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Processo nº 742/00
3ª Secção Rel. Cons. Sousa e Brito
(Cons. Tavares da Costa)
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A ..., identificado nos autos, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada, datado de 30 de Dezembro de 1997, que, nos termos do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, indeferiu o pedido de revisão da sua pensão de reforma. O recorrente – que é militar do quadro permanente da classe de Administração Naval com o posto de capitão tenente, graduado em capitão de mar e guerra, na situação de reforma – foi vítima de lesão em serviço de campanha, sendo-lhe reconhecida a condição de deficiente das Forças Armadas (DFA), ao abrigo do disposto no Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, com o grau de incapacidade de 64%. O Tribunal Central Administrativo (TCA), por acórdão de 18 de Novembro de 1999, concedeu provimento ao recurso, tendo anulado o acto recorrido por errada interpretação da norma do artigo 1º daquele Decreto-Lei nº 134/97, assim reconhecendo ao recorrente a “qualidade” de deficiente das Forças Armadas, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 43/76. Em face do assim decidido, a entidade recorrida interpôs recurso para a Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (STA), a qual, por acórdão de 18 de Outubro de 2000, revogou, por sua vez, o aresto anterior, por erro de interpretação e aplicação do disposto no artigo 1º do citado Decreto-Lei nº 134/97. Nas alegações que apresentou perante o tribunal ad quem o interessado invocara problemática relacionada com uma questão de constitucionalidade. Defendeu, então, que o artigo 20º do Decreto-Lei nº 43/76 dispõe que todos os direitos, regalias e deveres dos DFA ficam definidos nesse diploma, com expressa revogação do Decreto-Lei nº 210/73, exceptuando os seus artigos 1º e 7º; no entanto, o artigo 1º deste último texto não foi “anulado” pelo de 1976, “antes pelo contrário houve a preocupação dele continuar a vigorar na ordem jurídica”; assim, ao ser o recorrente qualificado como DFA, foi-lhe aplicada a norma do nº
2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76, “que já existia no Decreto-Lei nº
210/73, de 9 de Maio, e que permaneceu em vigor”. Assim, negar, ao então recorrido, os direitos previstos no Decreto-Lei nº
134/97, de 31 de Maio, “seria atribuir-lhe tratamento desigual, relativamente
àqueles que em situação idêntica vêm a gozar de tais direitos, apenas pela circunstância de a decisão de qualificação de DFA ter sido proferida após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, o que equivale a uma interpretação contrária ao princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa”. Dado que ficou com uma percentagem de deficiência maior do que a daqueles que puderam optar pelo serviço activo e, em consequência, teve de ser reformado extraordinariamente, ao não o promoverem trataram-no de forma mais desfavorável, contrariando aquele preceito constitucional (além de se violar o artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97). No entanto, não colheu, para o Supremo, a argumentação de inconstitucionalidade. Como então se escreveu, a diversidade de situações – a dos DFA como tal considerados antes do Decreto-Lei nº 43/76 e a dos que só posteriormente obtiveram essa qualificação – não viola o princípio da igualdade a interpretação do preceito do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, que só contempla os primeiros. Nesta linha de entendimento, reconhece-se que o legislador agiu no plano da liberdade da conformação legislativa, só existindo ofensa ao princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio, se a medida legislativa carece de suporte legal e se viole a imposição positiva do princípio, a exigir um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes.
2. Inconformado, A ... interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Ao limitar-se a indicar a violação do princípio constitucional de igualdade na aplicação do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, o recorrente não precisou claramente a dimensão interpretativa ou aplicativa da norma que pretende ver apreciada pelo que, já neste Tribunal, foi convidado a fazê-lo, ao abrigo do disposto no artigo 75º-A da Lei nº 28/82 e uma vez que a inicial admissão do recurso, por despacho do Conselheiro relator no Supremo, não vincula o Tribunal Constitucional (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82). Veio, então, expor o seguinte: a) o recorrente passou à situação de reforma extraordinária e foi qualificado como DFA após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 43/76, não tendo optado pelo serviço activo; b) os factos que originaram a qualificação como DFA e a passagem à reforma extraordinária dos militares do quadro permanente que podem ser abrangidos pelo disposto no artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97 ocorreram antes da entrada em vigor daquele Decreto-Lei nº 43/76; c) há, assim, militares do quadro permanente que apenas por motivo de ordem burocrática são qualificados como DFA e passam à situação de reforma extraordinária, após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 43/76 e não são abrangidos, na interpretação acolhida pelo acórdão recorrido, pelo comando do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, uma vez que se considera o disposto neste preceito somente aplicável a quem tenha passado à situação de reforma extraordinária e sido qualificado como DFA antes da entrada em vigor daquele Decreto-Lei nº 43/76; d) pelo exposto, a não aplicação do disposto no artigo 1º do Decreto-Lei nº
134/97 no concreto caso viola o princípio constitucional da igualdade. Ou seja, a não observância do preceituado neste comando legal, subentende um determinado entendimento adoptado pelo tribunal a quo que ora se impugna em sede de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade e se revela excludente da situação concreta do recorrente.
3. O relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do recurso, por ter entendido que se não verificam os pressupostos do mesmo. Escreve-se na decisão sumária :
'Na verdade, o acórdão recorrido enunciou os requisitos que, cumulativamente, se devem verificar para que haja direito à promoção nos termos do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97 e entendeu que o recorrente não podia ser qualificado como DFA, nos termos previstos nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 43/76, uma vez que a sua situação se enquadrava no artigo 1º do diploma. Ora, não é da competência do Tribunal Constitucional exercer censura sobre essa aplicação normativa, da qual resultou para o recorrente a sua exclusão do âmbito de aplicação da norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97: esta norma não foi aplicada por se entender que a respectiva situação subjacente não se lhe enquadra. Acresce que igualmente não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar se a passagem do recorrente à situação de reforma extraordinária após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 43/76, provocando não ser abrangido pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, se ficou a dever, ou não, a motivos de ordem burocrática, como alega. Ou seja, o que vem posto em causa respeita ao acto de julgamento em si, a decisão na projecção da sua singularidade e como resultado da conjugação entre a matéria de facto e o critério normativo utilizado, o que, claramente, não constitui objecto do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
[...] Em face do exposto e tendo presente o nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.'
4. Notificado, reclamou A ... (ao abrigo do nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº
28/82), defendendo que, procedendo a reclamação apresentada, se tome conhecimento do recurso.
O reclamante, consoante alega, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional por não concordar com o entendimento professado pelo acórdão de 18 de Outubro de
2000, do Supremo Tribunal Administrativo, que sancionou a tese da entidade recorrida ao concluir pela inaplicabilidade da norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, pelo facto de o recorrente não se encontrar incluído na previsão do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 43/76, “condição pressuposta de aplicação daquela norma”.
Ora, o reclamante entende que, ao não se aplicar aquela norma de 1997, violou-se o princípio constitucional da igualdade.
E não concorda com a posição assumida pelo relator da decisão sumária que considera estar em causa o acto de julgamento em si, “a decisão na projecção da sua singularidade e como resultado da conjugação entre a matéria de facto e o critério normativo utilizado” o que, em seu modo de ver, não integra objecto de recurso de constitucionalidade.
Na perspectiva do reclamante, o que está em causa e releva para este último efeito, é a interpretação restrita dada à norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº
134/97, constitucionalmente afrontando o artigo 13º da Constituição, “entendida como denegando ao recorrente a revisão da respectiva pensão de reforma extraordinária, com o fundamento da sua situação se não enquadrar na previsão do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 43/76 [...]”.
A entidade recorrida não respondeu.
O pleno da Secção decidiu que deve conhecer-se do objecto do recurso, pelo que houve substituição do relator.
II - Fundamentação :
5. Cabe aqui apurar se o recorrente suscitou na sua contra-alegação perante o Supremo Tribunal Administrativo a mesma questão de inconstitucionalidade que submete à apreciação do Tribunal no seu requerimento de interposição do recurso, completado pela resposta dada ao convite do relator para indicar a norma legal
(ou a respectiva interpretação) que pretende ver apreciada sub specie constitutionis, bem como o ponto específico da contra-alegação em que suscitou a inconstitucionalidade dessa norma.
Ora na sua contra-alegação o requerente apresentou as seguintes conclusões:
'1. O Decreto-Lei nº 43/76 de 20 de Janeiro não anulou o artigo 1º do Decreto-Lei nº 210/73, de 9 de Maio, antes pelo contrário houve a preocupação dele continuar a vigorar na ordem jurídica.
2. O Recorrente foi qualificado Deficiente das Forças Armadas na vigência do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, mas foi-lhe aplicada uma norma (artigo
1º, nº 2) que já existia no Decreto-Lei nº 210/73 de 9 de Maio, e que permaneceu em vigor, como fundamenta o douto Acórdão do Tribunal 'a quo'.
3. Negar ao recorrente os direitos previstos no Decreto-Lei nº 134/97 de 31 de Maio seria atribuir-lhe tratamento desigual, relativamente àqueles que em situação idêntica vêm a gozar de tais direitos, apenas pela circunstância de a decisão de qualificação de DFA ter sido proferida após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 43/76 de 20 de Janeiro o que equivale a uma interpretação contrária ao princípio de igualdade consagrado pelo artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
4. Como o ora recorrido ficou com uma percentagem de deficiência maior que aqueles que puderam optar pelo serviço activo, e consequentemente, teve que ser reformado extraordinariamente, ao não o promoverem tratam-no de forma mais desfavorável, o que contraria o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, e viola-se o artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio.
5. Tem toda a razão o douto Acórdão do Tribunal 'a quo'.'
Terá de entender-se que, quer a contra-alegação do recorrente, quer o requerimento de interposição do recurso, completado pela resposta ao convite do relator, se referem à interpretação do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97 de 31 de Maio, que dispõe:
'Os militares dos quadros permanente deficientes das Forças Armadas, nos termos das alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, na situação de reforma extraordinária com um grau de incapacidade geral de ganho igual ou superior a 30%, e que não optaram pelo serviço activo, são promovidos ao posto a que teriam ascendido, tendo por referência a carreira dos militares à sua esquerda à data em que mudaram de situação, e que foram normalmente promovidos aos postos imediatos.'
Embora o recorrente diga simultaneamente que a decisão do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, que nega provimento ao recurso contencioso interposto do acto de 30.12.97 do Chefe do Estado Maior da Armada que indeferira a promoção do recorrido para efeitos do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, viola o artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio e equivale a uma interpretação
(do mesmo artigo, terá que entender-se) contrária ao princípio da igualdade consagrado pelo artigo 13º da Constituição da República portuguesa, as suas palavras só podem ser interpretadas de forma coerente como exprimindo a seguinte questão de constitucionalidade normativa:
- o artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97 deve ser interpretado de modo a incluir os militares qualificados como deficientes das forças armadas (DFA) após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, nomeadamente os que o foram ao abrigo do disposto no Decreto-Lei nº 210/73, de 9 de Maio;
- a interpretação contrária do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, que só o considera aplicável a quem tenha passado à situação de reforma extraordinária e qualificado DFA antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº
43/76, é inconstitucional por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
Do mesmo modo se decidiu já questão idêntica no Acórdão nº 252/2001, desta Secção.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se :
a) revogar a decisão sumária de não conhecimento do recurso;
b) ordenar o prosseguimento do recurso.
Lisboa, 10 de Julho de 2001 José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa (vencido nos termos da decisão sumária apresentada) Messias Bento (vencido como no acórdão nº 252/2001) Luís Nunes de Almeida