Imprimir acórdão
Proc. nº 59/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. K..., Lda., deduziu, em Dezembro de 1996, junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, oposição à execução fiscal contra si instaurada para cobrança coerciva da quantia de 364.375$00, devida por 'taxas de publicidade' na via pública no ano de 1995. O magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa emitiu parecer em que se pronunciou no sentido de a oposição ser julgada procedente, com fundamento na inconstitucionalidade das normas com base nas quais a liquidação tinha sido efectuada – as normas dos artigos 3º e 16º do Regulamento de Publicidade –, por violação dos artigos 103º, nº 2, e 165º, nº 1, alínea i), da Constituição (fls. 89 a 93).
Por sentença de 22 de Maio de 2000 (fls. 102 a 112 vº), o Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa julgou improcedente a oposição.
A propósito da questão da inconstitucionalidade, concluiu assim a sentença:
'[...] constituindo a receita cobrada uma taxa, que não um imposto, não são inconstitucionais as normas regulamentares que a fixaram (arts. 3º e 16º do Reg. de Publicidade do Município de Lisboa, aprovado em execução da Lei 97/88, de
17.8 e art. 18º da Tabela de Taxas, Licenças e Outras Receitas Municipais, definidas dentro das competências atribuídas pela Lei das Finanças Locais – art.
11º/h da Lei 1/87, de 6.1), não padecendo, por tal motivo, de ilegalidade a liquidação impugnada. O Regulamento sobre Publicidade da CMLisboa, publicado em 19.3.1992, no D. Municipal nº 16 336, foi aprovado em execução da Lei nº 97/88, de 17.8. Por outro lado, o disposto nos arts. 11º, alíneas h) e o), da Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro e 39º, nº 2, alínea l), do Dec. Lei 100/84, de 29 de Março, permitem ao Município cobrar as taxas fixadas pela Assembleia Municipal e constantes da Tabela de Taxas e outras Receitas Municipais, publicada pelo Edital nº 100/89, com as alterações que posteriormente, e anualmente, foram sendo introduzidas. Atento o exposto, aquela Tabela de Taxas e outras Receitas Municipais, não padece de qualquer ilegalidade e muito menos de inconstitucionalidade, dado que se está no âmbito das taxas e não no domínio dos impostos. Improcede, assim, o fundamento invocado pelo magistrado do M. Público.'
2. O Ministério Público interpôs recurso desta sentença para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, tendo formulado as seguintes conclusões nas alegações que apresentou:
'1 - A inconstitucionalidade é fundamento de oposição
2 - A distinção entre taxa e imposto consiste fundamentalmente no carácter sinalagmático da primeira.
3 - A remoção de um limite jurídico para constituir uma taxa tem de se traduzir na utilização de um bem semi público.
4 - A autorização de colocação de um painel publicitário sem qualquer publicidade dentro de uma propriedade privada não pode ser objecto de uma taxa mas sim de um imposto por não haver lugar à utilização de um bem semi público.
5 - Os artºs. 3º e 16º do Regulamento de Publicidade cria um verdadeiro imposto.
6 - Os citados artºs. 3º e 16º do Regulamento de Publicidade porque violam os artºs. 103º, nº 2 e 165º, nº 1, al. i) da Constituição são inconstitucionais. Pelo que a aliás douta sentença deve ser revogada.'
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 29 de Novembro de
2000 (fls. 132 a 137), negou provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Lê-se no texto do acórdão, para o que aqui releva:
'[...] No caso vertente o recorrente defende a inconstitucionalidade dos artigos 3º e
16º do Regulamento de Publicidade por entender que os tributos em questão são impostos e não taxas por a remoção de um limite jurídico se não traduzir na utilização de um bem semi público. Aqueles artigos reportam-se ao licenciamento prévio da afixação ou inscrição de mensagens publicitárias em bens ou espaços do domínio público ou deles visíveis, o primeiro, e à aplicação de taxas aos licenciamentos e renovações previstos no Regulamento, o segundo. A posição assumida pelo recorrente baseia-se em acórdãos do Tribunal Constitucional, com base em doutrina financeira relativa à teoria económica do imposto (Teixeira Ribeiro, Sousa Franco) que diverge da orientação mais específica dos fiscalistas
(Alberto Xavier, Sá Gomes) e do acórdão 23555 deste Supremo Tribunal Administrativo que referimos, para o qual «o tributo decorrente da remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares relativamente proibida, a licença,
é qualificável como taxa por ser a contrapartida da actividade da verificação das condições indispensáveis àquela remoção (aí residiria o carácter sinalagmático próprio da taxa), independentemente da disponibilização cumulativa de bens da provisão pública». A Lei Geral Tributária veio mais recentemente corroborar este entendimento, o que, não sendo decisivo pela sua não aplicabilidade à situação concreta, não deixa de ser relevante. Com efeito, prescreve o artigo 4º nº 2 desse diploma que
«As taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares». A remoção do obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares aí referida sem mais não sustenta o entendimento de que só se possa configurar tal remoção como taxa se vier a possibilitar a utilização de um bem semipúblico, na esteira do entendimento fiscalista que referimos. Constituindo o tributo em causa, nos termos referidos, uma taxa e não um imposto, não se verifica a inconstitucionalidade das normas regulamentares que a sustentam que cabem na competência atribuída às autarquias, não podendo por isso proceder o recurso do Ministério Público.'
3. O magistrado do Ministério Público junto do Supremo Tribunal Administrativo interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei 28/82, pedindo a apreciação da inconstitucionalidade das normas contidas nos 'artigos 3º e 16º do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa, publicado no Edital nº 35/92, do Diário Municipal nº 16336, de 19.03.92, por violação do princípio da legalidade fiscal consignado nos artigos 103º, nº 2, e 165º, nº 1, alínea i), da Constituição' (fls. 141). O recurso foi admitido por despacho de fls. 142.
4. O Ministério Público concluiu assim as suas alegações:
'1º - Conforme jurisprudência reiterada deste Tribunal Constitucional, não se enquadram no conceito jurídico-constitucional de «taxa» as importâncias exigidas por quaisquer entidades públicas a um particular, como mera condição de remoção de um obstáculo jurídico à utilização dos seus bens próprios, sem lhe conferir direito à utilização de bens semi-públicos ou colectivos.
2º – Não constituindo «contraprestação», susceptível de integrar aquele conceito, o mero exercício de actividades gerais de polícia por tais entes públicos, com vista à fiscalização do cumprimento pelo particular dos condicionamentos ou requisitos a certa e específica utilização dos bens de que é proprietário, estabelecidos por lei ou regulamento.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
Nem K..., Lda., nem a Fazenda Pública contra-alegaram.
II
5. O presente recurso tem por objecto a apreciação da inconstitucionalidade das normas contidas nos 'artigos 3º e 16º do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa, publicado no Edital nº 35/92, do Diário Municipal nº 16336, de 19.03.92, por violação do princípio da legalidade fiscal consignado nos artigos 103º, nº 2, e 165º, nº 1, alínea i), da Constituição'.
As normas impugnadas dispõem como segue:
Artigo 3º
(Licenciamento prévio)
1. A afixação ou inscrição de mensagens publicitárias em bens ou espaços afectos ao domínio público, ou deles visíveis, fica sujeita a licenciamento prévio da Câmara Municipal.
2. Exceptuam-se do disposto no número anterior as marcas, objectos e quaisquer referências a bens ou produtos expostos no interior do estabelecimento e nele comercializados.
Artigo 16º
(Taxas)
1. São aplicáveis ao licenciamento e renovações previstos neste regulamento as taxas estabelecidas na Tabela de Taxas, Licenças e Outras Receitas Municipais.
2. Salvo disposição legal em contrário, as entidades legalmente isentas do pagamento de taxas às Autarquias não estão isentas do licenciamento a que se refere este Regulamento.
6. A questão de constitucionalidade suscitada neste processo foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional.
A propósito de normas paralelas constantes do Regulamento de Taxas e Licenças Municipais da Câmara Municipal de Guimarães, disse este Tribunal, no acórdão nº 558/98 (publicado no Diário da República, II, nº 261, de 11 de Novembro de 1998, p. 16044 ss):
'[...]
É sabido que a doutrina portuguesa – que, neste particular, tem tido acolhimento na jurisprudência que, a propósito, é seguida por este Tribunal – tem realçado que a diferença específica entre «imposto» e «taxa» se situa na existência ou não de um vínculo sinalagmático que é apontado à segunda. Assim, o encargo característico das «taxas» representa como que, para se utilizarem as palavras usadas no Acórdão nº 654/93 (ainda inédito) «o ‘preço’ do serviço ou da prestação de um serviço ou actividade públicas ou de uma utilidade de que o tributado beneficiará (e sem aqui se olvidar que esse ‘preço’ não tem, necessariamente, de corresponder à contrapartida financeira ou económica do serviço prestado)». De outra banda, o «imposto», como se escreveu no Acórdão nº 313/92 (publicado na
2ª Série do Diário da República de 18 de Fevereiro de 1993), «constitui, por si, uma receita estadual – ou até da entidade pública legalmente habilitada a cobrá-lo – que não é directamente destinada à satisfação das utilidades do tributado como contrabalanço do usufruto dessa satisfação» (cfr., sobre o tema, por entre outros, Teixeira Ribeiro «Lições de Finanças Públicas», 267 e segs., e na «Revista de Legislação e Jurisprudência», 117º, 3727, 289 e segs., Soares Martinez, «Manual de Direito Fiscal», 34 e segs., Cardoso da Costa, «Curso de Direito Fiscal», 4 e segs., Braz Teixeira, Princípios de Direito Fiscal, 43 e
44, Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», 1º vol., 42 e segs., Maria Margarida Mesquita Palha, Sobre o conceito jurídico de taxa, publicado em Centro de Estudos Fiscais – Comemoração do XX Aniversário – Estudos, 2º Vol., 582 e segs., Sá Gomes «Curso de Direito Fiscal», 92 e segs. e, mais recentemente, Pitta e Cunha, Xavier de Basto e Lobo Xavier, no artigo intitulado Os Conceitos de Taxa e Imposto a propósito de Licenças Municipais, publicado na revista FISCO, nº 51/52, 3 e segs.).
[...]
[...] não será do simples facto de o licenciamento da actividade publicitária competir, na área dos respectivos municípios, às câmaras municipais, que decorre, desde logo e sem mais, que o tributo cobrado pelas edilidades aos responsáveis pela afixação e inscrição das mensagens de propaganda, haja de ser considerado como uma «taxa». Efectivamente, não passa este Tribunal em claro que, como se disse no citado Acórdão nº 313/92, «mesmo nas hipóteses em que a actividade dos particulares sofre uma limitação, aqueloutra actividade estadual, consistente na retirada do obstáculo à mencionada limitação mediante o pagamento de um tributo, é vista pela doutrina como a imposição de uma ‘taxa’ somente desde que tal retirada se traduza na dação de possibilidade de utilização de um bem público ou semi-público (cfr., sobre o ponto, Teixeira Ribeiro na citada Revista)», acrescentando-se que, «[s]e este último condicionalismo não ocorrer, deparar-se-á uma situação subsumível à existência de um encargo ou de uma compensação tributo que se aproximará da figura do ‘imposto’ nos termos que a seguir se verão, sem que com isto se queira significar que a imposição de contributo só é recondutível à dicotomia de ‘taxas’ ou ‘impostos’». Na realidade, assente uma relação sinalagmática característica da «taxa», o que, como é claro, implica uma contrapartida de diferentes naturezas por parte do ente público impositor do tributo, tem a doutrina entendido que são essencialmente três os tipos de situações em que essa contrapartida se verifica e que se consubstanciam na utilização de um serviço público de que beneficiará o tributado, na utilização, pelo mesmo, de um bem público ou semi-público ou de um bem do domínio público e, finalmente, na remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinadas actividades por parte dos particulares (cfr. Teixeira Ribeiro, ob. e loc. cits., Pitta e Cunha, Xavier de Basto e Lobo Xavier, também ob. e loc. cits.). Ora, quando em causa se encontra a terceira daquelas situações (rememore-se, a que consiste no levantamento do obstáculo jurídico ao exercício de determinada actividade por parte do tributado), defende a doutrina que o encargo pela remoção – in casu, a concessão de licenciamento para a afixação ou inscrição de publicidade – só pode configurar-se como «taxa» se com essa remoção se vier a possibilitar a utilização de um bem semi-público (vide autores por último citados e Sousa Franco in Finanças Públicas e Direito Financeiro, 4ª ed., vol.
1, 33, que, em vez de bens semi-públicos, fala de bens colectivos, quer públicos ou privados de uma perspectiva de provisão pública, quer de bens colectivos impuros). Neste contexto, e não olvidando que a norma sub specie se reporta a painéis publicitários afixados ou inscritos, não em quaisquer bens ou locais públicos ou semi-públicos, mas sim em veículos de transporte colectivo ou em veículos particulares (e são desta última espécie os veículos da recorrente), não se lobriga, por um lado, que forma de utilização de um bem semi-público esteja em causa e, por outro, que o ente tributador venha a ser constituído numa situação obrigacional de assunção de maiores encargos pelo levantamento do obstáculo jurídico. Mas, mesmo que o tributo criado pela norma em análise, possa ser visualizado como aquilo que certa doutrina (designadamente estrangeira) apelida de contribuições especiais ou tributos especiais (cfr. Perez de Ayala e Eusebio Gonzalez, Curso de Derecho Tributário, 1º Tomo, 208), o que é certo é que a doutrina nacional, quase diríamos sine discrepante, tem sustentado que tais contribuições ou tributos não devem, do ponto de vista do seu tratamento, ser vistas diferenciadamente dos «impostos». Em face do exposto, e porque se não vê, por um lado – perspectivando o tributo em causa como um encargo derivado pelo levantamento de obstáculos jurídicos ao exercício ou ao desenvolvimento de uma actividade por parte de um particular – que haja da sua parte a utilização de um bem semi-público (ou colectivo na linguagem de Sousa Franco) e, por outro, que, mesmo na óptica de nos situarmos perante uma contribuição ou um tributo especial, ele devesse ter um tratamento sui generis diferente do que deve ser conferido aos impostos, uma só solução se nos anteolha. É ela a de a respectiva imposição haver de obedecer aos ditames que pela Lei Fundamental são dirigidos aos «impostos». E daí que a norma impositora do encargo em apreciação, porque criada por diploma não emanado pela Assembleia da República (ou pelo Governo devidamente credenciado por aquela), deva ser considerada como enfermando do vício de inconstitucionalidade orgânica.'
7. No presente recurso, não está em causa a utilização de veículos para publicidade, mas a colocação de reclamos luminosos em fachadas de prédios urbanos. Esta diferença não impede, porém, a aplicação da doutrina fixada no mencionado acórdão nº 558/98 e depois reiterada nos acórdãos nº 63/99 (publicado no Diário da República, II, nº 76, de 31 de Março de 1999, p. 4769 s) e 32/00
(publicado no Diário da República, II, nº 57, de 8 de Março de 2000, p. 4574 ss). Com efeito, também no caso dos autos se não está perante a utilização de bens ou locais públicos, mas sim de bens ou locais pertencentes a particulares.
Há assim que concluir pela inconstitucionalidade das normas questionadas – na parte em que se referem à tributação da utilização de espaços pertencentes a particulares –, por violação dos artigos 106º, nº 2, e 168º, nº
1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa, versão de 1989 (artigos
103º, nº 2, e 165º, nº 1, alínea i), na versão actualmente em vigor).
E, tal como refere o Ministério Público nas alegações produzidas neste Tribunal, 'não pode relevar o facto de, porventura, a Lei Geral Tributária ter, no artigo 4º, nº 2, lançado mão de um conceito amplo de taxa, susceptível de abarcar a remoção de quaisquer obstáculos jurídicos ao comportamento dos particulares, mesmo que não lhes consentindo a utilização de bens semi-públicos', sendo certo que não é lícito 'interpretar os preceitos e princípios constitucionais em função do direito infraconstitucional em vigor'.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 10 de Julho de 2001 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa