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Processo n.º 352/12
3.ª Secção
Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A. e recorridos o MINISTÉRIO PÚBLICO, B. e C., a primeira interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 18 de fevereiro de 2013 (fls. 2275-2296) que negou provimento aos recursos apresentados pela ora recorrente.
2. Pela Decisão Sumária n.º 453/2013, de 14 de agosto, decidiu-se não conhecer do objeto do recurso interposto, com a seguinte fundamentação (cfr. fls.2329-2336):
«(…) 6. Segundo jurisprudência constante do Tribunal Constitucional a admissibilidade do recurso apresentado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos: ter havido previamente lugar ao esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC), tratar-se de uma questão de inconstitucionalidade normativa, a questão de inconstitucionalidade normativa haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC) e a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionalidade pelo recorrente (vide, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 618/98 e 710/04).
Faltando um destes requisitos, o Tribunal não pode conhecer do recurso.
7. Não se encontra preenchido, no caso em apreço, o pressuposto relativo ao esgotamento dos recursos ordinários.
7.1 Tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a admissibilidade do recurso depende, entre outros requisitos cumulativos, do esgotamento dos meios normais impugnatórios da decisão recorrida.
De acordo com a jurisprudência constitucional, para efeitos da apreciação dos pressupostos substanciais da admissibilidade do recurso, a noção de recurso ordinário abrange os próprios incidentes pós-decisórios – como a arguição de inexistência jurídica ou nulidade da decisão – pelo que não pode a parte que utilize um daqueles incidentes interpor recurso para o Tribunal Constitucional enquanto se encontre pendente de decisão o incidente suscitado – dado que a decisão proferida ainda não constitui uma decisão definitiva (vide Carlos Lopes do Rego, Os recursos de fiscalização concreta na Lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, Almedina, 2010, p. 115 e jurisprudência aí citada). Assim não se afigura admissível a interposição, em simultâneo, de um recurso de constitucionalidade “à cautela” e a dedução de um incidente pós-decisório (ob. cit, p. 115).
7.2 Verifica-se, in casu, que por força da formulação, no processo, pela recorrente, de pedido de declaração de inexistência ou de nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de de 18/02/2013 ora recorrido (cfr. fls. 2302-2304), em simultâneo com a apresentação de recurso para este Tribunal (cfr. fls. 2305-2306), aquele acórdão, à data da interposição do recurso para este Tribunal ainda não se afigurava definitiva – pelo que não se encontra preenchido um dos pressupostos de admissibilidade do recurso para este Tribunal, cuja verificação se efetua por referência à data de interposição do recurso de constitucionalidade mediante a apresentação do requerimento respetivo no tribunal a quo.
Pelo exposto, não se encontrando verificado um dos pressupostos, cumulativos, legalmente exigidos para a admissibilidade do recurso, não se pode conhecer do respetivo objeto.
8. Também não se encontra preenchido, no caso em apreço, o pressuposto relativo à suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer».
8.1 A recorrente alega que suscitou a pretensa questão de inconstitucionalidade «no requerimento de arguido se inexistência, de fls. , junto do Tribunal da Comarca de Braga, e também nas alegações de recurso para o Tribunal de Guimarães de fls. conforme consta das respetivas conclusões».
Tratando-se de recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da LTC, nos termos do n.º 2 do artigo 72.º «os recursos só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade (…) de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer».
Pretendendo a recorrente interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/02/2013, apenas a segunda peça processual indicada pela recorrente releva para a verificação do preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso.
8.2 Do teor das «alegações de recurso para o Tribunal de Guimarães de fls.» e «respetivas conclusões» (cfr. fls. 2137 a 2153, em especial fls. 2146 verso a 2153) decorre todavia, ao contrário do que alega a recorrente, que esta não pretende que o Tribunal exerça um controlo da constitucionalidade com natureza normativa.
Daquele teor decorre que a recorrente imputa a violação do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição – uma das normas constitucionais que considera violadas (cfr. requerimento de interposição de recurso, 4) – à decisão então recorrida, com a qual não se conforma (vide as conclusões 1.ª e 63.ª).
E, de igual modo, na conclusão 64.ª a) imputa a violação dos preceitos constitucionais que menciona no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal à decisão então recorrida, já que afirma que «A douta decisão violou as seguintes normas: a) Os (…) artigos 2.º, 3.º, n.º 3, 29.º, n.º 1, in fine, da Constituição da República Portuguesa.
A fiscalização da constitucionalidade e da legalidade da competência deste Tribunal incide sobre normas e não sobre decisões, incluindo, como se pretende no caso, decisões judiciais. Como se afirma no Acórdão n.º 526/98 deste Tribunal (II, 3):
«A competência para apreciar a constitucionalidade das decisões judiciais, consideradas em si mesmas - que é própria de sistemas que consagram o recurso de amparo - não a detém, entre nós, o Tribunal Constitucional.».
8.3 E, na conclusão 64.º b), que reproduz no seu requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, na parte em que se refere às normas constitucionais que, naquele requerimento, considera terem sido violadas, a recorrente limita-se a afirmar, no final, que «Violam nessa interpretação, que lhes foi dada nos autos, os artigos 2.º, 3.º, n.º 3, 29.º, n.º 1, in fine, da Constituição Portuguesa».
Tal enunciado não corresponde à suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Por um lado, a recorrente reporta as alegadas «interpretações» que reputa inconstitucionais aos contornos do caso concreto, pelo que inexiste critério normativo.
Além disso o ora recorrente, naquela conclusão não justificou, nem sequer sumariamente, a inconstitucionalidade que ora pretende ver apreciada por este tribunal. Ali se limitou a invocar a violação de três preceitos constitucionais não cumprindo o ónus de suscitação processualmente adequada da questão, já que não enuncia de forma expressa, clara e percetível a questão de constitucionalidade e, assim, não procede à clara e expressa delimitação do objeto do recurso, nem a uma fundamentação, em termos minimamente concludentes, das razões porque considera inconstitucional as alegadas «interpretações» das normas que ora pretende submeter à apreciação deste Tribunal. Com efeito, a recorrente não justifica, na conclusão das alegações em causa, em termos concludentes, a imputação de inconstitucionalidade, não apresentando um mínimo de suporte argumentativo que permita ao tribunal que proferiu a decisão recorrida saber que tem uma questão jurídico-constitucional para decidir.
9. Termos em que, resultando dos autos que não se encontram preenchidos diversos pressupostos, cumulativos, de admissibilidade do recurso, não pode conhecer-se do objeto do recurso. (…)».
3. Vem agora a recorrente reclamar da referida Decisão Sumária n.º 453/2013, de 14 de agosto, «para o relator e subsidiariamente para a conferência», «apresentando esta reclamação também subsidiariamente em relação ao questão da inexistência jurídica da decisão de 1.ª instância, que está já a ser discutida no processo - a qual é questão prévia e acarretará, se procedente, a inutilidade superveniente da presente reclamação» requerendo, a final, que os autos sejam remetidos à jurisdição comum «para decisão definitiva da questão prévia à da inexistência jurídica da decisão ora impugnada, por ser tal jurisdição a competente em razão da matéria» e, caso assim não se entenda, que a decisão ora reclamada seja considerada nula ou anulada, com os seguintes fundamentos (cfr. fls. 2342 a 2358):
«A., agente da PSP, arguida nos autos em epígrafe, que lhe move o digno Magistrado do Ministério Público, notificada da decisão de fis. , vem deduzir reclamação para o relator e, subsidiariamente, para a conferência, apresentando esta reclamação também subsidiariam ente em relação ao questão da inexistência jurídica da decisão de 1.ª instância, que está já a ser discutida no processo - a qual é questão prévia e acarretará, se procedente, a inutilidade superveniente da presente reclamação - o que faz nos termos seguintes, arguindo a inexistência e, subsidiariamente, a nulidade da decisão ora reclamada.
Da inexistência jurídica
I - Quanto ao primeiro pretenso crime de burla
A - Contrato de Confidencialidade de Namoro e Relacionamento Sexual com Homem Casado
1.º
Os presentes autos resultaram de uma queixa apresentada por três indivíduos, de nome C., B. e D. em julgamento)», desde o «início» quiseram ter e tiveram «namoro» (facto 18 da matéria provada em julgamento) e «relacionamento sexual», em «muitos encontros ocorridos» com as arguidas (facto 13 da matéria provada em julgamento).
2.º
Esses indivíduos instigaram mesmo à prática do crime de aborto, então previsto e unido pela lei portuguesa (facto 20 da matéria provada em julgamento).
3.º
O certo é que, ao cabo de cerca de um mês, o namoro e «relacionamento sexual», em «muitos encontros ocorridos» (facto 13 da matéria provada em julgamento) entre a E. e o queixoso C. teve problemas e a ora requerente foi solicitada a servir de «mediadora do conflito» entre esse par de namorados (queixa apresentada pelo C. e pelo B. em 12 de agosto de 1999) e, honrando o compromisso que assumiu, a arguida ora requerente «sempre se comportou como líder» (facto 24 da matéria provada em julgamento) na solução desse conflito e teve, aliás que insistir para que o contrato que veio a ser celebrado fosse cumprido (facto 29 da matéria provada em julgamento).
4.º
O queixoso C., dos «todos casados, com vida familiar estável, e homens de sólida condição sócio-económica» (facto 9 da matéria provada em julgamento), quis «sossegar a E. e evitar que revelasse o relacionamento sexual» que ele mantinha com essa namorada, também arguida.
5.º
Depois de passar por «muitas peripécias» (facto 25 da matéria provada em julgamento), mas a contento de todos, designadamente do queixoso C. e da E., a requerente, «guarda A., na qualidade de mediadora do conflito, acordou com os três indivíduos que o B. depositaria a quantia de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos) na conta da mesma» (queixa apresentada e assinada pelo C. e pelo B. em 12 de agosto de 1999).
6.º
Assim, houve um «acordo feito» (facto 34 da matéria provada em julgamento), celebrado no dia 2 de agosto de 1999 (facto 22 da matéria provada em julgamento).
Sublinhe-se <
7.º
Este «acordo feito» é um Contrato de Confidencialidade de Namoro e Relacionamento Sexual com Homem Casado, que é um contrato de Direito Civil, permitido pelo artigo 405.º do Código Civil Português e com a forma legal prevista no artigo 219.º do mesmo diploma, celebrado entre a arguida E. e o queixoso C., com a mediação da ora requerente.
8.º
Provadas na audiência de julgamento, as principais cláusulas desse Contrato de Confidencialidade de Namoro e Relacionamento Sexual com Homem Casado, de 2 de agosto de 1999, celebrado ao abrigo do Direito Civil, são: Cláusula l.ª - A E. compromete-se a não revelar «o relacionamento sexual mantido com o C.», com quem manteve um «namoro», prescindindo, nessa parte, do direito constitucional de informar a sua família e/ou a família do C. ou quaisquer terceiros acerca desse namoro e desse relacionamento sexual, e prescindindo também do direito constitucional de expressão sobre o mesmo namoro e o mesmo relacionamento sexual, nomeadamente não escrevendo crónica ou livro sobre o assunto (facto 25 da matéria provada em julgamento); Cláusula 2.ª - Em compensação por essa obrigação de silêncio perpétuo e supressão dessa eventual fonte de rendimento por direitos autorais para a E., o C. compromete-se a pagar à E., imediatamente e de uma só vez, a quantia de 30.000.000$00 (factos 25 e 26 das matéria provada em julgamento); Cláusula 3.ª- O pagamento é feito mediante depósito na conta da «guarda A., na qualidade de mediadora do conflito» (queixa apresentada e assinada pelo C. e pelo B., em 12 de agosto de 1999, e facto 29 da matéria provada em julgamento).
B - Contrato de Mútuo
9.º
O queixoso C. não tinha o dinheiro necessário para fazer o pagamento imediato a que se comprometera pelo Contrato de Confidencialidade de Namoro e Relacionamento Sexual com Homem Casado e, por isso, pediu o dinheiro emprestado ao outro queixoso, o B. (facto 27 da matéria provada em julgamento).
10.º
A este pedido de empréstimo feito pelo queixoso C. o queixoso B. disse «que sim», tendo passado a existir entre ambos o contrato de mútuo (facto 27 da matéria de facto provada em julgamento).
11.º
Por isso, em 3 de agosto de 1999, no âmbito das relações de contrato de mútuo entre os dois e sem a presença da requerente, o queixoso C. e o queixoso B. deslocaram-se à agência central da Caixa Geral de Depósitos, sita na Avenida Central, na cidade de Braga, e depositaram na conta da «guarda A., na qualidade de mediadora do conflito», a importância de 30.000.000$00, assim dando o C. cumprimento à Cláusula 3.ª do Contrato de Confidencialidade de Namoro e Relacionamento Sexual com Homem Casado, de 2 de agosto de 1999, celebrado entre ele, C., e a E. (facto 30 da matéria provada em julgamento).
C-A má-fé
12.º
Os queixosos C. e B. são «gente de dinheiro, pois eram eles que pagavam sempre as contas de bons restaurantes que frequentavam, hotéis e tudo o mais, sem nunca regatearem despesas, passeando-se em bons automóveis e nunca lhes faltando dinheiro na carteira» (facto 17 da matéria provada em julgamento).
13.º
Apesar disso, estavam de má-fé nas suas relações com a E., que não é gente de dinheiro, e queriam que a ora requerente também agisse como «mediadora do conflito» de má-fé, enganando a E., enquanto parte do Contrato de Confidencialidade de Namoro e Relacionamento Sexual com Homem Casado, de 2 de agosto de 1999.
14.º
Mais em concreto, pretendiam que o pagamento devido à E., por força da Cláusula 3.ª do dito Contrato, fosse um pagamento a fingir e queriam que a mediadora devolvesse o dinheiro ao B. que este emprestou ao seu amigo C., querendo que o dinheiro fosse apenas «para ser exibido à arguida E.» e não querendo que o mesmo lhe fosse entregue a título do cumprimento do referido Contrato (facto 30 da matéria provada em julgamento).
15.°
Bem sabiam eles que a arguida ora requerente nada tem a ver com as relações entre os dois, C. e B., nem com o empréstimo de 30.000.000$00 que o B. fez ao C. e não sabe nem tem a obrigação de saber de o C. já saldou o empréstimo que o B. lhe fez, em 3 de agosto de 1999.
16.°
Os arguidos só se queixaram, não por que fossem enganados, mas porque não conseguiram que a ora requerente colaborasse com eles no engano que pretendiam fazer à E., namorada do C. (facto 35 da matéria provada em julgamento).
17.°
Estas pessoas «de dinheiro», não apenas se queixaram infundadamente como, faltando à verdade, conseguiram que o Ministério Público deduzisse acusação pela prática de «em coautoria, um crime de extorsão, p. e p. pelo art. 223°, n.º 1 e 3 al. a), por referência ao art. 204 n.º 2 al. a) do C. Penal».
18.°
Em julgamento, ficou provado que não existiu qualquer extorsão. Mesmo assim, essa «gente de dinheiro» sempre querendo reaver os 30.000.000$00 de quem nada lhes deve, conseguiu, de modo incompreensível, obter o acórdão em epígrafe do Tribunal da Comarca de Braga, que sentencia criminalmente a arguida em 4 (quatro) anos de prisão, acórdão que muito convém aos queixosos para justificar a sua conduta irregular junto das famílias, do meio social e da banca, pois, além de «gente de dinheiro», são «todos casados, com vida familiar estável, e homens de sólida condição sócio-económica» (facto 9 da matéria provada em julgamento).
19.º
Como era necessário obter uma fundamentação para a aplicação dessa pena e não podendo ser a pena de extorsão, o Tribunal percorreu o Código Penal e escolheu a pena correspondente ao «crime de burla, previsto e punível pelo artigo 218.° n.º 2 alínea a) do Código Penal».
20.°
No entanto, há manifesto lapso, porque o crime de burla, definido na lei portuguesa (artigo 217.°, n.º 1, do Código Penal) consiste na conduta em que um indivíduo «com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determin[a] outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial»,
21.º
Ora, não existe enriquecimento ilegítimo de ninguém, a arguida não «provocou factos» sobre nada, não provou astuciosamente coisa nenhuma, e antes impediu que uma das parte fosse enganada pela «gente de dinheiro» que são os queixosos C. e B., sendo ainda certo que a arguida ora requerente nada determinou, limitando-se a cumprir o seu solicitado papel de «mediadora do conflito» entre a E. e o C..
22.º
Na verdade, muito singelamente, os factos são os seguintes: a arguida foi solicitada a servir de «mediadora do conflito» entre namorados, o queixoso C. e a arguida E., donde resultou, a 2 de agosto de 1999, um «acordo feito» entre ambos, que é um Contrato de Confidencialidade de Namoro e Relacionamento Sexual com Homem Casado, regido pelo Direito Civil, permitido pelo artigo 405.° do Código Civil Português e com a forma legal prevista no artigo 219.° do mesmo diploma, com as seguintes cláusulas: Cláusula 1.ª - A E. compromete-se a não revelar «o relacionamento sexual mantido com o C.», com quem manteve um «namoro», prescindindo, nessa parte, do direito constitucional de informar a sua família e/ou a família do queixoso ou quaisquer terceiros acerca desse namoro e desse relacionamento sexual, e prescindindo também do direito constitucional de expressão sobre o mesmo namoro e o mesmo relacionamento sexual, nomeadamente não escrevendo crónica ou livro sobre o assunto (facto 25 da matéria provada em julgamento); Cláusula 2-ª - Em compensação por essa obrigação de silêncio perpétuo e supressão dessa eventual fonte de rendimento por direitos autorais para a E., o C. compromete-se a pagar à E., imediatamente e de uma só vez, a quantia de 30.000.000$00 (factos 25 e 26 das matéria provada em julgamento); Cláusula 3.ª - O pagamento é feito mediante depósito na conta da «guarda A., na qualidade de mediadora do conflito» (queixa apresentada e assinada pelo C. e pelo B., em 12 de agosto de 1999, e facto 29 da matéria provada em julgamento). O C. não tinha logo o dinheiro para cumprir o contrato e pediu 30.000.000$00 emprestados ao B. que lhos emprestou.
II - Quanto ao segundo pretenso crime de burla
23.º
O Estado Português, através da Polícia, do Ministério Público e dos juízes, resolveu investigar a moral sexual da arguida e a intimidade da sua vida privada, interessando-se por saber onde, quando, como e com quem ela tem relações sexuais.
24.º
Assim, o Estado Português, através da Polícia, do Ministério Público e dos juízes, quis saber e soube que, no final de 1999, a arguida tinha um novo namorado, casado, de nome F., dono de uma fábrica de mármores, e logo o Estado pôs em campo os polícias, os magistrados do Ministério Público e os juízes, para investigar esse namoro.
25.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes quis saber se o namoro da arguida com o F. envolvia sexo e apurou que realmente existia «envolvimento sexual entre ambos» (factos 39 da matéria provada em julgamento).
26.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber onde a arguida e o namorado tinham tido relações sexuais e apurou que foi num «apartamento» (facto 40 da matéria provada em julgamento).
27.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber se a arguida tinha e o namorado tinham tido relações sexuais longe ou perto do cemitério e apurou que foi «junto ao cemitério» (facto 40 da matéria provada em julgamento).
28.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber quantos atos sexuais tinham existido entre a arguida e o namorado F., e apurou que os houve «pelo menos duas vezes» (facto 40 da matéria provada em julgamento).
29.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber quais as datas em que a arguida tinha tido relações sexuais com o seu namorado F., e apurou que as teve «em datas que não foi possível determinar» (facto 40 da matéria provada em julgamento).
30.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber se a arguida telefonava ao namorado, e apurou que «telefonou» (facto 41 da matéria provada em julgamento).
31.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber se a arguida e o namorado falavam sobre gravidez ao telefone, e apurou que, por telefone, uma vez, no ano de 1999, ela disse ao namorado que «estava grávida» (facto 41 da matéria provada em julgamento).
32.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber se a arguida estava mesmo grávida do namorado F. e apurou «que só alegadamente se encontrava grávida» (facto 42 da matéria provada em julgamento).
33.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber se a arguida e o namorado conversavam sobre aborto, e apurou que o namorado da arguida, o F., lhe sugeriu «que interrompesse voluntariamente a gravidez» (facto 41 da matéria provada em julgamento).
34.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber qual era a razão pela qual o namorado da arguida sugeriu a esta que fizesse um aborto, e apurou que essa razão era que «ele tinha família estável e não pretendia assumir a paternidade» (facto 41 da matéria provada em julgamento).
35.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber qual a resposta da arguida à proposta de fazer um aborto que o namorado lhe fazia, e apurou que, em 1999, ela respondeu que «não podia abortar pois tinha sido operada a um cancro de pele e o médico disse-lhe ser um grande risco» (facto 42 da matéria provada em julgamento).
36.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber se o namoro da arguida com o namorado F. continuava, tendo apurado que, afinal, ele lhe marcou um encontro para terminar esse namoro (facto 43 da matéria provada em julgamento).
37.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber se o namorado da arguida lhe oferecia alguma coisa pela cessação do namoro, tendo apurado que ele «começou por oferecer 1.000 contos, acabando por aceitar dar àquela 10.000 contos» (facto 44 da matéria provada em julgamento).
38.º
Assim, ficou o Estado Português a saber que a arguida celebrou com o namorado F. um Contrato de Confidencialidade de Namoro e Relacionamento Sexual com Homem Casado, que é um contrato de Direito Civil, permitido pelo artigo 405.º do Código Civil Português e com a forma legal prevista no artigo 219.º do mesmo diploma.
39.º
Mais ficou o Estado Português a saber que as principais cláusulas desse Contrato de Confidencialidade de Namoro e Relacionamento Sexual com Homem Casado, celebrado em 18 de janeiro de 2000, ao abrigo do Direito Civil, são: Cláusula l.ª - A A. (ora arguida requerente) compromete-se a, relativamente ao namorado F., «se calar» e «não lhe dar cabo da vida familiar», prescindindo, nessa parte, do direito constitucional de informar a sua família e/ou a família do F. ou quaisquer terceiros acerca desse namoro e desse relacionamento sexual, e prescindindo também do direito constitucional de expressão sobre o mesmo namoro e o mesmo relacionamento sexual, nomeadamente não escrevendo crónica ou livro sobre o assunto (facto 40 da matéria provada em julgamento); Cláusula 2.ª - Em compensação por essa obrigação de silêncio perpétuo e supressão dessa eventual fonte de rendimento por direitos autorais para a A., o F. compromete-se a pagar à A., imediatamente e de uma só vez, a quantia 10.000.000$00 (facto 44 das matéria provada em julgamento); Cláusula 3.ª - O pagamento é feito em dinheiro e entregue à A. (facto 45 da matéria provada em julgamento).
40.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber se o namorado da arguida cumpriu a sua cláusula do contrato cessação de namoro, e apurou que sim (facto 45 da matéria provada em julgamento), indicando os autos que a arguida também tem cumprido a sua parte.
41.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, quis saber em que data o namorado da arguida cumpriu a sua parte do contrato, e apurou que esse cumprimento ocorreu em 18 de janeiro de 2000 (facto 45 da matéria provada em julgamento).
42.º
Nunca o namorado da arguida, F., apresentou qualquer queixa ou moveu processo judicial contra a arguida.
43.º
Na verdade, o próprio Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, apurou na ata da audiência do julgamento e a páginas 26 da sentença de 31 de outubro de 2003, que o namorado da arguida, F., «nunca se sentiu coagido ou ameaçado tudo tendo sido uma negociação entre ele e a A., com esses objetivo» de «ela se calar» e não lhe dar «cabo da vida familiar».
44.º
Vale a pena sublinhar «tudo ... negociação».
45.º
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, entende que, em 1999, a arguida não deveria ter dito ao namorado a frase «estou grávida», porque ele, Estado Português, tem o controlo das conversas entre namorados e só permite que uma namorada que tenha sexo com o namorado diga a este que está grávida, se ela estiver mesmo grávida.
46.°
O Estado Português, através da Polícia, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes, não gosta que as pessoas, especialmente as mulheres, sejam livres e celebrem contratos onerosos.
47.º
Assim, o Estado Português, através do Ministério Público, considerando que o F., namorado da arguida, era ofendido pela conduta da arguida, deduziu contra ela acusação pelo «crime de extorsão, p. e p. pelo art. 223°, n.º 1 e 3 al. a)»,
48.°
Em julgamento, ficou provado que não existiu qualquer extorsão de 10.000.00$00 ao F., tanto mais que, repete-se, ficou provado e registado em ata de julgamento que o F. «nunca se sentiu coagido ou ameaçado tudo tendo sido uma negociação entre ele e a A.», ora arguida requerente.
49.º
Mesmo assim, de modo incompreensível, o Estado Português, no acórdão em epígrafe do Tribunal de Braga, conseguiu que a arguida fosse sentenciada criminalmente a 3 (três) anos de prisão, o que muito convém ao Estado, para exibir alguns bodes expiatórios do sistema de justiça.
50.º
Como era necessário obter uma fundamentação para a aplicação dessa pena e não podendo ser a pena de extorsão, o Tribunal percorreu o Código Penal e escolheu a pena correspondente ao «crime de burla, previsto e punível pelo artigo 218.° n.º 2 alínea a) do Código Penal».
51.°
No entanto há manifesto lapso porque, uma vez mais, o crime de burla, definido na lei portuguesa (artigo 217.°, n.' 1, do Código Penal) consiste na conduta em que um indivíduo «com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determin[a] outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial» .
52.º
Ora, não existe enriquecimento ilegítimo de ninguém, a arguida não «provocou factos» sobre nada, não enganou ninguém, não provou astuciosamente coisa nenhuma e nada determinou, limitando-se a aceitar uma proposta contratual que livremente lhe foi feita.
53.º
Na verdade, muito singelamente, os factos são os seguintes: em 1999, em conversa telefónica entre os dois, a arguida disse ao namorado F.: «estou grávida»; e, em 2000, a arguida celebrou com o F. um Contrato de Confidencialidade de Namoro e Relacionamento Sexual com Homem Casado, regido pelo Direito Civil, permitido pelo artigo 405.° do Código Civil Português e com a forma legal prevista no artigo 219.° do mesmo diploma, com as seguintes cláusulas: Cláusula 1.ª - A A.
(ora arguida requerente) compromete-se a, relativamente ao namorado F., «se calar» e «não lhe dar cabo da vida familiar», prescindindo, nessa parte, do direito constitucional de informar a sua família e/ou a família do F. ou quaisquer terceiros acerca desse namoro e desse relacionamento sexual, e prescindindo também do direito constitucional de expressão sobre o mesmo namoro e o mesmo relacionamento sexual, nomeadamente não escrevendo crónica ou livro sobre o assunto (facto 40 da matéria provada em julgamento); Cláusula 2.ª - Em compensação por essa obrigação de silêncio perpétuo e supressão dessa eventual fonte de rendimento por direitos autorais para a A., o F. compromete-se a pagar à A., imediatamente e de uma só vez, a quantia 10.000.000$00 (factos 44 das matéria provada em julgamento); Cláusula 3.ª - O pagamento é feito em dinheiro e entregue à A. (facto 45 da matéria provada em julgamento).
54.º
A condenação da arguida pelo crime que tem como alegado ofendido o namorado F. é particularmente chocante, pois a ação da namorada dizer ao namorado «estou grávida», mesmo quando se venha a verificar «que só alegadamente se encontrava grávida» (facto 42 da matéria provada em julgamento), não é ação que faça parte de um qualquer tipo legal de crime, nem pode ser parte de facto criminoso, porque esse género de conversa pertence à reserva privada da pessoa e o Estado está proibido, por leis que protegem os direitos humanos fundamentais, de se intrometer nessa esfera, havendo, no caso, clara violação do artigo 12.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do artigo 8.°, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do Artigo 26.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. O Estado Português, através da Polícia, dos Magistrados do Ministério Público e dos juízes, não tem o direito de controlar as conversas entre namorados, averiguando se estas conversas são verdadeiras ou falsas, nomeadamente conversas sobre gravidez e aborto.
III - Conclusão
55.°
Por lapso, devendo tê-la absolvido, o Tribunal da Comarca de Braga sentenciou a ora arguida requerente na pena de 4 anos de prisão pela seguinte ação, que, por comodidade, podemos designar por «ação A», a saber: servir como «mediadora do conflito» entre namorados, resultando um «acordo feito» entre ambos, realizado em 2 de agosto de 1999, que consiste num Contrato de Confidencialidade de Namoro e Relacionamento Sexual com Homem Casado, contrato de Direito Civil, celebrado ao abrigo do artigo 405.° do Código Civil Português e com a forma legal prevista no artigo 219.° do mesmo diploma, mediante as partes acordam o seguinte: Cláusula 1.ª - A namorada compromete-se a não revelar «o relacionamento sexual mantido com o» namorado caso, prescindindo, nessa parte, do direito constitucional de informar a sua família e/ou a família do namorado ou quaisquer terceiros acerca desse namoro e desse relacionamento sexual, e prescindindo também do direito constitucional de expressão sobre o mesmo namoro e o mesmo relacionamento sexual, nomeadamente não escrevendo crónica ou livro sobre o assunto; Cláusula 2.ª - Em compensação por essa obrigação de silêncio perpétuo e supressão dessa eventual fonte de rendimento por direitos autorais para a namorada, o namorado compromete-se a pagar à namorada, imediatamente e de uma só vez, a quantia de 30.000.000$00; Cláusula 3.ª - O pagamento é feito mediante depósito na conta da «mediadora do conflito».
56.º
Por lapso, devendo tê-la absolvido, o Tribunal da Comarca de Braga sentenciou a ora arguida requerente na pena de 3 anos de prisão pela seguinte ação, que, por comodidade, podemos designar por «ação B», a saber: dizer ao namorado, em 1999, em conversa telefónica entre os dois: «estou grávida»; e, em 2000, celebrar com o namorado um Contrato de Confidencialidade de Namoro e Relacionamento Sexual com Homem Casado, regido pelo Direito Civil, permitido pelo artigo 405.º do Código Civil Português e com a forma legal prevista no artigo 219.º do mesmo diploma, com as seguintes cláusulas: Cláusula l.ª - A namorada, compromete-se a, relativamente ao namorado, «se calam e «não lhe dar cabo da vida familiar», prescindindo, nessa parte, do direito constitucional de informar a sua família e/ou a família do namorado ou quaisquer terceiros acerca desse namoro e desse relacionamento sexual, e prescindindo
também do direito constitucional de expressão sobre o mesmo namoro e o mesmo relacionamento sexual, nomeadamente não escrevendo crónica ou livro sobre o assunto; Cláusula 2.ª - Em compensação por essa obrigação de silêncio perpétuo e supressão dessa eventual fonte de rendimento por direitos autorais para a namorada, o namorado compromete-se a pagar à namorada, imediatamente e de uma só vez, a quantia 10.000.000$00; Cláusula 3.ª - O pagamento é feito em dinheiro e entregue em mão própria à namorada.
57.º
Nenhuma destas ações, A ou B, se encontra declarada punível por lei.
58.º
De acordo com o artigo 29.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, «Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação», por exemplo, ninguém pode ser condenado criminalmente por ter celebrado um contrato de direito civil, legal e plenamente válido - hipótese destes autos -, ou por não ter cumprimentado o vizinho ou o juiz que passava.
59.º
O acórdão em causa, na medida em que, visivelmente por lapso, «sentencia criminalmente» a arguida por ações A e B que a lei não declara puníveis, constitui um caso típico do vício da inexistência jurídica.
Da nulidade
60.º
A decisão ora reclamada foi, como nela expressamente se diz, proferida ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
61.º
Ora este preceito, exigia que a arguida tivesse sido ouvida por 5 dias.
62.º
Resulta dos autos que a arguida não foi notificada para ser ouvida sobre a exposição do Exm.º Conselheiro Relator.
63.º
Omitiu-se assim, o cumprimento dessa formalidade essencial, cuja omissão é tanto mais quanto é certo que se trata de um processo-crime.
64.°
Há, pois, nulidade da decisão em causa.
Termos em que requer:
- Sejam os autos remetido à jurisdição comum, para decisão definitiva da questão prévia à da inexistência jurídica da decisão ora impugnada, por ser tal jurisdição a competente em razão da matéria;
- Caso assim se não entenda, seja a decisão declara nula ou anulada, por falta de audição da arguida, prevista no artigo 78.º-A, in fine, da LTC, devendo a arguida ser notificada para se pronunciar sobre a exposição do Relator. ».
4. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, notificado da reclamação da recorrente, concluiu, na sua resposta, no sentido do não acolhimento da reclamação e da manutenção do sentido da Decisão Sumária n.º 151/13, de 19 de março (cfr. 8.º, fls. …), com os fundamentos seguintes (cfr. fls.2362-2368):
«(…)1º
Pela Decisão Sumária 453/13, de 14 de agosto (cfr. fls. 2329-2336 dos autos), a Ilustre Conselheira Relatora entendeu não tomar conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade (cfr. fls. 2305-2306 dos autos), oportunamente interposto pela arguida, ora reclamante, A..
A arguida foi, oportunamente, condenada, pela prática de dois crimes de burla, na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.
2º
Considerou, a Ilustre Conselheira Relatora, para decidir como decidiu (cfr. fls. 2332-2333 dos autos), que não se encontrava preenchido, por um lado, «o pressuposto relativo ao esgotamento dos recursos ordinários».
Com efeito, «Verifica-se, in casu, que por força da formulação, no processo, pela recorrente, de pedido de declaração de inexistência ou de nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de de 18/02/2013 ora recorrido (cfr. fls. 2302-2304), em simultâneo com a apresentação de recurso para este Tribunal (cfr. fls. 2305-2306), aquele acórdão, à data da interposição do recurso para este Tribunal ainda não se afigurava definitivo – pelo que não se encontra preenchido um dos pressupostos de admissibilidade do recurso para este Tribunal, cuja verificação se efetua por referência à data de interposição do recurso de constitucionalidade mediante a apresentação do requerimento respetivo no tribunal a quo» (destaques do signatário).
Concorda-se, inteiramente, com esta conclusão da Ilustre Conselheira Relatora.
A arguida, aliás, também o parece reconhecer, quando declara (cfr. fls. 2305 dos autos), “…expressamente que este recurso se interpõe apenas subsidiariamente, para o caso de o seu requerimento de arguição de inexistência do mesmo «acórdão», cujo conhecimento pertence ao Tribunal da Relação de Guimarães, não lhe ser deferido …”
3º
Entendeu, também, a Ilustre Conselheira Relatora (cfr. fls. 2333-2335 dos autos), que “Também não se encontra preenchido, no caso em apreço, o pressuposto relativo à suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer»”.
E, mais adiante, justifica tal asserção, referindo (destaques do signatário):
“8.2 Do teor das «alegações de recurso para o Tribunal de Guimarães de fls.» e «respetivas conclusões» (cfr. fls. 2137 a 2153, em especial fls. 2146 verso a 2153) decorre todavia, ao contrário do que alega a recorrente, que esta não pretende que o Tribunal exerça um controlo da constitucionalidade com natureza normativa.
Daquele teor decorre que a recorrente imputa a violação do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição – uma das normas constitucionais que considera violadas (cfr. requerimento de interposição de recurso, 4) – à decisão então recorrida, com a qual não se conforma (vide as conclusões 1.ª e 63.ª).
E, de igual modo, na conclusão 64.ª a) imputa a violação dos preceitos constitucionais que menciona no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal à decisão então recorrida, já que afirma que «A douta decisão violou as seguintes normas: a) Os (…) artigos 2.º, 3.º, n.º 3, 29.º, n.º 1, in fine, da Constituição da República Portuguesa.
A fiscalização da constitucionalidade e da legalidade da competência deste Tribunal incide sobre normas e não sobre decisões, incluindo, como se pretende no caso, decisões judiciais. Como se afirma no Acórdão n.º 526/98 deste Tribunal (II, 3):
«A competência para apreciar a constitucionalidade das decisões judiciais, consideradas em si mesmas - que é própria de sistemas que consagram o recurso de amparo - não a detém, entre nós, o Tribunal Constitucional.».
8.3 E, na conclusão 64.º b), que reproduz no seu requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, na parte em que se refere às normas constitucionais que, naquele requerimento, considera terem sido violadas, a recorrente limita-se a afirmar, no final, que «Violam nessa interpretação, que lhes foi dada nos autos, os artigos 2.º, 3.º, n.º 3, 29.º, n.º 1, in fine, da Constituição Portuguesa».
Tal enunciado não corresponde à suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.”
Ora, também se crê que assiste inteira razão à Ilustre Conselheira Relatora, para concluir, como concluiu, quanto a este aspeto da argumentação da ora reclamante.
4º
Na sua reclamação para a conferência, a ora reclamante apenas confirma este entendimento da Ilustre Conselheira Relatora, uma vez que se debruça, extensamente (cfr. nºs 1º-59º, a fls. 2342-2357 do seu requerimento), sobre a decisão de condenação proferida em instância de julgamento, alegando manifestos lapsos na sua prolação e a sua inexistência jurídica.
Problemas, esses, porém, que nada têm a ver com o presente recurso de constitucionalidade ou com a Decisão Sumária reclamada.
5º
Confirma-se, por outro lado, a notória similitude desta peça processual com uma outra reclamação para a conferência, anteriormente apresentada, em 10 de março de 2011 (cfr. fls. 1992-2008 dos autos), sobre a qual recaiu o Acórdão 179/11, de 12 de abril (cfr. fls. 2024-2038 dos autos), deste Tribunal Constitucional, que concluiu, quanto a este aspeto da argumentação da arguida (cfr. fls. 2037 dos autos) (destaques do signatário):
“É manifesto que o Tribunal Constitucional não se pode pronunciar sobre a invocada «questão prévia» intitulada da «inexistência jurídica da decisão de 1ª instância» (cfr. nºs 1º a 59º da reclamação), por se tratar de questão para a qual não é competente e que, para além disso, é estranha ao objeto da presente reclamação. A este respeito, saliente-se que os autos serão oportunamente remetidos ao tribunal recorrido, nos termos da tramitação legalmente prevista”.
6º
Considera, por outro lado, a arguida (cfr. nºs 61º-64º do seu requerimento, a fls. 2357 dos autos), que «não foi notificada para ser ouvida sobre a exposição do Exmo. Conselheiro relator», pelo que «omitiu-se assim, o cumprimento dessa formalidade essencial, cuja omissão é tanto mais quanto é certo que se trata de um processo-crime», concluindo, assim, que «há, pois, nulidade da decisão em causa».
Argumento, porém, que também não é novo, que constava já da reclamação para a conferência, atrás referida, e que apenas comprova, se necessário fosse, o caráter dilatório desta reclamação para a conferência.
7º
Com efeito, o Acórdão 179/11, deste Tribunal Constitucional, já teve oportunidade de, a este propósito, decidir o seguinte (cfr. fls. 2037-2038 dos autos) (destaques do signatário):
“No que respeita à invoca «nulidade» da decisão sumária reclamada (nºs 59º a 63º da reclamação), é totalmente desprovida de sentido a invocação de que a reclamante devia ter sido previamente ouvida «por 5 dias» sobre a «exposição do Conselheiro Relator». Como é sabido, as decisões sumárias são proferidas pelo relator sem qualquer audiência prévia do interessado, como é próprio deste tipo de decisão «liminar» (cfr. artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional). Ao interessado assiste, antes, o direito de reclamar da decisão do relator para a conferência, como aconteceu no presente caso (artigo 78º-A, nº 3, da LTC).
8º
Nessa medida, e por todo o exposto, crê-se que a presente reclamação para a conferência não deverá merecer acolhimento por parte deste Tribunal Constitucional, não havendo razões para alterar o sentido da Decisão Sumária 453/13, de 14 de agosto, que determinou a respetiva apresentação.
9º
A mesma reclamação tem um caráter manifestamente dilatório, recolocando em apreciação argumentação já anteriormente decidida por este Tribunal Constitucional, num processo que conta já com XI volumes, 2360 fls., inúmeras decisões, recursos e reclamações, mas em que vários dos factos criminais apreciados remontam a 1999. (…)».
Os demais recorridos, notificados para responder, não apresentaram resposta (cfr. cota de fls. 2369).
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. A recorrente reclama da Decisão Sumária n.º 453/2013, de 14 de agosto, «para o relator e subsidiariamente para a conferência», «apresentando esta reclamação também subsidiariamente em relação à questão da inexistência jurídica da decisão de 1.ª instância, que está já a ser discutida no processo - a qual é questão prévia e acarretará, se procedente, a inutilidade superveniente da presente reclamação».
Tratando-se de reclamação sumária proferida pelo relator ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, a reclamação ora apresentada deve ser apreciada como reclamação para a conferência nos termos previstos no n.º 3 do mesmo artigo 78.º-A da LTC.
6. A ora reclamante invoca dois fundamentos em apoio da sua reclamação: a inexistência da decisão de condenação proferida em instância de julgamento (cfr. requerimento de reclamação, I, A (1.º a 8.º), B (9.º a 11.º), C (12.º a 22.º), C (12.º a 22.º), II (23.º a 54.º) e III (55.º a 59.º) e a nulidade da decisão ora reclamada (cfr. requerimento de reclamação, 60.º a 64.º).
Não assiste qualquer razão à reclamante.
6.1 O alegado pela reclamante no requerimento de reclamação relativo à inexistência jurídica da decisão condenatória não releva para o presente recurso de constitucionalidade e para a apreciação da decisão sumária nele proferida e ora reclamada. Com efeito, o alegado pela reclamante não contém qualquer argumento que contrarie os fundamentos da decisão sumária reclamada e, como sublinha o representante do Ministério Público reportando-se à reclamação idêntica anteriormente apresentada e decidida pelo Acórdão n.º 179/11, de 12 de abril (cfr. resposta do representante do Ministério Público, 5.º), este Tribunal não se pode pronunciar sobre a invocada «questão prévia» «da inexistência jurídica da decisão de 1.ª instância», por se tratar de questão para a qual este Tribunal não é competente e ser estranha ao objeto da presente reclamação.
6.2 A reclamante alega ainda que a decisão sumária reclamada é nula porque o n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC «exigia que a arguida tivesse sido ouvida por 5 dias» «sobre a exposição do Exm.º Conselheiro Relator» (cfr. requerimento, 60.º a 64.º).
Também esta alegação não procede, igualmente confirmando o caráter dilatório da reclamação para a conferência. Com efeito, e tal como decidido pelo Acórdão n.º 179/11 em idêntica reclamação apresentada anteriormente (cfr. resposta do representante do Ministério Público, 7.º), as decisões sumárias são proferidas pelo Relator sem qualquer audiência prévia do interessado, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º da LTC, como é próprio deste tipo de decisão «liminar», assistindo sempre ao recorrente interessado o direito de reclamar da decisão sumária do relator para a conferência nos termos do n.º 3 do mesmo artigo da LTC.
III – Decisão
7. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos do artigo 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, e sem prejuízo da decisão de concessão de apoio judiciário.
Lisboa, 20 de novembro de 2013. – Maria José Rangel de Mesquita – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral.
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