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Processo nº 520/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Em 30 de Julho de 2001, F... recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17 de Julho de
2001 (de fls. 285 e segs.), que confirmou o despacho de 1 de Março de 2001 do Tribunal Judicial da Comarca do Montijo (de fls.143-144), que, por sua vez, decretou a manutenção da prisão preventiva do arguido e declarou o processo, nos termos dos nºs 2 e 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal, como de excepcional complexidade.
O recurso é interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e destina-se a
“Ver aplicada a inconstitucionalidade do art. 215º, nº 3 do CPP, na interpretação feita e aplicada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, na medida em que se trata de uma norma que tem incidência directa na liberdade do arguido, contendendo directamente com direitos, liberdades e garantias, pelo que a sua interpretação e aplicação está submetida aos princípios da tipicidade e da legalidade, previstos nos artºs 29º da CRP e aos deveres de fundamentação previstos no art. 205º da CRP. A interpretação realizada pelo Tribunal da Relação de Lisboa é inconstitucional por violação dos artºs 27º nº 1, 2 e 4; 28º e 29º, nº 1 e 3 da CRP, pois a aplicação da norma in casu está ferida de um conteúdo que excede o padrão estabelecido na mesma”.
O recurso foi admitido, em decisão que não vincula este Tribunal (nº
3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
2. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as suas alegações. O recorrente concluiu do seguinte modo:
“1º A norma constante do art. 215º, nº 3 do CPP, tem natureza excepcional.
2º E visa os processos que, em virtude, nomeadamente do elevado número de arguidos ou ofendidos ou ainda, do carácter altamente organizado do crime, adquirem uma complexidade tal que dificultam ou impossibilitam a prática corrente dos actos processuais.
3º Apesar da norma não ter carácter taxativo, haverá que atender a mesma tem incidência directa na liberdade do arguido.
4º O intérprete e o julgador estão sujeitos aos princípios da tipicidade e da legalidade, consagrados nos arts. 29º da CRP e 1º do CP, não podendo atribuir à norma um conteúdo que exceda o padrão estabelecido na mesma.
5º Pelo que, não é possível, atendendo à insuficiente fundamentação da decisão recorrida e à ausência de audição prévia do arguido, considerar o processo como de extrema complexidade.
6º Pois, o processo tem apenas dois arguidos e um ofendido e a definição de “carácter altamente organizado do crime” não se aplica ao caso em concreto.
7º Pelo que não se verificam quaisquer dos pressupostos que determinariam a qualificação do procedimento como de extrema complexidade.
Assim,
8º Foi feita uma interpretação materialmente inconstitucional por violação dos deveres de fundamentação consagrados no artigo 205º da CRP e artº
97º, nº 4 do CPP.
9º Do mesmo modo que se verifica uma errada interpretação e aplicação da norma jurídica consagrada no art. 215º, nº 3 do CPP, em violação dos deveres de fundamentação consagrados no art. 205º da CRP e 97º , nº 4 do CPP
10º Do mesmo modo que, se verifica uma errada interpretação e aplicação da norma jurídica consagrada no art.º 215º, nº 3 do CPP, em violação das regras inscritas nos arts 27, nº 1, 2 e 4, 28º, nº 4, 29º, nº 1 e 3 e 32º, nº 2 da CRP.
11º Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade”.
Quanto ao Ministério Público, apresentou as seguintes conclusões:
“1º O recorrente não curou de especificar no requerimento de interposição do recurso, como lhe cumpria, qual a concreta interpretação normativa do artigo 215º, nº 3, do Código de Processo Penal que considera ter sido realizada pelas instâncias, limitando-se a remeter para a “interpretação feita e aplicada” pela Relação – e criando dúvidas fundadas sobre o preciso objecto do recurso e a questão a dirimir pelo Tribunal Constitucional – circunstância que, por si só, se revela idónea para pôr em causa a admissibilidade do recurso interposto.
2º Não implica violação de qualquer norma ou preceito da Constituição a interpretação de tal norma que se traduza em considerar que a
“especial complexidade” dos processos, referentes aos crimes aí previstos, pode decorrer, não apenas do carácter altamente organizado do crime, decorrente do profissionalismo da acção, meticulosamente preparada e levada a cabo pelos arguidos, eficaz e superiormente organizados para a realização dos seus fins criminosos, com as consequentes dificuldades e entraves ocasionados à prontidão da justiça.
3º Termos em que – a considerar-se admissível o recurso – deve o mesmo ser julgado manifestamente improcedente”.
3. Notificado para responder, querendo, à questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso suscitada pelo Ministério Público, veio o recorrente afirmar:
“1- Invoca o Exmº Senhor Procurador Geral-Adjunto que o recorrente não curou de especificar no requerimento de interposição, como lhe cumpria, qual a correcta interpretação normativa do artº 215, nº 3 do CPP que considera ter sido realizada pelas instâncias.
2- E que tal circunstância, por si só, se revela idónea para pôr em causa a admissibilidade do recurso interposto.
3- Ora o recorrente considerou no seu requerimento de interposição de recurso que “a interpretação realizada pelo Tribunal da Relação de Lisboa era inconstitucional por violação dos art. 27º, nº 1, 2 e 4 e do art. 29º, nº 1 e 3 da CRP, pois a aplicação da norma in casu está ferida de um conteúdo que excede o padrão estabelecido na mesma.
4- E veio a desenvolver esse fundamento nas suas alegações, considerando que a interpretação ultrapassou o âmbito das situações padrão, na medida em que não se verificava qualquer dos pressupostos que determinariam a qualificação do procedimento dos autos como de extrema complexidade.
5- Acrescentando que as dificuldades alegadas em sede de procedimento criminal, a par da existência de apenas dois arguidos, não preenchem a definição legal de carácter altamente organizado do crime, tal como decorre do nº 3 do 215º CPP.
6- Nestes termos, não assiste razão ao Exmº Senhor Procurador Geral-Adjunto quando sustenta o não conhecimento do recurso, na medida em que estão verificados os requisitos de interposição e apreciação do recurso.
7- Termos em que deve o presente recurso ser apreciado, seguindo-se os seus termos até final”.
4. Importa começar por verificar se estão reunidas as condições de admissibilidade do recurso, em particular no que toca à questão colocada pelo Ministério Público.
Como é sabido, e tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, é pressuposto do conhecimento do recurso que o recorrente defina a “norma cuja inconstitucionalidade (...) pretende que o Tribunal aprecie” (cfr. nº 1 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82). Tem, pois, o recorrente que determinar qual a norma ou interpretação normativa que pretende seja apreciada por este Tribunal, ou seja, que identificar de modo suficiente o objecto do recurso
(cfr., por exemplo, o acórdão nº 178/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional ,
30º, pág. 118). E este objecto há-de ser constituído por uma norma (ou interpretação normativa), e não pela decisão de que se recorre, ou pela aplicação da lei ao caso concreto.
A disposição legal que está na origem do recurso interposto é a do nº 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal (e que, na parte ora relevante, não sofreu alterações quanto ao conteúdo pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto). Tal disposição determina, relativamente a certos crimes (como é o caso dos crimes violentos) que os prazos máximos de prisão preventiva podem ser alargados, quando o procedimento “se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime”.
Identificada a disposição legal em causa, importa averiguar qual a norma ou interpretação normativa aplicada na decisão recorrida que o recorrente reputa inconstitucional.
Ora, há que reconhecer que assiste toda a razão ao Ministério Público quando afirma que o recorrente não especificou qual a interpretação que entende terem as instâncias realizado do nº 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal, em termos de se permitir que sobre ela pudesse o Tribunal Constitucional pronunciar-se.
Se é verdade que o recorrente identifica as normas constitucionais que entende terem sido violadas (entende que são violados os artigos “27º, nº 1,
2 e 4, 28º, nº 4, 29º, nº 1 e 3 e 32º, nº 2 da CRP”), já o mesmo não faz – e tinha o ónus de fazer – relativamente à norma ou interpretação normativa reputada inconstitucional. Com efeito, ressalta com suficiente clareza que o recorrente não identifica qualquer norma ou interpretação normativa, antes questionando a aplicação daquele preceito.
É que o se conclui de afirmações como a que se lê nas conclusões 5ª (em que se escreve não ser possível considerar o processo em concreto sendo de extrema complexidade “atendendo à insuficiente fundamentação da decisão recorrida e à ausência de audiência prévia do arguido”), 6ª (onde se escreve que “a definição de ‘carácter altamente organizado do crime’ não se aplica ao caso em concreto”, devido à existência de apenas dois arguidos e um ofendido), ou 7ª (onde se assevera que não se verificam quaisquer dos pressupostos que determinariam a qualificação do procedimento como de extrema complexidade”). Na verdade, não basta afirmar que se verificou uma interpretação materialmente inconstitucional, sem qualquer referência adicional identificando qual possa ser essa interpretação, para que se possa afastar a relevância das considerações formuladas ao longo do requerimento de interposição do recurso questionando a aplicação ao caso dos autos, tendo em conta as suas características singulares, da estatuição do nº 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal. Por outro lado, também a leitura do Acórdão recorrido não permite suprir a deficiência, já que não se encontra aí qualquer ensaio expresso de interpretação do nº 3 do artigo 215º, mas antes a justificação da “excepcional complexidade in casu”, tendo em conta o “carácter profissional e organizado como os arguidos actuaram que necessariamente dificultou em muito a acção da justiça”.
Se houvesse necessidade de confirmação do que fica dito – isto é, de que o recorrente não identifica a norma ou interpretação normativa impugnada –, tal confirmação encontrar-se-ia na resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, onde, além de nada se ter adiantado sobre qual a interpretação impugnada, se reafirma que a interpretação realizada é inconstitucional “pois a aplicação da norma in casu está ferida de um conteúdo que excede o padrão estabelecido na mesma”; que a razão pela qual “a interpretação ultrapassou o âmbito das situações padrão” terá sido porque “não se verificava qualquer dos pressupostos que determinariam a qualificação do procedimento como de extrema complexidade”; e que “as dificuldades alegadas em sede de procedimento criminal, a par da existência de apenas dois arguidos, não preenchem a definição legal de carácter altamente organizado do crime, tal como decorre do nº 3 do 215º CPP”. Tudo a confirmar, pois, que se questiona uma aplicação do nº 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal que se considera errada, e não uma interpretação deste preceito que se repute inconstitucional.
Assim, pelas razões indicadas, procede a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs.
Lisboa, 7 de Dezembro de 2001- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida