Imprimir acórdão
Proc. nº 365/01 Acórdão nº 412/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por decisão sumária de fls. 65 e seguintes, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, não conhecer do objecto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional pela Câmara Municipal de Faro, pelos seguintes fundamentos:
'[...]
Através do presente recurso, a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a norma do nº 1 do artigo 26º do Decreto-Lei nº 405/93, de 10 de Dezembro, numa certa interpretação, que considera ter sido acolhida pela decisão recorrida.
É o seguinte o teor da norma impugnada:
'Artigo 26º
(Execução de trabalhos a mais)
1. São considerados trabalhos a mais aqueles cuja espécie ou quantidade não houverem sido incluídos no contrato, se destinem à realização da mesma empreitada e se tenham tornado necessários na sequência de uma circunstância imprevista à execução da obra: a) Quando esses trabalhos não possam ser técnica ou economicamente separados do contrato da empreitada principal, sem inconveniente grave para as entidades adjudicantes;
b) Quando esses trabalhos, ainda que separáveis de execução do contrato inicial, sejam estritamente necessários ao seu acabamento.
[...]'
A recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da norma transcrita, 'com a interpretação com que tal norma é aplicada na decisão recorrida, isto é, quando o Tribunal recorrido se julga competente para verificar se se encontram ou não reunidos os pressupostos correspondentes ao conceito de «trabalhos a mais», o que, atenta a natureza vaga e indeterminada de tal conceito, no âmbito da chamada discricionaridade técnica, se traduz na aplicação da dita norma num sentido que viola o princípio da separação de poderes consignado no artº 111-1 da CRP'.
Ora, a norma que se pretende submeter à apreciação deste Tribunal – a norma constante do nº 1 do artigo 26º do Decreto-Lei nº 405/93, de 10 de Dezembro – não foi aplicada, como fundamento da decisão, no acórdão recorrido, com o sentido que a recorrente indica no requerimento de interposição de recurso e que considera inconstitucional.
Ou, dito de outro modo, não é possível imputar à norma referida a questão de inconstitucionalidade que a recorrente pretende ver apreciada.
Na verdade, a questão suscitada pela recorrente prende-se com a competência do Tribunal de Contas, matéria que não cabe no âmbito de aplicação da norma impugnada, nem é, de resto, regulada no diploma em que tal norma se insere – o Decreto-Lei nº 405/93, de 10 de Dezembro, que estabelece os regimes de empreitadas de obras públicas.
A questão equacionada pela recorrente apenas poderia ser objecto de apreciação por este Tribunal se fosse reportada a normas que definem a competência do Tribunal de Contas, e, desde logo, aos artigos 44º, 45º e 46º da Lei de Organização e Funcionamento do Tribunal de Contas (Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, com alterações).
Tais normas, porém, não podem constituir objecto do presente recurso de constitucionalidade, pois, quanto a elas, não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade nem foi formulado qualquer pedido de apreciação por este Tribunal.
Conclui-se assim que a norma impugnada no presente recurso não foi aplicada com o sentido mencionado pela recorrente, não podendo por essa razão dar-se como verificado um dos pressupostos processuais típicos do recurso interposto.
Tal como equacionada pela recorrente, a questão submetida à apreciação do Tribunal Constitucional não configura, pois, uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa – pelo menos enquanto reportada à norma indicada no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal. Nas circunstâncias do processo, a censura de inconstitucionalidade dirige-se afinal ao próprio acórdão recorrido (e, antes, ao acórdão confirmado por este
último acórdão).
Ora, como o Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente, o controlo de constitucionalidade que, nos recursos das decisões dos outros tribunais, a Constituição e a lei cometem ao Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que apenas pode incidir, consoante os casos, sobre as normas jurídicas que tais decisões tenham aplicado, não obstante a acusação que lhes foi feita de desconformidade com a Constituição, ou sobre as normas jurídicas cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade.
As decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem, no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de tal controlo.
[...].'
2. Da referida decisão sumária vem agora reclamar para a conferência a Câmara Municipal de Faro, nos termos do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
Na reclamação apresentada (fls. 75 a 77), a Câmara Municipal de Faro diz, em síntese, o seguinte:
'Do que assim se afirma no douto despacho sub judice parece legítimo concluir-se que a razão da rejeição do recurso se deve, segundo o entendimento defendido no mesmo despacho, ao facto de a questão equacionada pela recorrente não se reportar a uma norma que define a competência do Tribunal de Contas, não se verificando assim «uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa». Com todo o respeito, afigura-se, contudo, não ser tal entendimento o mais curial. Com efeito, qualquer norma que se caracterize por um amplo grau de indeterminação, como a que se encontra em crise, corresponde a uma norma de competência negativa para a função jurisdicional. In casu, o citado artº 26º-1 do Dec. Lei nº 405/93 corresponde a uma norma de competência negativa do Tribunal de Contas, na medida em que este se encontra limitado à esfera da função jurisdicional. Se interpretada de outro modo, o sentido da referida norma torna-se frontalmente contrário ao disposto nos artºs. 2º e 111º-1 da CRP. Assim, salvo melhor opinião, ao contrário do sustentado no douto despacho de indeferimento, a questão que nos termos do requerimento de interposição do presente recurso se pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional configura «uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa». Termos em que, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência, ser admitido o recurso.'
3. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu:
'1 - É manifesta a improcedência da presente reclamação.
2 - Na verdade – e como bem se demonstra na decisão impugnada – para além de ser duvidoso que a ora reclamante haja sequer delineado uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa – é manifesto que a questão suscitada transcende ostensivamente o âmbito do preceito legal invocado e questionado – situando-se não no plano material da definição de certo conceito legal (o de «trabalho a mais» na execução de uma empreitada) mas no plano adjectivo das competências do Tribunal de Contas para sindicar, densificar e aplicar tal conceito.
3 - Tal implica, como é evidente, a inexistência de efectiva conexão entre a questão de constitucionalidade suscitada e as normas que servem de substrato ao recurso interposto.'
4. Ora, independentemente das razões invocadas na decisão sumária reclamada, certo é que a reclamante não suscitou, durante o processo, uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa, como é exigido pelo artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional – a disposição com base na qual foi interposto o presente recurso.
Na verdade, nas alegações que apresentou no âmbito do recurso interposto perante o Plenário da 1ª Secção do Tribunal de Contas, exprimiu-se assim a então recorrente:
'[...] III – Decidindo em contrário do que se conclui em I e II, o aliás mui douto acórdão recorrido faz deficiente interpretação do citado artº 26º, violando-o; IV – Por outro lado, atenta a natureza vaga ou indeterminada do conceito de trabalhos a mais, o controlo por parte de um órgão jurisdicional da verificação ou não dos pressupostos de que a lei faz depender a competência de adjudicação atribuída à Administração, significa que o órgão jurisdicional exerça já não o controlo da legalidade da conduta da Administração mas o controlo do mérito dessa conduta, o que, sucedendo com o douto acórdão recorrido, viola o princípio da separação de poderes consignado no artº 111º/1 da CRP;
[...].'
Tal significa que a ora reclamante imputou o vício de inconstitucionalidade ao próprio acórdão recorrido e não a uma norma em que tal acórdão se tenha fundado.
A questão suscitada – por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial – excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, tendo em conta que o nosso sistema não admite o denominado recurso de amparo.
O controlo de constitucionalidade atribuído a este Tribunal só pode ter por objecto normas jurídicas e não também actos jurídicos de outra natureza, como as decisões judiciais.
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a reclamação, mantendo-se a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Sem custas, por a reclamante delas estar isenta.
Lisboa, 3 de Outubro de 2001- Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida