ela impor-se-á '(...) sempre que a legislação sobre aqueles tribunais afete ou contenda com a definição da competência dos tribunais estaduais ' (. . .), 'competência - bem entendido - naquele nível ou grau em que ela entra na reserva parlamentar - e que não será um qualquer'( Ac nº 32/87);
b) 'O tribunal arbitral necessário é um instituto distinto, pela sua origem, do tribunal arbitral voluntário; surge em virtude de ato legislativo e não como resultado de negócio jurídico de Direito privado. Daí, o seu caráter tipicamente publicistico. Por esse facto, a imparcialidade de julgamento, que na arbitragem voluntária poderia, em tese, mostrar-se assegurada pela livre concertação de vontades vertida no compromisso arbitral postula, aqui, um outro tipo de garantias'( Ac. nº 52/92);
c) 'Merece o entendimento deste Tribunal naquele acórdão, uma adaptação à situação em causa, em especial pela novidade do regime de arbitragem necessária agora instituído. Para tal, deve partir-se do direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, que a todos assegura o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (artigo 20.º n.ºs 1 e 5, da CRP), de que a garantia aos administrados de uma tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas (artigo 268.º, n. ° 4) não é mais do que a sua concretização no plano da jurisdição administrativa'. (Ac. n° 2/2013).
13º
De entre as especiais garantias que envolvem a arbitragem necessária, relevam as que a doutrina destaca no contexto das conexões entre o mesmo tipo de arbitragem e os direitos, liberdades e garantias, problematizando-se em determinadas situações a 'cobertura constitucional' dos tribunais arbitrais necessários, já que, porque 'impostos por lei', implicam 'que os litigantes ficam impedidos de recorrer diretamente aos tribunais ordinários que normalmente seriam competentes, podendo por isso pôr em causa não apenas o direito de acesso aos tribunais (. . .), mas também o princípio da igualdade'',
14°
O direito do acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no nº 1 do artº 20º da CRP, inscreve-se no catálogo dos direitos, liberdades e garantias e não impõe, tal como sustenta a jurisprudência constitucional ( Ac. 31/97 e 595/98) e a doutrina', um duplo grau de jurisdição, exceto em matéria penal (nº 1 do artº 32º da CRP) e, eventualmente, em matéria disciplinar e sancionatória, bem como nas situações em que esse meio se tome uma 'garantia imprescindível' de direitos, liberdades e garantias
15°
Em qualquer caso, foi já observado no n° 5 deste requerimento que, em sede de arbitragem voluntária e necessária, o Decreto nº 128/XII consagra um duplo grau de jurisdição, embora de natureza puramente 'interna', quando admite a interposição de recurso dos colégios arbitrais do TAD para uma 'câmara de recurso' do mesmo tribunal, relativamente a um conjunto restrito de decisões referentes a matéria disciplinar (que se reporta fundamentalmente à matéria submetida a arbitragem necessária) bem como à oposição de julgados.
16°
Pese o facto de a jurisprudência reconhecer liberdade de conformação ao legislador para poder criar, ou não, um duplo grau de jurisdição no universo dos tribunais estaduais, fora dos domínios onde a Constituição o imponha, cumpre observar que essa liberdade de conformação não é transponível, sem mais, para os tribunais arbitrais, atentas as suas características diferenciais em relação aos tribunais estaduais, importando aferir se a consagração da faculdade de interposição de recurso para os segundos não constituirá uma garantia essencial de tutela jurisdicional efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
17º
No que respeita à arbitragem voluntária, a submissão de um litígio à via arbitral resulta, exclusivamente, de uma manifestação da autonomia da vontade das partes, pelo que não levantará dúvidas de constitucionalidade:
a) Que se estipule legalmente a irrecorribilidade da decisão arbitral para os Tribunais estaduais, salvo se as partes tiverem convencionado o contrário, tal como resulta do n° 4 do artigo 39° da LAV;
b) Que se faça equivaler a submissão de um litígio a uma instância arbitral voluntária, a qual resulta da autonomia da vontade das partes, a uma manifestação tácita de renúncia ao mesmo recurso, tal como prevê o nº 1 do artigo 8º do Decreto nº 128/XII.
18.º
Tratando-se, contudo, de arbitragem necessária, encontram-se prejudicados alguns dos requisitos fundamentais que na arbitragem voluntária justificam a irrecorribilidade das decisões arbitrais para os tribunais estaduais, dado que, no que em especial diz respeito à atividade desenvolvida pelo TAD, enquanto na arbitragem voluntária as partes seguem a via arbitral e renunciam ao recurso porque assim o decidem em liberdade, já na arbitragem necessária, as partes não recorrem porque a lei que lhes impõe a via arbitral as impede de recorrer.
19°
É o nexo de conexão entre a imposição legal da jurisdição arbitral às partes, quando esteja em causa a resolução de certo tipo de litígios do ordenamento desportivo (artigos 4° e 5° do diploma), com a simultânea proibição de acesso mediato das mesmas partes aos tribunais estaduais por via da regra da irrecorribilidade das decisões do TAD (nº 1 do artigo 8°), que supõe uma afetação desfavorável das garantias contenciosas dos administrados.
20º
No âmbito do contencioso administrativo, onde se coloca o âmago das questões submetidas à arbitragem necessária do TAD, a primeira questão que se coloca é a da admissibilidade do nível de redução que o diploma sindicado determina em relação às garantias de tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos das partes no que tange a litígios que, até ao presente, têm sido dirimidos pelos tribunais administrativos e que por força do diploma em exame passariam a ficar sujeitos à arbitragem necessária do mesmo tribunal.
21°
Determinando o disposto no n° 2 do art° 4° do Decreto nº 128/XII que a competência do TAD como tribunal arbitral necessário abrange as modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) que forem aplicáveis, salvo 'disposição em contrário e sem prejuízo do disposto no número seguinte', verifica-se que enquanto no regime legal em vigor, os litígios emergentes das decisões finais das federações, ligas e outras entidades desportivas são recorríveis junto dos tribunais administrativos, já ao abrigo do referido Decreto, esses litígios passariam a ser subtraídos a esses tribunais e atribuídos à competência do TAD.
22°
Ora, essa subtração de competência em favor do TAD não é acompanhada da previsão de idênticas garantias contenciosas que o nº 4 do artº 268º da CRP assegura genericamente aos administrados, através dos tribunais estaduais, na medida em que a matéria do Título VII do CPTA, referente aos recursos, ficaria afastada, o que significa que:
a) As partes que dispõem, presentemente, de legitimidade para recorrer, por exemplo, de decisões de improcedência de pedidos de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, bem como de decisões sobre o mérito da causa que, em primeiro grau de jurisdição, se reportam a processos de valor superior à alçada do tribunal recorrido, deixariam, por força do novo diploma, de poder recorrer das decisões do TAD que respeitem a essas situações surpreendendo que o valor da causa releve para efeito do cálculo da taxa de arbitragem (nº 2 do artigo 76º, mas não como fundamento para a interposição de recurso);
b) As partes que são, no tempo presente, titulares do direito a recorrer de decisões em matéria sancionatória proferidas pelos tribunais administrativos para tribunais estaduais (decisões que envolvem, amiúde, a afetação de direitos fundamentais ligados ao exercício da profissão), deixariam de poder recorrer das decisões do TAD proferidas nesta matéria para tribunais estaduais, ficando o seu recurso limitado a uma instância superior do mesmo tribunal.
23º
Mesmo no que respeita à segunda questão referida no número anterior e no plano das garantias de acesso a uma tutela jurisdicional efetiva, tal como resultam da articulação do nº 1 do artigo 20° com o nº 4 do artigo 268° da CRP, não parece ser admissível a equiparação de um recurso interposto para uma instância superior do mesmo tribunal arbitral a um recurso interposto de decisão de um tribunal estadual para outro tribunal estadual ou, ainda, um recurso de um tribunal arbitral para um tribunal estadual, na medida em os tribunais arbitrais não são, tal como reconhece o próprio Tribunal Constitucional no Ac nº 230/86, 'tribunais como os outros '.
24º
Na verdade, essa equiparação, medida no plano da efetividade da tutela jurisdicional não parece ser pacífica, já que existem elementos distintivos estruturais entre os dois tipos de jurisdição nos quais importa atentar, a saber:
a) Os tribunais estaduais são órgãos de soberania, o mesmo não sucedendo com os tribunais arbitrais (Ac. n° 230/86);
b) Os tribunais estaduais envolvem o exercício público da função jurisdicional, enquanto aos tribunais arbitrais envolveriam um modo de 'exercício privado' da mesma função (Ac. nº 230/86),0 que ocorre mesmo numa arbitragem necessária onde é mais pragnante a dimensão publicista do tribunal;
c) Os juízes são nomeados, colocados, transferidos, promovidos e sancionados, no contexto de um processo público, por um órgão administrativo independente de relevância constitucional, o Conselho Superior da Magistratura, enquanto os árbitros são, maioritariamente, escolhidos pelas partes, o que, sem prejuízo das exigências legais de independência dos mesmos árbitros, envolve por parte destes, menores níveis garantísticos de imparcialidade e de independência do que os dos juízes;
d) Enquanto o Ministério Público se encontra presente nos tribunais estaduais em representação dos interesses do Estado e dos incapazes e tendo em vista defender a 'independência dos tribunais na área das suas atribuições '( cfr. alínea f) do nº 1 do artigo 3° do Estatuto do Ministério Público)', já nos tribunais arbitrais parece assente que a lei não atribui competência ao Ministério Público para representar as mesmas entidades e, consequentemente, para garantir a independência dessas instâncias;
e) Pontifica um princípio de subordinação dos tribunais arbitrais em relação aos tribunais estaduais';
f) A justiça arbitral, sendo em regra mais abreviada, é financeiramente mais onerosa em função das custas processuais, cumprindo a este propósito atentar nos artigos 76° e seguintes do diploma sindicado em matéria de taxa de arbitragem e encargos do processo arbitral.
25°
Importa, ainda, referir que alguns dos litígios de ordem administrativa que o diploma impugnado passa a submeter à arbitragem necessária podem, no regime legal ainda vigente, ser submetidos ao regime da arbitragem voluntária, aplicando-se, subsidiariamente, a regra do n° 2 do artigo 186° do CPTA e o disposto na alínea b) do artigo 37° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais' (ETAF) que preveem a interposição de recurso de decisões proferidas por tribunal arbitral para o Tribunal Central Administrativo (TCA).
26º
Sucede que a norma impugnada do Decreto nº 128/XII, ao transpor um conjunto de litígios em matéria desportiva, da esfera de competência dos tribunais administrativos para um tribunal arbitral necessário, cujas decisões serão irrecorríveis para os tribunais estaduais, diminui, sem justificação razoável, garantias contenciosas previamente existentes consagradas no CPTA e no ETAF, reduzindo o nível e o âmbito de proteção de direitos fundamentais e de interesses legalmente protegidos, na medida em que elimina o recurso para o TCA de decisões proferidas nessas matérias, tanto pelos tribunais administrativos como, nalgumas situações, por tribunais arbitrais voluntários.
27º
A norma sindicada restringe, assim, um direito, liberdade e garantia que, nos termos do nº 1 do art° 20° e também no nº 4 do artigo 268° da CRP, consiste no direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, ao vedar o acesso, não apenas imediato, mas também mediato, das partes aos tribunais estaduais, relativamente a litígios que antes se situavam no âmbito da competência destes últimos.
28º
Despontam, por conseguinte, pertinentes dúvidas a respeito da conformidade da restrição que a norma constante da segunda parte do nº 1 do art° 8° do diploma sindicado determina ao exercício do direito fundamental previsto no artigo 20° da CRP, com as exigências de respeito pelo princípio da proporcionalidade que deve reger a afetação desfavorável do referido direito, tal como a Constituição impõe no nº 2 do seu artigo 18°.
29º
Com efeito, é questionável a necessidade da adoção de uma medida restritiva tão onerosa, e virtualmente inédita no julgamento de litígios por jurisdições arbitrais necessárias, tendo eventualmente em vista o descongestionamento dos tribunais administrativos em relação a certas questões do ordenamento desportivo, já que não se registou sequer uma preocupação de ordem gradualista em prever o direito ao recurso para os tribunais estaduais embora limitado a certos pressupostos essenciais, tendo-se optado, ao invés, por uma pura e simples ablação desse direito.
30º
Mais dúvidas emergem, ainda, a propósito da observância do critério proporcionalidade em sentido estrito, dado que o sacrifício manifesto do direito de acesso aos tribunais estaduais e de uma garantia de tutela jurisdicional efetiva pela norma impugnada: a) Não se encontra justificado na salvaguarda de qualquer outro direito fundamental;
b) Não visa, sequer, a salvaguarda de um interesse constitucionalmente protegido que detenha uma essencialidade ou um peso equivalente ou superior àquele que subjaz ao bem jurídico que é sacrificado com a restrição, não se tendo por materialmente justificado que a irrecorribilidade das decisões do TAD, como jurisdição arbitral necessária, para os tribunais administrativos, se possa fundar no objetivo de se evitar a congestão destes tribunais (a qual inexiste) ou de constituir a única via para a tomada de uma decisão em prazo razoável, tendo em vista o disposto no nº 4 do artigo 20° da CRP.
31º
Atentos os exemplos proporcionados pelos escassos regimes de arbitragem necessária existentes, nos quais se prevê, invariavelmente, um direito ao recurso da decisão arbitral para os tribunais estaduais (vide, recentemente o n.º 7 do artigo 3° da Lei nº 62/2011, relativamente a litígios em matéria de propriedade industrial relativos a medicamentos), entende-se que:
a) O regime legal 'sub iuditio' introduziu uma exceção inédita com efeitos ablativos na consagração dessa garantia, pois não tendo as partes a opção de não submeter os seus litígios ao TAD, seriam as mesmas impedidas em absoluto de acederem mediatamente aos tribunais estaduais por via de recurso;
b) A exceção referida revela-se materialmente injustificada 'à luz do princípio da proporcionalidade efetivando, nestes termos, uma restrição arbitrária, porque desproporcional, no direito de acesso aos tribunais e à efetividade da tutela jurisdicional.
32°
E não se argumente que a norma do nº 3 do artigo 8° do Anexo do diploma compensaria a regra da irrecorribilidade das decisões do TAD proferidas enquanto jurisdição arbitral necessária, na medida em que salvaguardaria a possibilidade das partes as impugnarem com os fundamentos previstos na LAV, dado que o recurso e a impugnação das decisões são institutos diferentes, tal como resulta da própria LAV que, no nº 4 do seu artigo 39°, regula as condições de interposição do recurso para os tribunais estaduais e no seu artigo 46° dispõe sobre a impugnação da sentença, operada, em regra, sob a forma de pedido de anulação da decisão arbitral.
33º
Enquanto o recurso consiste num meio processual de impugnação do mérito da decisão, suscetível de renúncia, a impugnação da sentença por via da anulação é por regra irrenunciável' e tem como fundamento da sua convocação, a par da inobservância das normas do compromisso arbitral, a violação de parâmetros objetivos tais como os princípios fundamentais da arbitragem ou de ordem pública internacional do Estado português bem como das regras de competência, forma e capacidade das partes que regem o processo arbitral.
34°
Por conseguinte, um meio impugnatório como o que abrange a anulação de decisão centrada em razões objetivas não supre, num plano de suficiência ou efetividade garantística no acesso a uma tutela jurisdicional, um instituto recursório onde se questiona o próprio mérito da decisão arbitral.
35º
Nestes termos, sustenta-se que norma da segunda parte do n° 1 do artigo 8° quando articulada com os artigos 4° e 5° do Anexo do Decreto impugnado, viola o nº 1 do artigo 20º e o nº 4 do artº 268° da CRP, em conjugação com o nº 2 do artº18° da mesma Constituição.
Paralelamente,
36º
Cumpre constatar que os cidadãos que são parte em determinados litígios em matéria desportiva e sujeitos, por esse facto, à jurisdição arbitral necessária do TAD são tratados, no plano das suas garantias contenciosas, mais desfavoravelmente do que outros cidadãos que sejam parte nos demais litígios submetidos à arbitragem necessária, na medida em que os segundos têm tido, sempre, a faculdade de recorrer para os tribunais estaduais das decisões arbitrais, o mesmo não sucedendo com os primeiros.
Ora,
37º
A discriminação negativa de que as partes das relações arbitrais necessárias julgadas pelo TAD são casuisticamente submetidas no plano das suas garantias contenciosas de acesso aos tribunais estaduais, em face dos demais cidadãos envolvidos em litígios julgados por instâncias arbitrais necessárias, pelo facto de não assentar num fundamento material razoável ou entendível, configura uma decisão arbitrária e viola, por isso mesmo, o principio da igualdade, previsto no artigo 13° da Constituição da República.
38°
Importa, finalmente, tomar presente que a solução normativa inconstitucional consagrada no nº 1 do art° 8° do Decreto nº128/XII, relativamente a litígios do ordenamento desportivo, releva não apenas pela natureza da matéria que dela é objeto, mas pelo perigoso precedente que pode vir a gerar para outros domínios materiais, no sentido de se ter doravante como legítimo que o legislador possa livremente subtrair aos tribunais estaduais a resolução de quaisquer litígios que envolvam direitos disponíveis e cometê-los a tribunais arbitrais necessários, associados a um défice de garantias de acesso à tutela jurisdicional gerado pela irrecorribilidade das decisões arbitrais para os tribunais comuns.
Notificada para o efeito previsto no artigo 54º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), a Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos.
Elaborado o memorando a que alude o artigo 58º da LTC e fixada a orientação do Tribunal, cabe decidir.
II. Fundamentação
Teor das normas impugnadas e delimitação do pedido
2. O Presidente da República requer a apreciação preventiva da constitucionalidade da norma constante da segunda parte do n.º 1 do artigo 8.º do Anexo do Decreto n.º 128/XII, quando conjugada com as normas dos artigos 4.º e 5.º do mesmo Anexo.
Essas disposições têm a seguinte redação:
Artigo 4.º
Arbitragem necessária
1— Compete ao TAD conhecer dos litígios emergentes dos atos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina.
2— Salvo disposição em contrário e sem prejuízo do disposto no número seguinte, a competência definida no número anterior abrange as modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos que forem aplicáveis.
3— O acesso ao TAD só é admissível em via de recurso das decisões dos órgãos jurisdicionais das federações desportivas ou das decisões finais de outras entidades desportivas referidas no n.º 1, não dispensando a necessidade de fazer uso dos meios internos de impugnação, recurso ou sancionamento dos atos ou omissões referidos no n.º 1 e previstos nos termos da lei ou de norma estatutária ou regulamentar.
4— Cessa o disposto no número anterior sempre que a decisão do órgão jurisdicional federativo ou a decisão final de outra entidade desportiva referida no n.º 1 não haja sido proferida no prazo de 30 dias úteis, sobre a autuação do correspondente processo, caso em que o prazo para a apresentação do requerimento inicial junto do TAD é de 10 dias, contados a partir do final daquele prazo.
5— É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim suscetível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.»
Artigo 5.º
Arbitragem necessária em matéria de dopagem
Compete ao TAD conhecer dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem, nos termos da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, que aprova a lei antidopagem no desporto.»
Artigo 8.º
Natureza definitiva das decisões arbitrais
1— Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as decisões proferidas, em única ou última instância, pelo TAD são insuscetíveis de recurso, considerando-se que a submissão do litígio ao Tribunal implica, no caso de arbitragem voluntária, a renúncia ao mesmo.
2— São passíveis de recurso, para a câmara de recurso, as decisões dos colégios arbitrais que:
a) Sancionem infrações disciplinares previstas pela lei ou pelos regulamentos disciplinares aplicáveis;
b) Estejam em contradição com outra, já transitada em julgado, proferida por um colégio arbitral ou pela câmara de recurso, no domínio da mesma legislação ou regulamentação, sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se conformes com decisão subsequente entretanto já tomada sobre tal questão pela câmara de recurso.
3— Fica salvaguardada, em todos os casos, a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e de impugnação da decisão com os fundamentos e nos termos previstos na LAV.
4— São competentes para conhecer da impugnação referida no número anterior o Tribunal Central Administrativo do lugar do domicílio da pessoa contra quem se pretende fazer valer a sentença, no tocante a decisões proferidas no exercício da jurisdição arbitral necessária, ou o Tribunal da Relação do lugar do domicílio da pessoa contra quem se pretende fazer valer a sentença, no tocante a decisões proferidas no exercício da jurisdição arbitral voluntária, previstas nesta lei.
5— A ação de impugnação da decisão arbitral não afeta os efeitos desportivos validamente produzidos pela mesma decisão.»
Embora no pedido se não identifique, de forma expressa, a norma que, extraída da 2.ªparte do n.º 1 do artigo 8.º e dos artigos 4.º e 5.º do Anexo ao Decreto n.º128/XII, se pretende ver apreciada, resulta da respetiva fundamentação, e designadamente do articulado nos n.ºs 7 e 8, que o que o requerente questiona é a irrecorribilidade para os tribunais do Estado das decisões proferidas pelo TAD no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária.
Será, pois, esta a norma sobre que recairá a pronúncia do Tribunal Constitucional.
Regime do Decreto n.º 128/XII: Tribunal Arbitral do Desporto
3. O Decreto n.º 128/XII cria o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), atribuindo-lhe competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto (artigo 1.º), aprovando em anexo a Lei que estabelece a natureza, a competência, a organização e os serviços do TAD e as regras dos processos de arbitragem e de mediação a submeter ao TAD (artigo 2º).
Do mesmo passo, revoga, entre outras disposições, o artigo 18º da Lei n.º 5/2007, de 16 de janeiro, que, sob a epígrafe «Justiça desportiva», define o regime processual aplicável aos litígios emergentes de atos e omissões das federações desportivas e das ligas profissionais, no âmbito do exercício de poderes públicos, e delimita o âmbito do recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva.
Segundo o disposto no Anexo ao Decreto n.º 128/XII, o Tribunal Arbitral do Desporto é uma entidade jurisdicional independente, nomeadamente dos órgãos da administração pública do desporto e dos organismos que integram o sistema desportivo, dispondo de autonomia administrativa e financeira, e que tem competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto (artigo 1º).
O TAD exerce a sua jurisdição em todo o território nacional e tem a sua sede no Comité Olímpico de Portugal, ao qual incumbe promover a respetiva instalação e funcionamento (artigos 1º, n.º 4, e 2º).
No julgamento dos recursos e impugnações que lhe sejam cometidos, o TAD goza de jurisdição plena, em matéria de facto e de direito (artigo 3º).
Por outro lado, as competências do TAD são desenvolvidas em duas vertentes: a arbitragem necessária, que abrange os litígios emergentes de atos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina, bem como para conhecer dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem (artigos 4º e 5º); e a arbitragem voluntária, que poderá ter como objeto os litígios que, sendo suscetíveis de decisão arbitral nos termos da lei da arbitragem voluntária, não estejam abrangidos pela arbitragem necessária e se relacionem direta ou indiretamente com a prática do desporto, incluindo os litígios emergentes de contratos de trabalho desportivo (artigo 6º).
São elementos integrantes da organização e funcionamento do TAD o Conselho de Arbitragem Desportiva, o presidente, o vice-presidente, os árbitros, o conselho diretivo e o secretariado (artigo 9.º). Ao Conselho de Arbitragem Desportiva cabe estabelecer a lista de árbitros do TAD, com base nas propostas apresentadas pelas entidades referidas no artigo 21º, e designar os árbitros que são da sua livre escolha, bem como designar os árbitros que integram a câmara de recurso (artigo 11.º, n.º 1, alínea a)). Ao presidente incumbe representar o Tribunal nas suas relações externas, coordenar a sua atividade e convocar e dirigir as reuniões do conselho diretivo (artigo 14.º).
Nos termos do artigo 28º, n.º 1, a jurisdição do TAD, no âmbito da sua competência arbitral necessária, é exercida por um colégio de três árbitros, de entre os constantes da lista do Tribunal, que é fixada nos termos dos artigos 20º e 21º.
Cada parte designa um árbitro e os árbitros assim designados devem escolher outro, que atua como presidente do colégio de árbitros (n.º 2), com as exceções que resultam dos números subsequentes desse artigo.
São passíveis de recurso para a câmara de recurso as decisões dos colégios arbitrais quando possuam caráter sancionatório ou estejam em contradição de julgados (artigo 8º, n.º 2), sendo a câmara constituída pelo presidente, ou, em sua substituição, o vice-presidente do TAD, e oito árbitros, de entre os da lista do Tribunal, designados pelo Conselho de Arbitragem Desportiva (artigo 19º).
As decisões proferidas pelo TAD em única ou última instância, consoante o caso, são definitivas, salvo a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional ou pedido de anulação perante um tribunal estadual, nos termos do artigo 46º da Lei de Arbitragem Voluntária (artigos 8º, n.º 2, e 48º).
4. O referido Decreto n.º 128/XII teve origem na Proposta de Lei n.º 84/XII, da iniciativa do Governo, que foi submetida a discussão parlamentar conjuntamente com o Projeto de Lei n.º 236/XII, da iniciativa do grupo parlamentar do PS, que igualmente previa, ainda que com certas diferenças de regime, uma instância de arbitragem com a mesma designação de Tribunal Arbitral do Desporto.
A Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 84/XII explica a criação de um“Tribunal Arbitral do Desporto” como uma «medida justificada pela necessidade de o desporto possuir um mecanismo alternativo de resolução de litígios que se coadune com as suas especificidades de justiça célere e especializada».
E é esse objetivo que o Decreto n.º 128/XII pretende concretizar através de dois diferentes mecanismos: a criação de uma instância arbitral necessária à qual é atribuída em exclusivo a competência para conhecer de litígios que tenham por objeto atos ou omissões dos órgãos das federações desportivas e das entidades que nelas se integrem, que envolvam o exercício de poderes públicos (artigo 4º,n.º 1); a instituição de um modelo de jurisdição interna que resulta da atribuição de natureza definitiva às decisões arbitrais e obsta à interposição de recurso para um tribunal estadual, nos termos em que o permite o artigo 39º,n.º 4, da Lei de Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro).
O diploma preconiza, nestes termos, um sistema de autorregulação da justiça desportiva, privilegiando a resolução de litígios decorrentes de atos ou regulamentos administrativos emitidos pelos órgãos federativos através de uma entidade jurisdicional independente com competências exclusivas, e cuja atividade fica à margem do aparelho jurisdicional do Estado.
Parece impor, deste modo, um modelo de jurisdição privativa que se assemelha ao previsto para as instâncias desportivas internacionais, com destaque para as principais associações que regem o futebol profissional. No plano europeu, a UEFA determina no artigo 60.° dos seus Estatutos que as associações filiadas devem prever disposições que assegurem que os litígios relativos à aplicação dos seus estatutos e regulamentos sejam remetidos, nos termos da legislação nacional, para instâncias de arbitragem imparcial e independente, com exclusão dos tribunais comuns. No plano global, a FIFA, por seu turno, determina no artigo 64.º dos Estatutos que os seus filiados deverão reconhecer o Tribunal Arbitral de Lausanne como autoridade judicial independente (n.° 1), e proíbe, salvo se expressamente admitido pelos regulamentos da FIFA, o recurso aos tribunais judiciais (nº 2). E consagra também a obrigatoriedade de inclusão de determinação nos estatutos e regulamentos das associações filiadas impedindo o recurso aos tribunais comuns e obrigando o recurso à arbitragem, e admitindo a imposição de sanções a quem recorrer aos tribunais comuns (sobre estes aspetos, PEDRO DELGADO ALVES, anotação ao acórdão do STA de 10 de setembro de 2008, publicado nos Cadernos de Justiça Administrativa n.º 83, págs. 27-28).
O que é de concluir é que a instância jurisdicional prevista no Anexo ao Decreto n.º128/XII se caracteriza como um tribunal arbitral, com a especialidade de não permitir, no domínio da arbitragem necessária, o recurso da decisão de mérito para um tribunal estadual, e não como um tribunal especializado em matéria desportiva, o que implicaria a integração na orgânica dos tribunais administrativos (quanto à possibilidade de constituição de secções especializadas nos tribunais administrativos, cfr. o artigo 9º, n.º 4, do ETAF). E, por outro lado, ainda que o TAD seja definido como entidade jurisdicional independente com “competência específica para administrar a justiça”, ele funciona, em rigor, como um centro de arbitragem de caráter institucionalizado, na medida em que a função jurisdicional é efetivamente exercida pelo árbitro único ou pelo colégio de árbitros a quem compete, nos termos do respetivo regime processual, proferir a decisão arbitral.
Regime jurídico atualmente aplicável em matéria de justiça desportiva
5. Ainda que, por vezes, pudesse ter-se suscitado a dúvida quanto à natureza das federações desportivas, foi sempre entendimento dominante que essas entidades, mesmo que fossem tidas como pessoas coletivas de direito privado, na medida em que dispusessem do estatuto de utilidade pública, beneficiavam de prerrogativas de autoridade no exercício de uma missão de serviço público, de tal modo que os atos unilaterais que praticassem nessa qualidade, fossem individuais ou normativos, assumiam a natureza de atos administrativos, sendo contenciosamente impugnáveis junto da jurisdição administrativa (Parecer da Procuradoria Geral da República n.º 14/1985, BMJ n.º 359, pág. 189; acórdão do STA (Pleno) de 30 de abril de 1997, Cadernos de Justiça Administrativa (CJA) n.º 4, pág. 3).
A questão veio entretanto a ser solucionada pela primeira Lei de Bases do Sistema Desportivo (Lei n.º 1/90, de 13 de janeiro), que considerou as federações desportivas como pessoas coletivas de direito privado a que poderiam ser atribuídos, mediante o estatuto de utilidade pública desportiva, poderes de regulação e disciplina desportiva (artigos 21º e 22º) e cujas decisões e deliberações definitivas eram impugnáveis nos termos gerais de direito, salvo no que se refere a questões estritamente desportivas que tivessem por fundamento a violação de normas de natureza técnica ou de caráter disciplinar, que não eram impugnáveis nem suscetíveis de recurso fora das instâncias internas (artigo 25º).
Esses princípios basilares foram mantidos com a Lei de Bases do Desporto (Lei n.º30/2004, de 21 de julho), que veio a introduzir uma inovação apenas no conceito de questões estritamente desportivas, identificando exemplificativamente como tal as «questões de facto e de direito emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respetivas provas», e excluindo do seu âmbito de aplicação «as decisões e deliberações disciplinares relativas a infrações à ética desportiva, no âmbito da dopagem, da violência e da corrupção» (artigos 46º e 47º).
A Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, aprovada pela Lei n.º 5/2007, de 16 de janeiro, atualmente em vigor, efetuou uma nova clarificação, agora quanto à identificação da jurisdição competente para o conhecimento dos litígios emergentes de relações jurídicas desportivas, passando a dispor no seu artigo 18º o seguinte:
1- Os litígios emergentes dos atos e omissões dos órgãos das federações desportivas e das ligas profissionais, no âmbito do exercício dos poderes públicos, estão sujeitos às normas do contencioso administrativo, ficando sempre salvaguardados os efeitos desportivos entretanto validamente produzidos ao abrigo da última decisão da instância competente na ordem desportiva.
2- Não são suscetíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas.
3-São questões estritamente desportivas as que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de caráter disciplinar, enquanto questões emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respetivas competições.
4-Para efeitos do disposto no número anterior, as decisões e deliberações disciplinares relativas a infrações à ética desportiva, no âmbito da violência, da dopagem, da corrupção, do racismo e da xenofobia não são matérias estritamente desportivas.
5-Os litígios relativos a questões estritamente desportivas podem ser resolvidos por recurso à arbitragem ou mediação, dependendo de prévia existência de compromisso arbitral escrito ou sujeição a disposição estatutária ou regulamentar das associações desportivas.
Deste preceito decorre a sujeição à jurisdição administrativa dos atos praticados pelas federações desportivas no exercício dos seus poderes de regulação e disciplina da atividade desportiva. Essa é, por outro lado, uma consequência lógica da natureza pública dos poderes que lhe são confiados pelo Estado ao abrigo da concessão do estatuto de utilidade pública desportiva.
A mesma ilação é possível extrair, ainda que a título de direito transitório, da Lei antidopagem no desporto, que adota na ordem jurídica interna as regras estabelecidas no Código Mundial Antidopagem.
Nos termos do artigo 53.º dessa Lei, «a decisão de aplicação de coima, assim como o valor fixado para a mesma, são passíveis de impugnação para o Tribunal Arbitral do Desporto», sendo igualmente recorríveis, nos mesmos termos, «as decisões dos órgãos disciplinares federativos ou da Autoridade Antidopagem de Portugal»,salvo, neste caso, quando se trate de violações cometidas por praticante desportivo de nível internacional ou em eventos internacionais, que são recorríveis para o Tribunal Arbitral do Desporto de Lausanne (artigo 60.º, n.ºs 1 e 3).
No entanto, e por efeito da norma transitória do n.º 3 do artigo 77.º do mesmo diploma, «até à criação e funcionamento do Tribunal Arbitral do Desporto, a impugnação das decisões de aplicação de coima ou de sanção disciplinar é feito para o tribunal administrativo competente».
6. Essa mesma conclusão se extrai do Regime Jurídico das Federações Desportivas (RJFD), que consta do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro.
As federações desportivas são pessoas coletivas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos que, englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, praticantes, técnicos, juízes e árbitros e outras entidades, se proponham promover, regulamentar e dirigir a nível nacional a prática de uma modalidade desportiva ou um conjunto de modalidades (artigo 2º).
Apresentando-se como uma associação livremente constituída por particulares, não pode deixar de ser tida como uma pessoa coletiva privada a que se aplica subsidiariamente o regime jurídico das associações de direito privado (artigo 4º).
É a concessão do estatuto de utilidade pública que confere a uma federação desportiva a competência para o exercício, em exclusivo, dos poderes regulamentares e disciplinares relativos à respetiva modalidade desportiva, sendo esses poderes caracterizados como sendo de natureza pública (artigos 10ºe 11º).
Por outro lado, o RJFD consigna, tal como prevê o já transcrito artigo 18º da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, que os litígios emergentes dos atos e omissões dos órgãos das federações desportivas, no âmbito do exercício de poderes públicos, estão sujeitos às normas do contencioso administrativo (artigo 12º).
7. Nos termos da legislação vigente, é hoje entendimento pacífico que são os tribunais administrativos os competentes para conhecer das deliberações dos órgãos das federações desportivas, no exercício de poderes públicos, quando não se trate de questões estritamente desportivas (acórdão do STA de 10 de setembro de 2009, Processo n.º 120/08, publicado nos CJA n.º 83, pág. 12; VITAL MOREIRA, Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1997, pág. 305; PEDRO GONÇALVES, Entidades Privadas com Poderes Públicos, Coimbra, 2005, págs. 862-863).
Por outro lado, o que deve entender-se por questões estritamente desportivas surge agora delimitado negativamente pela disposição do n.º 4 do artigo 18º da Lei n.º 5/2007. São questões que resultem da aplicação das regras do jogo, que, como tal, não poderão qualificar-se como atos administrativos por não constituírem a expressão de um poder público; mas não podem considerar-se como matérias dessa natureza, para efeitos da impugnabilidade contenciosa, as decisões disciplinares que respeitem a infrações à ética desportiva, no âmbito da violência, da dopagem, do racismo e da xenofobia.
É ainda este conceito que a jurisprudência administrativa tem procurado densificar, para efeito de definir o âmbito de competência dos tribunais administrativos em matéria de justiça desportiva. Decidiu-se não constituir questão estritamente desportiva: a deliberação que ordenou a classificação final de um campeonato de futebol, na sequência da desclassificação de um outro clube (acórdão do STA de 10 de setembro de 2009, Processo n.º 120/08); o ato de cancelamento de uma licença desportiva e de suspensão preventiva de um desportista (acórdãos do STA de 7 de junho de 2006, Processo n.º 262/06, publicado nos CJA n.º 59, pág. 41, e do TCA Sul de 26 de janeiro de 2006, Processo n.º 1270/05); a punição disciplinar a um treinador por agressão a um árbitro no decorrer de um jogo (acórdão do TCA Sul de 16 de outubro de 2008, Processo n.º 4293/08); a deliberação que condena à suspensão de uma época desportiva quando à participação em certas provas desportivas (acórdão do TCA Sul de 6 de outubro de 2011, Processo n.º 6925/10).
Mais relevante é, no entanto, o acórdão do STA de 10 de setembro de 2009, há pouco citado, que, convocando o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição, efetuou uma interpretação restritiva do artigo 25º, n.º 1, da Lei n.º 1/90 (correspondente ao atual artigo 18º, n.º 3, da Lei n.º 5/2007), de modo a não se considerarem questões estritamente desportivas subtraídas à jurisdição do Estado, as decisões que ponham em causa direitos fundamentais, direitos indisponíveis ou bens jurídicos protegidos por outras normas jurídicas para além dos estritamente relacionados com a prática desportiva.
O acórdão vem assim sublinhar que as decisões das entidades desportivas que possam pôr potencialmente em causa valores estruturantes da ordem jurídica não podem ficar subtraídas à jurisdição do Estado, assimilando um conceito aberto quanto aos limites da jurisdição administrativa no âmbito do fenómeno desportivo, que poderá fundar a extensão da competência contenciosa dos tribunais para salvaguarda da tutela jurisdicional efetiva e do direito de acesso aos tribunais.
Questões de constitucionalidade
8. O requerente suscita a questão da constitucionalidade da norma da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 8.º, conjugada com as normas dos artigos 4.º e 5.º do Anexo ao Decreto n.º 128/XII, na medida em que impõe a jurisdição arbitral às partes, quando esteja em causa a resolução de certo tipo de litígios do ordenamento desportivo, e simultaneamente proíbe, por via da regra da definitividade das decisões arbitrais, o acesso mediato aos tribunais estaduais para defesa dos interesses legalmente protegidos.
Invocando poder estar aí em causa o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20º, n.º 1, e o direito à tutela jurisdicional efetiva no âmbito da justiça administrativa, a que se refere o artigo 268º, n.º 4, entendidos em conjugação com o disposto no artigo 18º, n.º 2, e ainda o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
São estas as questões que cabe dilucidar.
A Constituição prescreve, a propósito da função jurisdicional, que a lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos (artigo 202º, nº 4), e faz expressa referência, no artigo 209º, n.º2, aos tribunais arbitrais e aos julgados de paz.
Qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros por si designados, podendo a convenção de arbitragem ter por objeto um litígio atual, ainda que se encontre afeto a um tribunal judicial (compromisso arbitral), ou litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (cláusula compromissória) (artigo 1º, n.º 3, da LAV).
Os tribunais arbitrais estão previstos como uma categoria autónoma de tribunais e encontram-se submetidos a um estatuto funcional similar ao dos tribunais judiciais, e as suas decisões têm natureza jurisdicional, mas não são órgãos estaduais, correspondendo a sua atividade a um verdadeiro exercício privado da função jurisdicional (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/86).
9. Mais problemática é a questão de saber se a cobertura constitucional dos tribunais arbitrais abrange apenas os tribunais voluntários (isto é, os instituídos por vontade dos interessados) ou também os tribunais necessários (ou seja, os impostos por lei), visto que estes implicam que os litigantes fiquem impedidos de recorrer diretamente aos tribunais ordinários que seriam competentes, podendo, por isso, pôr em causa não apenas o direito de acesso aos tribunais, mas também o princípio da igualdade (expressando esta dúvida, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4ª edição, Coimbra, pág. 551; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, pág. 17).
Todavia, o Tribunal Constitucional tem extraído do expresso reconhecimento constitucional da possibilidade de existirem tribunais arbitrais, o entendimento de que, não só os cidadãos podem, no exercício da sua autonomia de vontade, constituir tribunais arbitrais para resolução de determinados litígios, como o próprio legislador pode criá-los para o julgamento de determinada categoria de litígios, impondo aos cidadãos neles implicados o recurso necessário a essa via de composição jurisdicional de conflitos (acórdãos nºs. 52/92, 757/95 e 262/98).
No entanto, a arbitragem necessária não releva da autonomia de vontade das partes e, nesse plano, apresenta contornos diversos dos simples tribunais arbitrais voluntários. Neste último caso, o litígio é cometido pelos interessados à decisão de árbitros, mediante uma convenção de arbitragem, desde que estejam apenas em causa interesses de natureza patrimonial ou as partes possam transacionar sobre o direito controvertido. A função jurisdicional dos tribunais arbitrais tem aqui natureza privada, na medida em que o seu fundamento imediato radica na liberdade contratual e na autonomia privada (PEDRO GONÇALVES, ob. cit., págs. 566 e 569). Isso explica que as partes possam determinar, por acordo, que o julgamento seja feito segundo o direito constituído ou segundo a equidade, ou por apelo à composição do litígio na base do equilíbrio dos interesses em jogo, e que só haja lugar a recurso da decisão arbitral se as partes tiverem previsto expressamente essa possibilidade e a causa não tiver sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável (artigo 39º da LAV).
Ao contrário, se por lei especial o litígio for submetido a arbitragem necessária, a decisão de recorrer à jurisdição arbitral não se baseia num negócio jurídico celebrado entre as partes, mas no ato legislativo que impõe essa forma de composição do litígio, ficando os interessados impedidos de aceder quer à jurisdição estadual, quer à arbitragem voluntária.
Como se reconheceu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 52/92, tratando-se de um instituto diverso da arbitragem voluntária – que impede as partes de recorrerem, por sua iniciativa, a um tribunal estadual -, a imparcialidade do julgamento, que na arbitragem voluntária se mostra assegurada, em tese, pela livre concertação de vontade vertida no compromisso arbitral, postula aqui um outro tipo de garantias.
10. Revertendo ao caso concreto, o que vem discutido é a sujeição dos interessados a uma arbitragem necessária, no âmbito da justiça desportiva, sem que concomitantemente se admita a possibilidade de recurso da decisão de fundo ou daquela que ponha termo à causa para um tribunal estadual.
Deve começar por dizer-se que essa não é solução legal prevista para os restantes casos em que se encontra especialmente cominada a arbitragem necessária.
No processo de expropriação por utilidade pública, a Lei n.º 166/99, de 4 de setembro, estabelece que, «na falta de acordo sobre o valor da indemnização, é este fixado por arbitragem, com recurso aos tribunais comuns» (artigo 38º, n.º1), regulando o subsequente artigo 52º a tramitação aplicável ao recurso da decisão arbitral. O Decreto-Lei n.º 259/2009, de 25 de setembro, que regulamenta a arbitragem obrigatória e a arbitragem necessária, bem como a arbitragem sobre serviços mínimos durante a greve, a que se referem os artigos 513º e 538º, n.º 4, alínea b), do Código do Trabalho, igualmente prevê o recurso da decisão arbitral para o tribunal da relação, nos termos previstos no Código de Processo Civil para o recurso de apelação (artigos 22º e 27º, n.º 6). A Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, que sujeita a arbitragem necessária, institucionalizada ou não institucionalizada, os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial relacionados com medicamentos de referência e medicamentos genéricos, contempla o recurso da decisão arbitral para o tribunal da relação (artigo 3º, n.º 7).
Como se referiu, o recurso da decisão arbitral para um tribunal estadual é também admissível no âmbito de arbitragem voluntária quando as partes expressamente o prevejam, salvo quando houver acordo quanto ao julgamento do pleito segundo a equidade, que corresponde a uma implícita renúncia ao recurso. E mesmo no caso de litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais, a Lei prevê que, quando as partes optem por recorrer a mecanismos de resolução extrajudicial de conflitos, se suspende o prazo para a propositura da ação judicial ou da injunção (artigo 15º, n.º 2, da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, na redação da Lei n.º 6/2011, de 10 de março).
11. A Constituição, embora admita a existência de tribunais arbitrais (artigo 209º,n.º 2), nada diz quanto à sua inserção no ordenamento jurisdicional, nem quanto à articulação com o direito de acesso à proteção judicial. Nem explicita o âmbito e a natureza dos litígios que podem ser submetidos à jurisdição desses tribunais.
Em todo o caso, a criação de tribunais arbitrais não pode deixar de se encontrar preordenada a outros princípios constitucionais e, de entre estes, à garantia de acesso aos tribunais e à garantia de reserva de jurisdição.
O artigo 202º, no seu n.º 1, define os tribunais como os «órgãos de soberania com competência para administrar a justiça», vindo a identificar, no n.º 2, o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados.
O entendimento comum é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais. Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito (sobre os diferentes níveis ou graus de reserva, cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 7ª edição, págs. 668-670; VIEIRA DE ANDRADE, A reserva do juiz e a intervenção ministerial em matéria de fixação das indemnizações por nacionalizações, in Scientia ivridica, Tomo XLVII, n.ºs 274/276, julho/dezembro, 1998, pág. 224).
A possibilidade de institucionalizar formas de composição não jurisdicional de conflitos, nos termos do n.º 4 desse mesmo artigo 202º, e de submissão de litígios a uma jurisdição arbitral, como prevê o n.º 2 do artigo 209º, não significa que o recurso a um tribunal estadual não seja ainda a principal via de acesso ao direito e que não possam ser estabelecidos, com base nessa reserva de jurisdição, certos limites à constituição de tribunais arbitrais.
E deverá ter-se presente que o direito de acesso aos tribunais, como direito fundamental correlacionado com a reserva da função jurisdicional, é também ele um “corolário lógico da tendencial resolução dos conflitos através de tribunais estaduais”. A este propósito PEDRO GONÇALVES observa que a garantia do artigo 20º, n.º 1, da Constituição, é a do «direito de acesso a tribunais estaduais, não tendo sentido dizer-se que ali se garante o acesso a tribunais a constituir por iniciativa dos interessados. O que a instituição de tribunais arbitrais voluntários representa, ou pode representar, é a voluntária renúncia ao direito de acesso aos tribunais do Estado» (ob. cit., pág. 565, nota 450).
A admitir-se esta asserção como válida para os tribunais arbitrais voluntários, por maioria de razão ela é aplicável aos tribunais arbitrais necessários, visto que a criação destes tribunais resulta de imposição legal e impede os interessados de recorrerem ao tribunal da ordem judiciária comum que seria normalmente competente para dirimir o conflito. E é nesse sentido que aponta o autor agora citado quando refere que «o facto de a Constituição incluir os tribunais arbitrais nas categorias de tribunais não assegura a constitucionalidade dos tribunais arbitrais necessários em todos os casos: só é pensável admitir a imposição da composição arbitral quando não se encontre vedado o acesso aos tribunais estaduais, hipótese que só se verifica se não estiver excluída a possibilidade de recurso da decisão arbitral para aqueles tribunais»(ob. cit., pág. 573).
O Tribunal Arbitral de Desporto, enquanto tribunal arbitral necessário, assume-se como uma forma de jurisdição privada, que se caracteriza pela sua natureza imperativa. O Estado, ao instituir uma entidade jurisdicional independente para administrar a justiça no domínio do ordenamento jurídico desportivo, renuncia ao exercício primário da função jurisdicional pública relativamente a esse tipo de litígios. O que se discute é se a garantia de acesso aos tribunais pode ser satisfeita através de uma jurisdição arbitral de modo a ficar sempre excluído um reexame judicial por um tribunal estadual, independentemente da natureza dos direitos e interesses que estejam em causa.
A questão que as normas impugnadas colocam, à luz de todas as precedentes considerações, é, pois, a de saber se é aceitável, em face do direito de acesso aos tribunais e do princípio da tutela jurisdicional efetiva, que se atribua uma autonomia plena à justiça desportiva, em termos de não ser possível, fora do âmbito de questões estritamente desportivas, qualquer interação com a organização judiciária estadual, com incidência sobre decisões de mérito.
12. A resposta a esta questão convoca uma outra ordem de análise.
Como se referiu, compete ao TAD, no âmbito da arbitragem necessária, conhecer dos litígios emergentes dos atos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina (artigo 4º, n.º1, do Anexo ao Decreto n.º 128 XII). As decisões dos colégios arbitrais que sancionem infrações disciplinares previstas pela lei ou pelos regulamentos disciplinares aplicáveis, são apenas passíveis de recurso para a câmara de recurso, ainda dentro da organização interna do TAD (artigo 8º, n.º 2, alínea a)).
Como também se observou, os poderes das federações desportivas exercidos no âmbito da regulamentação e disciplina da respetiva modalidade são de natureza pública, por efeito da delegação de poderes efetuada pela atribuição a essas entidades do estatuto de utilidade pública desportiva.
Os atos individuais e concretos produzidos no exercício dessa função são assim tidos como atos administrativos, do mesmo modo que são regulamentares as normas que essas entidades emanem no exercício de um poder público, e são impugnáveis quando possuam eficácia externa. Trata-se por isso, e em qualquer caso, de atos de autoridade.
No domínio do contencioso administrativo, a possibilidade de recurso à arbitragem não é inteiramente estranha aos litígios que envolvam o exercício de poderes de autoridade da Administração.
De acordo com o artigo 1.°, n.° 5, da LAV, «o Estado e outras pessoas coletivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, se para tanto forem autorizados por lei especial ou se elas tiverem por objeto litígios respeitantes a relações de direito privado». Resulta desse preceito que os litígios em matérias respeitantes a relações de direito privado, no âmbito das quais as entidades públicas figurem como se fossem sujeitos privados, podem ser submetidos a arbitragem nos termos gerais. Pelo contrário, a concretização de convenções arbitrais em matérias respeitantes a relações de direito administrativo depende da existência de lei especial que permita a respetiva celebração.
Tradicionalmente, ainda que por força de disposição especial, só eram admitidos tribunais arbitrais relativamente a direitos e obrigações disponíveis, relacionados com litígios de natureza jurídico-administrativa respeitantes a questões de responsabilidade civil da Administração ou de contencioso dos contratos administrativos (artigo 2º, n.º 4, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais de 1984). Entretanto, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) foi um pouco mais além, passando a permitir a constituição de tribunal arbitral para julgamento, não apenas dessas matérias, mas também de “questões relativas a atos administrativos que possam ser revogados sem fundamento na sua invalidade, nos termos da lei substantiva” e de“litígios emergentes de relações jurídicas de emprego público, quando não estejam em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional” (artigo 180º, n.º 1, alíneas c) e d)). Deixou, no entanto, uma ressalva: nos casos em que existam terceiros contrainteressados, o recurso à arbitragem é admissível desde que estes aceitem o compromisso arbitral (n.º 2).
A solução do artigo 180º, n.º 1, alínea c) do CPTA «parece assentar no entendimento de que os atos administrativos que, nos termos da lei, podem ser revogados sem fundamento em invalidade são atos disponíveis, no sentido em que a lei não exige a demonstração da respetiva invalidade para que a Administração os possa retirar da ordem jurídica, pelo que os litígios que se constituam em torno desses atos, como não dizem respeito a matéria indisponível, podem ser submetidos a arbitragem. Pelo contrário, quando estejam em causa atos administrativos que só possam ser removidos da ordem jurídica com fundamento em invalidade e, portanto, em condições vinculadas, o destino das situações jurídicas por eles constituídas não está na disponibilidade da Administração, pelo que lhe está vedado submeter a respetiva apreciação a um tribunal arbitral» (MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/CARLOS FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª edição, Coimbra, pág. 1148).
À partida, as questões relativas a atos administrativos que podem ser objeto de arbitragem são as que se referem a atos que possam ser revogados por razões de mérito, conveniência ou oportunidade e relativamente aos quais existe, por parte da Administração, um “poder administrativo de disposição sobre a vida do ato” (PEDRO GONÇALVES, ob. cit., pág. 578).
Certo é que o regime jurídico de arbitragem em matéria tributária, aprovado pela Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, confere competência aos tribunais arbitrais para apreciação da declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, de atos de fixação da matéria tributável quando não deu origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais (artigo 2.º).
Admitindo assim o controlo, através de arbitragem, da legalidade de atos da Administração Tributária, independentemente de poder tratar-se de atos juridicamente vinculados. Além de que acolhe, como regra geral, a irrecorribilidade da decisão proferida pelos tribunais arbitrais (artigo 25.º).
Trata-se aí, em todo o caso, de uma forma de arbitragem voluntária.
A solução preconizada no artigo 4.º do Anexo ao Decreto n.º 128/XII distingue-se, no entanto, de qualquer das previstas, quer no artigo 180.º, n.º 1, alínea c), do CPTA, quer na Lei n.º 10/2011. Prevê a arbitragem necessária como único meio de resolução dos litígios e não contém qualquer exceção relativamente aos atos administrativos que poderão ser objeto de apreciação em tribunal arbitral, na medida em que abrange todos os atos praticados no exercício de poderes de autoridade, incluindo os atos sancionatórios, para que reserva apenas um meio interno de impugnação.
Ora, a delegação de poderes públicos numa entidade privada apenas significa que esta, por um processo de transferência de responsabilidades, passa a ser uma instância de execução de uma função pública, e no exercício da qual se impõe a vinculação ao direito administrativo e a procedimentos de fiscalização pública. Não estamos perante a execução de uma tarefa que tenha passado para o setor privado, mas que se mantém como tarefa pública e que continua a ser da responsabilidade última do Estado.
A concessão ou delegação de poderes públicos corresponde assim a uma forma de prossecução de atividades de interesse público, de que o Estado é o titular originário, e relativamente às quais assume uma posição institucional de garante (sobre todos estes aspetos, PEDRO GONÇALVES, ob. cit., págs. 391-392).
Por outro lado, a sujeição de entidades privadas com poderes públicos à jurisdição administrativa resulta da competência-regra fixada no artigo 212º, n.º 3, da Constituição, que remete para os tribunais administrativos o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, e está expressamente consignada no artigo 4º, n.º 1, alínea d), do ETAF. E, assim, sem embargo da eventualidade da arbitragem, está liminarmente excluída a possibilidade de subtrair à apreciação dos tribunais estaduais os atos da entidade privada no exercício de poderes públicos, o que, desde logo, decorre imperativamente do direito de acesso aos tribunais e do princípio da tutela jurisdicional efetiva (idem, pág. 1070).
No caso vertente, a opção do legislador – ainda que não consentânea com o que sucede no âmbito do contencioso administrativo geral – foi a de instituir uma forma de arbitragem necessária e confiar à apreciação de árbitros todas as questões relacionadas com o contencioso de legalidade das decisões administrativas em matéria de desporto.
13. Fora dos casos individualizados na Constituição em que há lugar a uma reserva absoluta de jurisdição, o que sucederá não apenas em matéria penal mas sempre que estejam em causa direitos de particular importância jurídico-constitucional a cuja lesão deve corresponder uma efetiva proteção jurídica, poderá admitir-se que o direito de acesso aos tribunais seja assegurado apenas em via de recurso, permitindo-se que num momento inicial o litígio possa ser resolvido por intervenção de outros poderes, caso em que se poderá falar numa reserva relativa de jurisdição ou reserva de tribunal.
Poderá ser essa a situação quando estejam em causa litígios entre particulares que sejam carecidos de uma decisão definitiva e imparcial juridicamente vinculativa ou em casos de lesão de direitos e interesses dos particulares por decisões tomadas por autoridades públicas. E, em certas circunstâncias, poderá igualmente aceitar-se – face à consagração constitucional de tribunais arbitrais - que a reserva relativa de jurisdição possa ser concretizada através da única intervenção do juiz arbitral (GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, págs. 667 e 671).
A especificidade do direito público e a vinculação da atuação administrativa ao princípio da juridicidade e à realização do interesse público torna, no entanto, desde logo, discutível que a resolução de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas fique sujeita a mecanismos de jurisdição arbitral por não estar aí em causa uma autonomia de vontade e um poder de disposição sobre o objeto do pleito (VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 12ª edição, Coimbra, pág. 75, nota 124.
As dificuldades adensam-se quando estamos perante uma forma de arbitragem necessária e a autoridade administrativa implicada no processo arbitral é uma entidade privada que apenas intervém na execução de uma tarefa de interesse público por efeito da transferência do exercício de poderes pertencentes a uma entidade pública e que, apesar da transferência, se mantêm na sua titularidade.
Não é aceitável, num primeiro relance, que o Estado delegue poderes de autoridade numa entidade privada, operando por essa via uma privatização orgânica da Administração relativamente ao exercício de uma certa tarefa pública, e simultaneamente renuncie também a qualquer controlo jurisdicional de mérito, através de tribunais estaduais, quanto às decisões administrativas que sejam praticadas no quadro jurídico dessa delegação de competências.
Em tese geral, a exigência de previsão de um meio de recurso para um tribunal estadual, no quadro da arbitragem necessária, torna-se mais evidente, no plano jurídico-constitucional, quando não estão em causa meras relações de direito privado, nem meras relações jurídicas administrativas em que as partes se encontrem em situação de paridade, mas antes relações jurídicas que decorrem do exercício de poderes de autoridade.
Para além disso, a circunstância de estarem aqui implicados poderes de autoridade que resultam de uma transferência de responsabilidade no exercício de uma certa tarefa pública, de que o Estado é ainda o titular e por cuja execução continua a ser o garante, justifica que se invoque uma reserva relativa de juiz que proporcione aos tribunais estaduais a última palavra na resolução de litígios que resultem dessa intervenção administrativa delegada.
Ainda que os tribunais arbitrais constituam uma categoria de tribunais e exerçam a função jurisdicional, não pode perder-se de vista que essa é uma forma de jurisdição privada, que, no caso do Tribunal Arbitral do Desporto, é imposta obrigatoriamente aos potenciais lesados por decisões unilaterais praticadas por entidades desportivas no exercício de poderes de autoridade.
O direito fundamental de acesso aos tribunais constitui tendencialmente uma garantia de acesso a tribunais estaduais em resultado da necessária conexão entre esse direito e a reserva de jurisdição, que apenas poderá caracterizar uma reserva de jurisdição arbitral quando o acesso ao tribunal arbitral seja livre e voluntário. Ademais, a intervenção de órgãos judiciais do Estado torna-se particularmente exigível quando se trate de assegurar, no quadro regulatório da atuação de entidades privadas investidas em poderes públicos, a sua vinculação à lei e aos princípios materiais de juridicidade administrativa, e, desse modo, também, a adequada fiscalização do desempenho da tarefa pública que lhes incumbe.
Neste contexto, a irrecorribilidade das decisões arbitrais, tal como previsto na norma impugnada, representa uma clara violação do direito de acesso aos tribunais, não apenas por se tratar de decisões adotadas no âmbito de uma arbitragem necessária, mas também pela natureza dos direitos e interesses em jogo e pelo facto de estar em causa o exercício de poderes de autoridade delegados.
14. Ainda que assim não fosse sempre se poderia entender que a atribuição de uma autonomia plena à justiça desportiva mediante a sujeição a arbitragem necessária dos litígios emergentes do exercício de poderes públicos, por parte das entidades desportivas, corresponderia a uma restrição de um direito fundamental em desrespeito pelo princípio da proporcionalidade.
A criação de um Tribunal Arbitral do Desporto surge justificada pela «necessidade de o desporto possuir um mecanismo alternativo de resolução de litígios que se coadune com as suas especificidades de justiça célere e especializada».
É, todavia, questionável, à luz do princípio da necessidade (como pressuposto material da restrição legítima de direitos, liberdades e garantias), que a prossecução desse objetivo, para além da submissão imediata dos litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo a um tribunal arbitral, justifique também a própria exclusão do recurso para um tribunal estadual, tendo em consideração que a justiça desportiva contempla tradicionalmente o caso julgado desportivo, que permite, relativamente aos litígios emergentes dos atos dos órgãos das federações desportivas, que fiquem sempre «salvaguardados os efeitos desportivos entretanto validamente produzidos ao abrigo da última decisão da instância competente na ordem desportiva», que está hoje consagrado no artigo 18º, n.º 1, da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, e que é também reconhecido pelo n.º 5 do artigo 8º do Decreto n.º 128/XII em relação à ação de impugnação da decisão arbitral.
Esta circunstância impede naturalmente que a eventual demora na resolução definitiva do litígio, provocada pela intervenção de um tribunal estadual em sede de recurso, produza quaisquer efeitos negativos na organização e funcionamento das provas desportivas que às federações desportivas cabe especialmente dirigir e regulamentar. Mas ainda que assim não fosse, o risco de protelamento da resolução de litígios no âmbito da justiça desportiva sempre ocorreria em consequência da possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e de impugnação da decisão arbitral, a que se refere o n.º 3 daquele artigo 8º.
A solução mostra-se também excessiva e desrazoável quando é certo que o interesse de celeridade, uniformidade e eficiência que se pretende assegurar, tem a desvantajosa consequência de limitar o direito de acesso aos tribunais estaduais, em via de recurso, numa matéria em que está em causa o controlo jurisdicional da legalidade de atos administrativos, incluindo atos sancionatórios, e, portanto, a própria verificação da atuação das federações desportivas segundo um regime de direito administrativo.
Sendo que a relevância dos interesses em jogo, que poderão justificar a medida, se encontram já suficientemente salvaguardados, quer pelo mecanismo da arbitragem necessária, que obriga a uma apreciação do litígio no âmbito do tribunal arbitral, quer por via do já falado caso julgado desportivo, que impede a invalidação de efeitos desportivos que resultem de decisões proferidas na ordem interna.
Poderá assim entender-se que a norma impugnada, no segmento em que proíbe o recurso para um tribunal estadual, viola o direito de acesso aos tribunais quando entendido em articulação com o princípio da proporcionalidade, nas referidas vertentes de necessidade e justa medida.
15. Todas as precedentes considerações não ficam prejudicadas pela ressalva, expressamente contemplada no n.º 3 do artigo 8º do Anexo ao Decreto n.º 128 XII, da «possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e de impugnação da decisão arbitral com os fundamentos e nos termos previstos na LAV».
Por um lado, o recurso para o Tribunal Constitucional é sempre restrito a uma questão de constitucionalidade, que consiste em saber se uma norma aplicável a uma causa pendente é ou não inconstitucional, limitando-se, por isso, à apreciação de uma questão jurídico-constitucional, que poderá resultar da aplicação pelo tribunal arbitral de norma que tenha sido arguida de inconstitucionalidade ou de recusa de aplicação de norma por motivo de inconstitucionalidade.
Além de que o recurso cabe de todos os órgãos constitucionalmente considerados como tribunais, incluindo os tribunais arbitrais (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, pág. 942). Sendo, aliás, irrelevante que o artigo 8º, n.º 3, do Anexo ao Decreto n.º 128/XII contemple o recurso de constitucionalidade, porquanto essa é uma garantia que se encontra expressamente prevista na Constituição (artigo 280º, n.º 2) e em lei de valor reforçado (artigo 70º, n.º 1, alíneas a), b), g) e h), da Lei do Tribunal Constitucional), e que será sempre invocável independentemente da sua específica previsão na Lei que regula o Tribunal Arbitral do Desporto.
Por outro lado, a impugnação da decisão arbitral tem também ela efeitos limitados. Nos termos do disposto no artigo 46º da LAV, para que remete esse artigo 8º,n.º 3, a sentença arbitral só pode ser anulada por nulidade de sentença ou com fundamento em violação de lei processual ou outras questões formais, enquanto que o recurso para um tribunal estadual, a que se refere o artigo 39º, n.º 4, da LAV, tem por objeto a sentença que se pronuncie sobre o fundo da causa ou que ponha termo ao processo arbitral. Todavia, o direito fundamental de acesso aos tribunais não pode conformar-se com a simples previsão de um dos mecanismos pelos quais é possível, nos termos gerais, impugnar jurisdicionalmente a decisão arbitral, impondo que as partes possam também discutir o mérito da decisão, pelo que sempre seria exigível uma maior abertura de possibilidade de recurso para um tribunal estadual.
A restrição do direito de acesso aos tribunais resulta, por conseguinte, da insuficiência dos mecanismos de acesso à justiça estadual, na medida em que não se contempla um mecanismo de reexame perante um órgão judicial do Estado relativamente às situações comuns em que o particular pretenda discutir a decisão que se pronuncia sobre o fundo da causa ou que ponha termo ao processo.
16. Uma outra questão que se coloca, no mesmo plano de análise, prende-se com aspetos organizativos do TAD, o estatuto dos árbitros que o integram e o regime processual aplicável às providências cautelares.
É ponto assente que os tribunais arbitrais, enquanto categoria autónoma de tribunais a quem incumbe também o exercício da função jurisdicional, estão subordinados ao regime dos tribunais judiciais, nesse sentido apontando diversas regras de composição do tribunal e de designação dos árbitros e as exigências de independência, imparcialidade e irresponsabilidade, a que se aplicam correspondentemente, na parte que não contenda com o exercício meramente eventual do cargo, as garantias e incompatibilidades a que se refere o artigo 216º da Constituição.
Os árbitros devem ser independentes e imparciais e não podem ser responsabilizados por danos decorrentes das decisões por eles proferidas (artigo 9º, n.ºs 3 e 4, da LAV). Há lugar a um regime de impedimentos e escusas e as partes só podem recusar um árbitro quando subsistam fundadas dúvidas sobre a sua imparcialidade e independência ou se não possuir as qualificações que as partes convencionaram. E a parte só pode recusar um árbitro que haja designado, ou em cuja designação tenha participado, com fundamento em causa superveniente a essa designação (artigos 12º e 13º).
As partes podem designar, na convenção de arbitragem, o árbitro ou os árbitros que constituem o tribunal arbitral ou fixar o modo como são escolhidos. E quando não haja acordo entre as partes quanto a essa designação, tal árbitro é escolhido, a pedido de qualquer das partes, pelo tribunal estadual. No caso de o tribunal ser composto por três ou mais árbitros, cada parte deve designar igual número de árbitros, e os árbitros assim designados devem escolher outro árbitro, que atua como presidente do tribunal arbitral (artigo 10º, n.ºs 1, 2 e 3).
A observância destes critérios é particularmente exigível quando esteja em causa uma arbitragem necessária, pelas já apontadas razões de ser essa uma forma de jurisdição privada de caráter imperativo (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 52/92).
No caso, constata-se que o TAD tem a sua sede no “Comité Olímpico de Portugal”,que, sendo uma associação sem fins lucrativos com competência exclusiva para constituir, organizar e dirigir a delegação portuguesa participante nos Jogos Olímpicos e nas demais competições desportivas realizadas sob a égide do Comité Olímpico Internacional, tem como seus membros federações olímpicas e não olímpicas e diversas associações desportivas (artigo 2.º do Anexo ao Decreto n.º 128/XII).
E, assim, o organismo onde se pretende sediar o TAD e ao qual competirá promover a respetiva instalação e funcionamento (artigo 1.º, n.º 4, do Anexo ao Decreto n.º 128/XII) é, ele próprio, constituído pelas entidades que poderão ser demandadas no âmbito dos processos de arbitragem que decorrem perante esse Tribunal.
Acresce que a jurisdição do TAD, no âmbito da sua competência arbitral necessária, é exercida por um colégio de três árbitros, de entre os constantes de uma lista pré-determinada (no total de 40 árbitros), que é fixada com base nas propostas apresentadas por federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas e organismos representativos de agentes desportivos (artigos 20º,21º e 28º, nº 1).
E, embora pertença a cada parte a faculdade de designar um árbitro (cabendo aos árbitros assim designados a escolha daquele que deverá intervir como presidente do colégio de árbitros), é ao presidente do TAD que cabe indicar o árbitro em falta quando os árbitros designados pelas partes não acordarem na escolha do árbitro presidente, ou quando os demandantes ou os demandados não chegarem a acordo sobre o árbitro que lhes cabe designar (artigo 28º, n.ºs 2, 3, e 5).
Cabendo ainda ao presidente do TAD nomear a totalidade dos árbitros e designar de entre eles quem é o presidente, caso se demonstre que as partes que não conseguiram nomear conjuntamente um árbitro têm interesses conflituantes relativamente ao fundo da causa (artigo 28º, n.º 6).
Por conseguinte, o diploma que aprova a Lei do Tribunal Arbitral de Desporto, não só não prevê um mecanismo de suprimento judicial de falta de acordo das partes quanto à designação dos árbitros, remetendo essa competência para uma entidade administrativa – contrariamente ao que ocorre no âmbito da Lei de Arbitragem Voluntária -, como limita a liberdade de escolha das partes quanto à designação dos árbitros, sujeitando-as a uma lista predefinida relativamente a cuja composição os interessados nem sequer têm uma intervenção direta, visto que a indigitação, para esse efeito, é feita por organizações sócio-profissionais e associações representativas dos agentes desportivos.
Acresce que o Anexo ao Decreto n.º 128/XII, embora permita, no âmbito o processo arbitral, decretar providências cautelares adequadas à garantia da efetividade do direito ameaçado, confere ao presidente do TAD «a decisão sobre o pedido de aplicação de medidas provisórias e cautelares, se o processo não tiver ainda sido distribuído ou se o colégio arbitral ainda não estiver constituído» (artigo 41º, n.º 7). Isto é, atribui a uma entidade meramente administrativa, intervindo na simples qualidade de representante do Tribunal, e sem que lhe tenha sido conferida pelas partes qualquer função jurisdicional, o poder de determinar providências cautelares em relação ao objeto do litígio, que assim pode proferir uma decisão relativa à composição provisória do litígio sem qualquer anuência ou concordância das partes.
Estas apontadas limitações à autodeterminação das partes comprometem os requisitos de independência e imparcialidade do tribunal arbitral, e recolocam a questão no plano do princípio da tutela jurisdicional efetiva administrativa consagrado no artigo 268º, n.ºs 4 e 5, da Constituição.
Como concretização do direito geral à proteção judicial, que decorre do artigo 20º,a Constituição consagra especificamente o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos cidadãos perante a Administração Pública, princípio que é reafirmado no artigo 2º, n.º 2, do CPTA, ao determinar que «a todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos» e que postula, consequentemente, a ideia de plenitude da garantia jurisdicional administrativa nos litígios que opõem os particulares às entidades administrativas.
Ora, a imposição legal de uma jurisdição arbitral quando esteja em causa a resolução de litígios que relevam do exercício de poderes de autoridade com a concomitante proibição de acesso mediato a um tribunal estadual, é, por si, suscetível de afetar a garantia contenciosa dos administrados na medida em que reduz o nível de proteção dos direitos e interesses legalmente protegidos.
Esse juízo surge reforçado quando, por razões pragmáticas associadas ao funcionamento célere e eficaz do TAD, se reduzem as garantias atinentes ao estatuto dos árbitros, se limita o poder de livre designação dos árbitros pelas partes e se atribuem funções jurisdicionais a uma mera entidade administrativa.
Não é possível pretender que uma instância arbitral radicada na ordem desportiva ofereça aos interessados a garantia de uma decisão de valor equivalente à decisão dos tribunais administrativos – aos quais incumbe dirimir os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas -, quando simultaneamente não se encontram assegurados os requisitos essenciais de independência e de imparcialidade dos árbitros e os litigantes não disponham sequer do poder concreto de designar os árbitros, quando é certo que é nesse ato individual de designação que reside o fundamento material para a sujeição de uma certa categoria de litígios a uma jurisdição arbitral legalmente imposta.
Além de que – como houve já oportunidade de referir –, por se tratar de uma arbitragem necessária que, como tal, não assenta na autonomia privada das partes, se torna particularmente exigível que o processo arbitral se encontre rodeado de maiores garantias, também porque está em causa uma relação entre um particular e uma entidade dotada de um poder público (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 52/92).
Neste condicionalismo, a impossibilidade de interposição de um recurso da decisão arbitral para um tribunal administrativo representa também uma violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva.
17. Concluindo-se pela violação do direito de acesso aos tribunais, em articulação com o princípio da proporcionalidade, e do princípio da tutela jurisdicional efetiva, fica prejudicada a apreciação da violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, que vinha também invocado pelo requerente como parâmetro de constitucionalidade.
III –Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, e por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, da norma constante da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 8.º,conjugada com as normas dos artigos 4.º e 5.º, todos do Anexo ao Decreto n.º128/XII, na medida em que delas resulte a irrecorribilidade para os tribunais do Estado das decisões do Tribunal Arbitral do Desporto proferidas no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária.
Lisboa, 24 de abril de 2013. – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins – Pedro Machete (com declaração) – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral – Vítor Gomes – Maria João Antunes (vencida nos termos da declaração anexa) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão e acompanho a fundamentação, sem prejuízo de, a propósito da contraposição referida no acórdão entre “reserva absoluta de jurisdição” e “reserva relativa de jurisdição”, considerar que, nos casos em que é constitucionalmente admissível a decisão de litígios por arbitragem voluntária – incluindo os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais, em geral, e, em particular, daqueles litígios em que intervenham entidades privadas no exercício de poderes de autoridade pública –,a «última palavra» não tem de pertencer aos tribunais estaduais. Nesses casos, justamente porque os tribunais arbitrais exercem a função jurisdicional mencionada no artigo 202.º, n.º 2, da Constituição, a decisão de um tribunal arbitral voluntário pode ser final e definitiva.
Pedro Machete
DECLARAÇÃO DE VOTO
1.Votei vencida por entender que a norma constante da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 8.º, conjugada com as normas dos artigos 4.º e 5.º, todos do Anexo ao decreto n.º 128/XII, na medida em que delas resulte a irrecorribilidade para os tribunais do Estado das decisões do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) proferidas no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária, não viola o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e o princípio da tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 268.º, n.º 4, da CRP.
2. Dissenti, por entender que o direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1, da CRP), direito fundamental correlacionado com a reserva da função jurisdicional, não é garantido apenas através do acesso aos tribunais do Estado.
O artigo 209.º, n.º 2, prevê a existência de tribunais arbitrais como uma categoria de tribunais, que se constituem precisamente para exercer a função jurisdicional(cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/86, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Embora não se enquadrem na definição de tribunais enquanto órgãos de soberania e não sejam órgãos do Estado, “nem por isso podem deixar de ser qualificados como tribunais para outros efeitos constitucionais, visto serem constitucionalmente definidos como tais e estarem constitucionalmente previstos como categoria autónoma de tribunais” (Acórdão n.º 230/86). Os tribunais a que se refere o artigo 20.º, n.º 1, da CRP não são apenas os tribunais estaduais, entendimento já sufragado pelo Tribunal nos Acórdãos n.ºs 250/96 e 506/96, onde se lê que “pode mesmo dizer-se que o tribunal arbitral, como tribunal que é, faz parte da própria garantia de acesso ao direito e aos tribunais” (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Para efeito do disposto no artigo 20.º da CRP, “tutela jurisdicional não significa o mesmo que tutela judicial. No nosso ordenamento, há diferentes categorias de tribunais ou de ordens de jurisdição”(Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra Editora, p. 325, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Wolters Kluwer/Coimbra Editora, anotação ao artigo 20.º, ponto X. E, ainda, tomo III, anotação ao artigo 202.º, ponto III). Ponto é que os tribunais sejam órgãos independentes e imparciais (e nos presentes autos não foi questionada a conformidade constitucional de normas relativas a aspetos organizativos do TAD, ao estatuto dos árbitros que o integram e ao regime processual aplicável às providências cautelares) e seja respeitada a reserva de tribunal judicial (por exemplo, a que decorre do artigo 27.º, n.º 2, da CRP).
3. Numa ordem constitucional onde não vale o princípio do monopólio estadual da função jurisdicional, a criação do TAD não tem o sentido de atribuir uma autonomia plena à jurisdição desportiva, porquanto se trata de uma “entidade jurisdicional independente” da denominada“justiça desportiva” (artigo 1.º, n.º 1, do Anexo), à qual o Estado, por lei da Assembleia da República, em matéria de organização e competência dos tribunais (artigo 165.º,n.º 1, alínea p), da CRP), atribuiu a função de controlo jurisdicional de mérito do exercício dos poderes de autoridade delegados nas federações, em outras entidades desportivas e ligas profissionais. Tal ocorre tendo em vista a tutela jurisdicional efetiva, por tal criação se justificar por razões de celeridade, especialização e uniformização, sem que haja uma qualquer demissão do dever estadual de controlo do exercício daqueles poderes. O que se torna particularmente evidente também por ficar salvaguardada, em todos os casos, a possibilidade de impugnação da decisão (junto de tribunais estaduais) com os fundamentos e nos termos previstos na Lei da Arbitragem Voluntária (artigo 8.º, n.º 3, do Anexo).
O TAD não é um tribunal estadual, mas porque surge em virtude de um ato legislativo e não como resultado de um negócio jurídico privado de direito privado, é irrecusável o seu carácter tipicamente publicístico (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 52/92, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) e a marca da criação estadual.
Maria João Antunes