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Processos n.os 935/13 e 962/13
Plenário
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Um grupo de Deputados à Assembleia da República, eleitos pelo Partido Socialista, veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral:
a) Das normas do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na interpretação conjugada com a norma constante do artigo 10.º da mesma Lei;
b) Da norma do artigo 3.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na parte em que altera o artigo 126.º do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro; e
c) Das normas do artigo 4.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto.
Entendem os requerentes que tais normas são inconstitucionais por violarem – todas elas:
O direito a um limite máximo da jornada de trabalho, previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, e o comando constitucional que obriga o Estado a fixar, a nível nacional, os limites da duração do trabalho, previsto no artigo 59.º, n.º 2, alínea b), da Constituição;
Os princípios constitucionais da igualdade, da proteção da confiança legítima e da proporcionalidade próprios do Estado de Direito e acolhidos nos artigos 2.º, 13.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição;
O direito à retribuição previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição.
Um outro grupo de Deputados à Assembleia da República, eleitos pelo Partido Comunista Português, pelo Partido Ecologista Os Verdes e pelo Bloco de Esquerda, veio requerer, igualmente ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos seguintes artigos da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto:
a) As normas do artigo 2.º, “que fixa o período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas em “oito horas por dia e quarenta horas por semana” (n.º l), obrigando à adaptação dos «horários específicos» (n.º 2, o que se repete no n.º l do art. 11.º)”;
b) As normas do artigo 3.º, “que altera o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, no que toca ao período normal de trabalho”;
c) As normas do artigo 4.º, “que altera o Decreto-Lei n.º 259/98, a respeito também do período normal de trabalho”.
Na conclusão do seu pedido, estes requerentes precisam que “por violação dos princípios e das normas constitucionais acima expostos, relevando os princípios da proibição do retrocesso social, da segurança jurídica e da confiança, a par dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, está ferida de inconstitucionalidade material a norma do artigo 2.º e, consequentemente, estão feridas de inconstitucionalidade material as normas dos artigos 3.º, 4.º e 11.º, todos da Lei n.º68/2013, de 29 de agosto”.
2. É o seguinte o teor dos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, que são mencionados nos pedidos de fiscalização da constitucionalidade apresentados pelos dois grupos de requerentes:
«Artigo 2.º
Período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas
1 – O período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas é de oito horas por dia e quarenta horas por semana.
2 – Os horários específicos devem ser adaptados ao período normal de trabalho de referência referido no número anterior.
3 – O disposto no n.º 1 não prejudica a existência de períodos normais de trabalho superiores, previstos em diploma próprio.
Artigo 3.º
Alteração ao Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas
Os artigos 123.º, 126.º, 127.º, 127.º-A, 127.º-C, 127.º-D, 131.º e 155.º do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado em anexo à Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, alterada pela Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, pelo Decreto-Lei n.º 124/2010, de 17 de novembro, e pelas Leis n.os 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 66/2012, de 31 de dezembro, passam a ter a seguinte redação:
«Artigo 123.º
[...]
1 – …
2 – O período de atendimento deve, tendencialmente, ter a duração mínima de oito horas diárias e abranger os períodos da manhã e da tarde, devendo ser obrigatoriamente afixadas, de modo visível ao público, nos locais de atendimento, as horas do seu início e do seu termo.
Artigo 126.º
[...]
1 – O período normal de trabalho é de oito horas por dia e quarenta horas por semana.
2 – …
3 – …
4 – …
Artigo 127.º
[...]
1 – Por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, o período normal de trabalho pode ser definido em termos médios, caso em que o limite diário fixado no n.º 1 do artigo anterior pode ser aumentado até ao máximo de quatro horas, sem que a duração o trabalho semanal exceda sessenta horas, só não contando para este limite o trabalho extraordinário prestado por motivo de força maior.
2 – O período normal de trabalho definido nos termos previstos no número anterior não pode exceder cinquenta horas semanais em média num período de dois meses.
Artigo 127.º-A
[...]
1 – …
2 – O acordo pode prever o aumento do período normal de trabalho até duas horas e que a duração do trabalho semanal possa atingir cinquenta horas, só não se contando nestas o trabalho extraordinário prestado por motivo de força maior.
3 – Em semana cuja duração de trabalho seja inferior a quarenta horas, a redução pode ser até duas horas diárias ou, sendo acordada, em dias ou meios dias, sem prejuízo do direito a subsídio de refeição.
4 – …
Artigo 127.º-C
[...]
1 – …
2 – O período normal de trabalho pode ser aumentado até quatro horas diárias e pode atingir sessenta horas semanais, tendo o acréscimo por limite duzentas horas por ano.
3 – …
4 – …
Artigo 127.º-D
[...]
1 – O regime de banco de horas pode ser instituído por acordo entre a entidade empregadora pública e o trabalhador, podendo, neste caso, o período normal de trabalho ser aumentado até duas horas diárias e atingir cinquenta horas semanais, tendo o acréscimo por limite cento e cinquenta horas por ano, e devendo o mesmo acordo regular os aspetos referidos no n.º 4 do artigo anterior.
2 – …
Artigo 131.º
[...]
1 – Sem prejuízo do disposto nos artigos 126.º a 129.º, a duração média do trabalho semanal, incluindo trabalho extraordinário, não pode exceder quarenta e oito horas, num período de referência fixado em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, não devendo, em caso algum, ultrapassar 12 meses ou, na falta de fixação do período de referência em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, num período de referência de 4 meses, que pode ser de 6 meses nos casos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 128.º
2 – …
3 – …
Artigo 155.º
[...]
1 – O período normal de trabalho diário do trabalhador noturno, quando vigore regime de adaptabilidade, não deve ser superior a oito horas diárias, em média semanal, salvo disposição diversa estabelecida em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho.
2 – …
3 – O trabalhador noturno cuja atividade implique riscos especiais ou uma tensão física ou mental significativa não deve prestá-la por mais de oito horas num período de vinte e quatro horas em que execute trabalho noturno.
4 – …
5 – …
6 – …»
Artigo 4.º
Alteração ao Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto
Os artigos 3.º, 7.º, 8.º, 16.º e 17.º do Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, alterado pelo Decreto-Lei n.º 169/2006, de 17 de agosto, e pelas Leis n.os 64-A/2008, de 31 de dezembro, e 66/2012, de 31 de dezembro, passam a ter a seguinte redação:
«Artigo 3.º
[...]
1 – …
2 – O período de atendimento deve, tendencialmente, ter a duração mínima de oito horas diárias, abranger o período da manhã e da tarde e ter obrigatoriamente afixadas, de modo visível ao público, nos locais de atendimento, as horas do seu início e do seu termo.
3 – …
4 – …
5 – …
Artigo 7.º
[...]
1 – A duração semanal do trabalho nos serviços abrangidos pelo presente diploma é de quarenta horas.
2 – …
Artigo 8.º
[...]
1 – O período normal de trabalho diário tem a duração de oito horas.
2 – …
Artigo 16.º
[...]
1 – …
2 – …
3 – …
4 – …
5 – Para efeitos do disposto no n.º 3, a duração média do trabalho é de oito horas e, nos serviços com funcionamento ao sábado de manhã, a que resultar do respetivo regulamento.
6 – …
Artigo 17.º
[...]
1 – …
2 – O horário rígido é o seguinte:
a) Serviços de regime de funcionamento comum que encerram ao sábado:
Período da manhã – das 9 às 13 horas;
Período da tarde – das 14 às 18 horas;
b) Serviços de regime de funcionamento especial que funcionam ao sábado de manhã:
Período da manhã – das 9 horas e 30 minutos às 13 horas de segunda-feira a sexta-feira e até às 12 horas aos sábados;
Período da tarde – das 14 às 18 horas de segunda-feira a sexta -feira.
3 – …»
Artigo 10.º
Prevalência
O disposto no artigo 2.º tem natureza imperativa e prevalece sobre quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho.
Artigo 11.º
Norma transitória
1 – Os horários específicos existentes à data da entrada em vigor da presente lei devem ser adaptados ao disposto no artigo 2.º
2 – O disposto no n.º 1 do artigo 2.º não prejudica os regimes próprios de carreiras para as quais vigora, à data da publicação da presente lei, o período normal de trabalho de quarenta horas por semana e oito horas por dia, incluindo os respetivos regimes de transição.»
3. Os fundamentos das inconstitucionalidades invocadas nos pedidos de fiscalização apresentados são os a seguir indicados.
3.1. Fundamentação apresentada pelo primeiro grupo de requerentes (Deputados do Partido Socialista):
« 1. Inconstitucionalidade das normas referidas por violação do direito a um limite máximo da jornada de trabalho, previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea d) da Constituição, e do comando constitucional que obriga o Estado a fixar, a nível nacional, os limites da duração do trabalho, previsto no artigo 59.º, n.º 2, alínea b) da Constituição
a) Por força das normas constitucionais referidas em epígrafe, o Estado está constitucionalmente obrigado a fixar, a nível nacional, os limites da duração do trabalho e da jornada de trabalho, sendo naturalmente juridicamente relevante, nestas imposições constitucionais, a fixação dos limites máximos, uma vez que se trata da concretização legal do direito constitucional dos trabalhadores ao repouso e a condições adequadas de trabalho.
Estas incumbências estatais impostas pela Constituição, na referida dimensão relevante de fixação dos limites máximos, são realizadas, no sector privado, primacialmente através do artigo 203.º do Código do Trabalho (sob a epígrafe “limites máximos do período normal do trabalho”, no n.º 1: “O período normal de trabalho não pode exceder oito horas por dia e quarenta horas por semana”) e eram até agora realizadas, na função pública, através do artigo 126.º do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas onde, de forma perfeitamente análoga ao que se estabelece no Código do Trabalho, sob a epígrafe “limites máximos dos períodos normais de trabalho” se dispunha que “o período normal de trabalho não pode exceder sete horas por dia nem trinta e cinco horas por semana” (sublinhados nossos).
b) Ora, foi precisamente esta fixação obrigatória, não apenas da duração do trabalho, mas dos seus limites, mormente o limite máximo, foi agora frustrada e esvaziada pelas alterações introduzidas pelas normas aqui impugnadas, na medida em que, apesar da manutenção da epígrafe do artigo 126.º do Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas, se faz intencionalmente desaparecer qualquer referência a limites máximos ou a “não poder exceder” no corpo daquele artigo 126.º, bem como no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto.
c) Por outro lado, uma vez que se estabelece no artigo 10.º desta Lei que o “disposto no artigo 2.º tem natureza imperativa e prevalece sobre quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho”, então isso significa que aquilo que o legislador fez foi a fixação, a nível nacional, e exclusivamente para a função pública, de um limite mínimo coincidente com o período normal de trabalho imperativamente fixado, prescindindo intencionalmente da fixação, a que todavia estava constitucionalmente obrigado, de um limite máximo da jornada de trabalho e da duração do trabalho.
d) Mais ainda, essa intenção, e consequente inconstitucionalidade, resultam inequívocas quando nem sequer se pode dizer que estaria pressuposta no novo regime uma coincidência entre o período normal de trabalho agora legalmente imposto e a respetiva duração e limite máximos. É que, assumindo abertamente aquelas intenção e inconstitucionalidade, o legislador estabelece no n.º 3 do referido artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto que o período normal de trabalho agora fixado nas quarenta horas semanais e oito horas diárias “não prejudica a existência de períodos normais de trabalho superiores, previstos em diploma próprio”.
2. Inconstitucionalidade das normas referidas por violação autónoma e conjugada do princípio da igualdade, do princípio da proteção da confiança legítima e do princípio da proporcionalidade
a) Uma alteração tão quantitativamente significativa do período normal de trabalho como a que agora vem imposta, com as inevitáveis consequências nos períodos de repouso e lazer e na vida familiar dos trabalhadores abrangidos, afeta necessariamente as expectativas legitimamente fundadas que os trabalhadores depositavam na continuação do anterior regime jurídico da duração do trabalho em funções públicas.
Tendo em conta que a alteração foi completamente inesperada, dado que nunca tinha sido aventada publicamente e contradiz tanto o que foi o sentido da evolução dos horários de trabalho nas últimas décadas quanto o que seria racionalmente expectável numa situação de grande desemprego, percebe-se a grandeza significativa da consequente afetação de expectativas.
b) Portanto, para não entrar em contradição insuperável com o programa constitucional, esta alteração teria que ser fundamentada num interesse público constitucionalmente relevante e suficientemente ponderoso para justificar a afetação das expectativas e teria de ter encontrado um desenvolvimento legislativo coerente com tal objetivo.
Verifica-se nesse plano, quando se indagam as justificações e intenções do proponente (proposta de lei n.º 153/XII/2ª) acolhidas pelo legislador, que na fundamentação das alterações está uma alegada preocupação de justiça e equidade, visando-se, com base nela, uma convergência de regimes entre o sector público e o privado, “passando os trabalhadores do primeiro a estar sujeitos ao período normal de trabalho que há muito vem sendo praticado no segundo”.
Dir-se-ia que tais razões e preocupações justificariam a referida afetação dos interesses e expectativas legítimas dos trabalhadores em funções públicas e, a serem comprovados, dificilmente se poderia sustentar a violação, neste domínio, das normas e princípios constitucionais referidos na epígrafe. Sucede, porém, que as alegadas intenções e preocupações invocadas pelo proponente e acolhidas pelo legislador são completamente desmentidas pela concretização legislativa adotada, na medida em que o novo regime agora imposto resulta numa clara divergência de regimes de duração do trabalho em funções públicas e em funções privadas, mas agora com evidente e completamente injustificado desfavor do regime do primeiro relativamente ao segundo.
Sucede, porém, que as alegadas intenções e preocupações invocadas pelo proponente e acolhidas pelo legislador – a saber, uma preocupação de justiça e equidade, visando-se uma convergência de regimes entre o setor público e o privado - são completamente desmentidas pela concretização legislativa adotada, na medida em que o novo regime agora imposto resulta numa clara divergência de regimes de duração do trabalho em funções públicas e em funções privadas, mas agora com evidente e completamente injustificado desfavor do regime do primeiro relativamente ao segundo.
c) Em primeiro lugar, como se referiu acima, enquanto que no setor privado (Código do Trabalho) o legislador fixou os limites máximos da duração semanal e da jornada de trabalho e deixou à contratação coletiva a disponibilidade e a margem para o estabelecimento de períodos normais de trabalho abaixo desse limite, na função pública o legislador fixou um período normal coincidente com os limites máximos do setor privado e, dado o caráter imperativo atribuído a esta normação, proibiu absolutamente qualquer afastamento desses limites.
Por isso, contradizendo frontalmente a alegada justificação de convergência de regimes, fundada em preocupações de justiça e equidade, o legislador instituiu dois regimes distintos, com claro desfavor para o horário de trabalho em funções públicas. É assim que, na prática, enquanto que na função pública todos os trabalhadores passarão a ter de cumprir um período normal de quarenta horas semanais e oito diárias, no sector privado continuará a haver inúmeras situações, sectores de atividade e categorias profissionais, abrangendo largas dezenas de milhares de trabalhadores, com horários abaixo desse limite que, como se referiu, é apenas limite máximo no sector privado, mas passou a ser mínimo imperativo no sector público.
d) Dir-se-ia que ao legislador não restava outra via, dado que, se pretendia equiparar os dois setores, não poderia manter a generalidade dos trabalhadores da função pública com os horários atualmente existentes. Não é assim, o legislador poderia garantir a equidade e equiparação dos regimes e não o fez porque, intencionalmente, optou pela diferenciação.
Para garantir a equiparação em termos jurídicos, bastava que o legislador adotasse exatamente o mesmo regime para os dois setores, ou seja, reproduzisse, no Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, as disposições correspondentes constantes do Código do Trabalho.
Para garantir a equiparação em termos práticos, bastava que o legislador tivesse feito as mesmas imposições num e noutro setor, ou seja, se pretendia que todos passassem a trabalhar quarenta horas semanais devia ter fixado essa imposição para todos; se pretendia admitir flexibilização, devia tê-la admitido para todos. Se admite que um acordo coletivo no setor privado possa fixar um horário abaixo dos limites máximos, como hoje acontece generalizadamente, deve admitir a mesma possibilidade no setor público.
e) Nem se diga que o legislador tem margem constitucional para fixar esse regime no setor público, mas não o pode fazer no setor privado. Essa ideia não tem qualquer sustento constitucional e é totalmente anacrónica, o que é claramente evidente quando se verifica, hoje, uma situação de convergência de regimes baseada na laboralização das relações de trabalho em funções públicas.
Não o tendo feito, o legislador evidencia que a verdadeira razão para a presente alteração do horário de trabalho em funções públicas não foi a equiparação de regimes, nem foi uma preocupação de justiça e equidade, pelo que, para além da desigualdade arbitrariamente instituída, a afetação de expectativas não é justificada em interesse público prevalecente e o sacrifício imposto é excessivo, desnecessário e inidóneo tendo como referência a justificação proclamada pelo legislador.
3. Inconstitucionalidade das normas referidas por violação do direito à retribuição segundo a quantidade, natureza e qualidade do trabalho previsto no artigo 59.º, n° 1, alínea a), da Constituição e por restrição excessiva do mesmo direito
a) Por último, mesmo se admitíssemos, por hipótese, que o legislador poderia ter imposto unilateralmente um aumento do período normal de trabalho aos trabalhadores em funções públicas, e só a eles, quando a justificação era, todavia, a da equiparação com o regime do setor privado, há que ter em conta que esse aumento, uma vez que não foi acompanhado da correspondente e devida atualização salarial, significou exatamente uma perda salarial correspondente à percentagem do acréscimo de período de trabalho verificada.
Esse corte salarial, apesar de real, pode não aparecer refletido nos salários nominais, mas é desde já perfeitamente evidente na diminuição do salário/hora e, como tal, é imediatamente refletido no próprio salário nominal dos trabalhadores em tempo parcial que mantiverem, por necessidades de serviço, o horário atual.
Deve, portanto, a atual alteração legislativa ser também constitucionalmente escrutinada à luz da restrição verificada no direito à retribuição.
b) Neste domínio, não tendo a alteração sido apresentada e, logo, justificada neste plano, mas apenas enquanto intenção de justiça e equidade no domínio da quantidade de trabalho prestada nos setores público e privado, ela constitui uma restrição absolutamente injustificada e, enquanto tal, diretamente violadora do direito à retribuição segundo a quantidade, natureza e qualidade do trabalho prestado; mantendo-se inalteradas natureza e qualidade e impondo o Estado um aumento da quantidade sem o correspondente pagamento, há uma violação direta do direito a ser retribuído pelo trabalho prestado.
c) Por outro lado, e diferentemente dos cortes até agora verificados e apreciados pelo Tribunal Constitucional, este é um corte que, para além de significativo e para além de acrescer a todos os outros cortes que atingiram os trabalhadores em funções públicas nos últimos anos, apresenta a gravidade suplementar que resulta do seu caráter permanente.
Como tal, e tendo especialmente em conta que para um corte com essa gravidade o legislador não apresenta qualquer justificação específica, há um manifesto excesso e desproporcionalidade no sacrifício por ele imposto.»
3.2. Fundamentação apresentada pelo segundo grupo de requerentes (Deputados do Partido Comunista Português, do Partido Ecologista Os Verdes e do Bloco de Esquerda):
« 3. Há que reconhecer que foram sempre intensas as lutas dos trabalhadores ao longo dos tempos com vista à redução dos períodos de trabalho e ao consequente aumento dos tempos de repouso e de lazer, contrapondo-se a essas lutas as reações das entidades patronais a tais reivindicações, agitando a bandeira da ruína e falência das empresas.
Entre nós, e quanto ao sector privado, registe-se a evolução a partir de 1971, com o Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro, com os limites máximos dos períodos normais de trabalho, fixados em 48 horas por semana e 42 horas para os empregados de escritório, seguindo-se as leis n.º 73/98, de 10 de Novembro, e 21/96, de 23 de Julho, quanto às soluções relativas aos limites de duração do trabalho, culminado nas 40 horas no atual Código do Trabalho (art. 163.º).
4. Relativamente à Administração Pública e, concretamente, aos trabalhadores em funções públicas, o patamar aqui relevante é o do Decreto-Lei n.º 187/88, de 27 de Maio, que, reconhecendo nunca ter existido “um instrumento legal que, de modo sistemático, reunisse os princípios fundamentais enformadores do regime jurídico da duração do trabalho', veio fixar a duração semanal do trabalho em 35 horas ou em 40 a 45 horas, “respetivamente para o pessoal dos grupos auxiliar e operário”, podendo “ser reduzida progressivamente com vista à uniformização dos regimes de trabalho” (art. 2.º, n.º 1 e 2), o que aconteceu com o Decreto-Lei n.º 263/91, de 2 de Julho, fixando a duração semanal do trabalho em 40 horas para aquele pessoal.
Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de Agosto, veio substituir e revogar aqueles Decretos-Leis n.ºs 187/88 e 263/91, estabelecendo, de vez, a duração semanal do trabalho em 35 horas (arts. 7.º e 41.º), apenas com um regime transitório para o pessoal dos grupos operário e auxiliar, de 37 horas em 1998 e de 36 horas em 1999 (art. 39.º, n.º1).
Tal significa que a conquista das 35 horas, hoje prevista no art. 126.º do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (RCTFP), consolidar-se ao longo destes últimos vinte e cinco anos, tratando-se de um regime inovatório relevante para o teor de vida dos trabalhadores em funções públicas, com reflexo na vida das suas famílias (e sem envolver redução das remunerações). Um espaço de autodisponibilidade dos trabalhadores.
5. Ora, tudo isto, em matéria de duração semanal do trabalho, é uma concretização intensa e extensa de direitos constitucionalmente tutelados, em função do princípio da dignidade da pessoa humana, que é a bandeira sacramental do art. 1.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Assim, entre os direitos dos trabalhadores:
- a “formação cultural e técnica e a valorização profissional” (art. 58.º, n.º 2, c)).
- a “organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da atividade profissional com a vida familiar” (art. 59.º, n.º 1, d)).
Todos os direitos que incumbe ao Estado garantir e promover, no âmbito alargado da 'condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito', com o horizonte da promoção do bem-estar e da qualidade de vida do povo, como assinala o art.º 9.º, entre as tarefas fundamentais do Estado (alínea d)).
Pode, assim, ver-se aqui um retrocesso social, com o regresso aos tempos anteriores a 1988, quando os trabalhadores em funções públicas adquiriram um clima de segurança jurídica e de confiança consolidadas com a fixação da duração semanal do trabalho em 35 horas, e certamente tinham a expectativa de manter o mesmo teor de vida ou até melhorar.
Isto porque a intervenção legislativa de 1988, implementadora de um determinado grau de satisfação para os trabalhadores em funções públicas, quanto à duração semanal do trabalho, não pode ser arbitrariamente objeto de “marcha-atrás”, sobretudo, existindo uma fundamentação justificativa.
A nova medida, introduzida de forma tão abrupta e inesperada pelas normas questionadas da Lei n.º 68/2013, afetando os planos de vida dos trabalhadores, traduz-se numa violação dos princípios da proibição do retrocesso social, da segurança jurídica e da confiança legitimamente consideradas, que se extraem da definição do Estado de direito democrático consagrado no art. 2.º da CRP. E, uma violação em articulação com a violação das normas constitucionais acima identificadas e que definem, entre muitos outros, direitos fundamentais para os trabalhadores. Direitos que, em boa parte, são postergados com o aumento da carga horária dos trabalhadores, em prejuízo deles e das suas famílias, ao arrepio da tão desejada “conciliação da atividade profissional com a vida familiar”, como proclama o art. 67.º, n.º 2, c), da CRP, afetando necessariamente as expectativas fundadas que os trabalhadores depositavam no anterior horário.
6. Depois, a disparidade materialmente injustificada entre a duração do trabalho no sector público - com o standard único das 40 horas, apontando para um limite máximo, prevendo-se ainda no Código do Trabalho soluções amortecedoras, com horários muito diversos. Do que resulta sempre uma semana de trabalho mais longa para os trabalhadores em funções públicas, o que significa que lhes é imposto um sacrifício excessivo e desnecessário.
Nem se diga que assim se avança, se dá mais um passo, na convergência entre aqueles dois sectores, quando há, na prática, uma diferenciação/discriminação real entre eles, criando-se com a lei das 40 horas dois regimes distintos, em claro desfavor do horário de trabalho dos trabalhadores em funções públicas (estes têm de cumprir sempre as 40 horas, mas os trabalhadores do sector privado podem ou não cumpri-las, dependendo das variáveis previstas no Código do Trabalho).
As 40 horas vigoram, assim, em pleno para o sector público, mas são um limite máximo do período normal de trabalho no sector privado, desde logo, menos de 40 horas na sequência das convenções coletivas do trabalho (o exemplo dos sectores da banca e de seguros).
Com efeito, no Boletim Estatístico de abril de 2013, do Banco de Portugal, constata-se que, de um total de 4.256,8 milhares de trabalhadores, em dezembro de 2012, mais de 1 milhão tem um horário inferior a 35 horas semanais e 2.113,4 milhares têm um horário entre 36 e 40 horas - os trabalhadores da AP rondam hoje os 580 mil.
Tal disparidade em diferenciação/discriminação negativa gera a violação do princípio da igualdade, lido à luz de uma justiça social para todos os trabalhadores, o que se extrai das normas dos arts. 13.º, 9.º, d), e 81.º, b), da CRP, conjugadamente aplicados.
7. Por fim, não pode esquecer-se o reflexo do aumento da duração semanal do trabalho para 40 horas - mais 5 horas do que a duração atual- na redução permanente da remuneração dos trabalhadores em funções públicas (mais trabalho por mais horas, mantendo-se inalterada a remuneração, o que se traduz numa perda da remuneração por semana, na ordem de uma desvalorização de cerca de 14,3).
Tratando-se de um fator de cálculo da remuneração dos trabalhadores, veja-se a diferença entre o regime atual e o proposto na “Lei das 40 horas”.
Embora a CRP se refira apenas à 'retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade', sem aludir a aumentos ou a diminuição, é facto que liga a retribuição do trabalho a uma “forma a garantir uma existência condigna” (art. 59.º, n.º1, a)).
Isto pode revelar que a medida, pretensamente adaptada, das 40 horas e o reflexo na redução permanente da remuneração, revista natureza desnecessária, desadequada e irrazoável, pelo menos, para certos tipos de remuneração, sobretudo, quando se trata de tipos de remuneração mais baixa ou de nível mais baixo, no limite do salário mínimo social.
Verifica-se, então, uma violação do princípio da proporcionalidade, que se extrai das normas dos arts. 18.º, n.º 2, 266.º; n.º 2, e 272.º, n.º 2, na medida em que se entra no domínio da desnecessidade, da irrazoabilidade e da desadequação da medida legal das 40 horas, brigando com a exigência de “existência condigna”, cuja garantia se conexiona com a retribuição do trabalho, refletindo o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1.º da CRP.»
4. Notificada para, querendo, se pronunciar sobre os pedidos, a Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos. Quanto à solicitada atribuição de prioridade na apreciação e decisão do processo, nos termos do artigo 65.º, n.º 4, da LTC, a Presidente da Assembleia da República manifestou a sua concordância.
5. O Presidente do Tribunal Constitucional, atenta a identidade substancial dos pedidos de fiscalização apresentados pelos dois grupos de requerentes, determinou, ao abrigo do citado artigo 64.º, n.º 1, da LTC a incorporação do segundo pedido no processo respeitante ao primeiro. Mais determinou, com base no artigo 65.º, n.º 4, da mesma Lei, a atribuição de prioridade à apreciação e decisão do presente processo.
6. O Governo, na qualidade de proponente da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, veio requerer, com base no “princípio da colaboração – que encontra eco, designadamente, no artigo 64.º-A da [LTC - a] junção aos autos de uma nota explicativa relativamente ao presente processo de apreciação da constitucionalidade”. Por despacho do Presidente do Tribunal Constitucional, foi a mesma nota apensada aos presentes autos.
7. Foi discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, de acordo com o disposto no n.º 2 do mesmo artigo, cumprindo agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
II - Fundamentação
A) O sentido das normas objeto dos pedidos de fiscalização
8. Deve começar por notar-se que nos dois pedidos se destaca uma questão principal de inconstitucionalidade respeitante ao artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, que estatui o novo período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas. Nesse preceito inclui-se a previsão da prestação de oito horas de trabalho por dia e quarenta horas por semana, a adaptação dos horários específicos a essa mesma regra e a previsão da possibilidade de existência de períodos normais de trabalho superiores, previstos em diploma próprio. Todos os fundamentos aventados – do direito a um limite máximo da jornada de trabalho à questão da redução salarial e do retrocesso social, dos princípios da igualdade e da proporcionalidade à questão da proteção da confiança – se referem, no fundo, ao aumento da jornada de trabalho dos trabalhadores em funções públicas para oito horas diárias e quarenta horas semanais. Nestes termos, a verificar-se a inconstitucionalidade das normas dos artigos 3.º, 4.º e 11.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2013, a mesma será sempre uma consequência da eventual inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º da citada Lei, na medida em que aqueles artigos se limitam a introduzir nos diplomas legais pertinentes (designadamente, no Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas e no Decreto-Lei n.º 259/98) as alterações necessárias à conformação com o regime jurídico instituído pelo artigo 2.º. De resto, isso mesmo é expressamente reconhecido no pedido apresentado pelo segundo grupo de requerentes. Assim, é essencialmente nas normas contidas neste preceito que deverá centrar-se a análise de conformidade com a Lei Fundamental, por parte deste Tribunal.
Há, porém, no respeitante a essa parte central do objeto dos pedidos, uma diferença a assinalar.
O primeiro grupo de Deputados (do Partido Socialista) vem requerer, expressamente, a declaração de inconstitucionalidade “das normas constantes do artigo 2.º da Lei n° 68/2013, de 29 de agosto, na interpretação conjugada com a norma constante do artigo 10.º da mesma lei” (itálico aditado). Não é, portanto, a norma simplesmente resultante da interpretação do artigo 2.º - prevendo o aumento da duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas para quarenta horas semanais, com a consequente adaptação dos horários específicos e a previsão da possibilidade de existência de períodos normais de trabalho superiores – que deve ser confrontada com as normas e os princípios constitucionais. Efetivamente, nos termos desse primeiro pedido, a norma a analisar, resultante da interpretação conjugada do disposto nos artigos 2.º e 10.º da Lei n.º 68/2013, é, segundo os requerentes, a que impõe àqueles trabalhadores uma jornada de trabalho de oito horas diárias e quarenta horas semanais, proibindo-se, ao mesmo tempo, a previsão de um período normal de trabalho inferior por via de lei especial, ou de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho. É assim que o primeiro pedido vem requerer a inconstitucionalidade de tal aumento na medida em que, longe de estabelecer uma regra, ou mesmo um teto máximo, como acontece no artigo 203.º do Código do Trabalho, impõe, na interpretação aduzida, um limite mínimo imperativo, que se sobrepõe a qualquer lei especial ou instrumento de regulação coletiva do trabalho já em vigor, e impedindo também o estabelecimento, para o futuro, de períodos normais de trabalho inferiores com recurso a tais leis ou instrumentos.
Já no segundo pedido (o formulado por um grupo de Deputados do Partido Comunista Português, do Partido Ecologista Os Verdes e do Bloco de Esquerda) contesta-se expressamente a admissibilidade constitucional do aumento do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, em si mesmo, independentemente da sua alterabilidade, para menos, por lei especial ou por instrumento de regulamentação coletiva do trabalho. Os requerentes parecem questionar apenas a conformidade constitucional das normas contidas no artigo 2.º, qua tale, ou seja, pretendem simplesmente ver declarada a inconstitucionalidade do aumento do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, sem mais, nos termos em que ele está previsto naquele artigo. Não só não é questionada a incidência do disposto no artigo 10.º sobre as normas do artigo 2.º, como aquela disposição nem sequer se integra no objeto do pedido.
Pode duvidar-se, é certo, que entre os dois pedidos interceda, a este respeito, uma sensível diferença de sentido impugnatório, uma vez que também no segundo pedido se parte do princípio de que as quarenta horas fixadas no artigo 2.º constituem um limite mínimo, o que é sobretudo manifesto quando aí se estabelece o confronto com o regime de duração do trabalho no sector privado (cfr. o n.º 6 desse pedido). De todo o modo, tal pedido não estabelece qualquer conjugação entre as normas dos artigos 2.º e 10.º da Lei n.º 68/2013, não imputando a interpretação quanto à obrigatoriedade do período laboral de quarenta horas (5x8 horas/dia) ao disposto neste último artigo.
Assim sendo, não é seguro que a interpretação do regime infraconstitucional feita nos dois pedidos seja rigorosamente a mesma, sendo inequívoco que a imperatividade imposta ao regime do citado artigo 2.º por via do disposto no artigo 10.º, na interpretação perfilhada pelo primeiro grupo de requerentes, abre a porta a dimensões valorativas que, em muito, fazem acrescer a problematicidade constitucional desse regime, desde logo, em virtude da radicalidade da mudança que o mesmo significaria, em relação ao regime anteriormente vigente para os trabalhadores da Administração Pública, e, bem assim, pela fundamental diferença de tratamento que o mesmo regime introduziria nas regras aplicáveis a estes últimos, quando contratados, no confronto com os trabalhadores sujeitos ao Código do Trabalho.
Justifica-se, por conseguinte, que o tratamento das questões de constitucionalidade seja precedido da fixação do sentido com que as normas objeto dos pedidos de fiscalização hão-de valer. De resto, nos processos de fiscalização abstrata da constitucionalidade, cabe ao Tribunal Constitucional determinarar o conteúdo e alcance das normas fiscalizadas. Sem uma operação deste tipo, é naturalmente impossível avaliar a legitimidade constitucional de tais normas, uma vez que, ao contrário do que acontece na fiscalização concreta, o seu conteúdo e alcance não são um dado resultante da atividade interpretativa do tribunal a quo. Neste sentido, pode dizer-se que o Tribunal, nos processos de fiscalização abstrata, goza de um “poder autónomo de interpretação da disposição legal impugnada” (cfr. Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade: os Autores, o Conteúdo e os Efeitos da Decisão de Inconstitucionalidade da Lei, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, p. 397).
9. Como referido, especialmente na ótica do pedido formulado pelo primeiro grupo de requerentes, atento o que se estabelece no artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, aquilo que o legislador fez no artigo 2.º da mesma Lei foi a fixação “exclusivamente para a função pública, de um limite mínimo coincidente com o período normal de trabalho imperativamente fixado”. A previsão, no n.º 3 do artigo 2.º, da possibilidade de previsão, em diploma próprio, de períodos normais de trabalho superiores às quarenta horas semanais e às oito horas diárias apenas confirmaria a «não coincidência» entre o período normal de trabalho e a respetiva duração e limite máximos.
As incumbências estatais impostas pela Constituição de fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho e da jornada de trabalho (artigo 59.º, n.os 1, alínea d), e 2, alínea b) ), segundo estes requerentes, “eram até agora realizadas, na função pública, através do artigo 126.º do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (“RCTFP”), onde, de forma perfeitamente análoga ao que se estabelece no Código do Trabalho, sob a epígrafe «limites máximos dos períodos normais de trabalho» se dispunha que «o período normal de trabalho não pode exceder sete horas por dia nem trinta horas por semana» (sublinhados nossos)”. E os requerentes prosseguem:
« b) Ora, foi precisamente esta fixação obrigatória, não apenas da duração do trabalho, mas dos seus limites, mormente o limite máximo, que foi agora frustrada e esvaziada pelas alterações introduzidas pelas normas aqui impugnadas, na medida em que se faz intencionalmente desaparecer qualquer referência a limites máximos ou a “não pode exceder” no corpo daquele artigo 126.º, bem como no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto.
c) Por outro lado, uma vez que se estabelece no artigo 10.º desta Lei que “o disposto no artigo 2.º tem natureza imperativa e prevalece sobre quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho”, então isso significa que aquilo que o legislador fez foi a fixação, a nível nacional, e exclusivamente para a função pública, de um limite mínimo coincidente com o período normal de trabalho imperativamente fixado, prescindindo intencionalmente da fixação, a que todavia estava constitucionalmente obrigado, de um limite máximo da jornada de trabalho e da duração do trabalho.
d) Mais ainda, essa intenção, e consequente inconstitucionalidade, resultam inequívocas quando nem sequer se pode dizer que estaria pressuposta no novo regime uma coincidência entre o período normal de trabalho agora legalmente imposto e a respetiva duração e limite máximos. É que, assumindo abertamente aquelas intenção e inconstitucionalidade, o legislador estabelece no n.º 3 do referido artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto que o período normal de trabalho agora fixado nas quarenta horas semanais e oito horas diárias “não prejudica a existência de períodos normais de trabalho superiores, previstos em diploma próprio”.»
Deste modo, a norma que este grupo de requerentes retira do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, em conjugação com o artigo 10.º da mesma lei, é a imposição de um limite mínimo imperativo de oito horas diárias e quarenta horas semanais para o trabalho em funções públicas, limite este que se sobrepõe a qualquer lei especial ou instrumento de regulamentação coletiva de trabalho já em vigor, e que impede igualmente o estabelecimento, para o futuro, de períodos normais de trabalho inferiores com recurso a tais leis ou instrumentos.
Saliente-se que tal interpretação não invoca a seu favor – compreensivelmente, dada a data de início da produção de efeitos das alterações constantes dos artigos 2.º a 4.º da Lei n.º 68/2013, de acordo com o respetivo artigo 12.º - qualquer manifestação do «direito vivente»: decisões judiciais ou práticas da Administração Pública; a mesma interpretação baseia-se exclusivamente na leitura que os requerentes fazem das disposições da mencionada Lei.
10. Sucede que tal interpretação não atende suficientemente nem à teleologia da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, em matéria de duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas nem à articulação sistemática das alterações por ela introduzidas nos diferentes regimes que regem essa matéria – o RCTFP (em especial, os artigos 117.º a 167.º), para os trabalhadores sujeitos ao regime do contrato de trabalho em funções públicas, adiante referidos abreviadamente como “trabalhadores contratados” (cfr. os artigos 20.º e 88.º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro); e o Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, para os trabalhadores nomeados (cfr. os artigos 10.º e 88.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, e o artigo 25.º, n.º 2, da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro). Mais: a mesma interpretação desconsidera aspetos que relevam da mera técnica legislativa e, a ser aceite, conduziria a resultados inconsequentes e contrários à intenção expressa do legislador, indiciada, desde logo, pela manutenção da epígrafe do artigo 126.º do RCTFP, pela não alteração da redação do artigo 129.º, n.º 1, do mesmo Regime e, sobretudo, pela omissão de revogação expressa do artigo 130.º, também desse Regime.
De acordo com a citada interpretação, a letra do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013 é o elemento hermenêutico decisivo, sobretudo quando qualifica a norma do artigo 2.º como «imperativa».
Porém, esse artigo 2.º, mesmo revestindo caráter imperativo, tem de conjugar-se com os artigos 3.º e 4.º da mesma Lei, os quais modificam preceitos contidos noutros dois diplomas que a Lei n.º 68/2013 pretende alterar e que expressamente determinam os termos em que a imperatividade do novo período normal de trabalho de referência deve ser entendida no âmbito de tais diplomas (o RCTFP e o Decreto-Lei n.º 259/98). E é certo que o artigo 10.º não pretende modificar os termos de tal articulação; aliás, o mesmo artigo nem sequer se reporta aos artigos 3.º e 4.º, os quais estão, assim, fora do seu âmbito de aplicação.
O objetivo e alcance do artigo 10.º em causa é apenas, e nos seus termos literais, fazer prevalecer o novo período normal de trabalho de referência sobre “quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho”. Na verdade, uma vez que tal preceito não integra uma lei de valor reforçado nos termos do artigo 112.º, n.º 3, da Constituição, o mesmo também não pode impedir leis especiais novas de derrogarem o período normal de trabalho fixado no artigo 2.º. E, do mesmo modo, não afetando o artigo 10.º diretamente nem a disciplina do RCTFP nem a disciplina do Decreto-Lei n.º 259/98 – a concretização das alterações decorrentes da fixação do novo período normal de trabalho de referência pelo artigo 2.º da Lei n.º 68/2013 é feita direta e especialmente (e, portanto, também exclusivamente) pelos artigos 3.º e 4.º da mesma Lei –, tal preceito não impede igualmente que sejam estabelecidas derrogações posteriores ao novo período normal de trabalho, nos precisos termos em que no âmbito de cada um desses dois regimes comuns – para efeitos do artigo 10.º em causa, trata-se em ambos os casos de leis gerais (aliás expressamente qualificadas como tais, respetivamente, no artigo 81.º, n.º 1, alínea d), e no artigo 80.º, n.º 1, alínea d), ambos da Lei n.º 12-A/2008) – tais derrogações sejam admitidas.
Por isso, em especial no que se refere aos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho expressamente admitidos pelo artigo 130.º do RCTFP, a prevalência prevista no artigo 10.º da Lei n.º 68/2013 rege apenas para o passado, fazendo cessar todos aqueles instrumentos de que resulte um período laboral inferior ao agora fixado; mas, para o futuro, não fica impedida a consagração, por via de negociação coletiva, de alterações ao novo período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, em sentido mais favorável a esses trabalhadores.
Por outro lado, a mesma imperatividade não contende com a existência de períodos normais de trabalho superiores previstos em leis especiais anteriores – que são expressamente salvaguardados pelo artigo 2.º, n.º 3, da Lei n.º 68/2013; nem com a aplicação dos regimes próprios de carreiras para as quais vigore, à data da publicação desta Lei, o período normal de trabalho de quarenta horas por semana e oito horas por dia, incluindo os respetivos regimes de transição (cfr. o n.º 2 do seu artigo 11.º).
Em suma, o período normal de trabalho de referência estabelecido no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2013 corresponde a um período máximo de duração do trabalho, que pode ser reduzido, quer por lei especial nova, quer por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho posterior àquela Lei (quer, ainda, nos termos do n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 259/98). Trata-se, por conseguinte, ao menos no que se refere aos trabalhadores abrangidos pelo RCTFP, de um regime muito próximo do disposto no Código do Trabalho para os trabalhadores do sector privado.
Importa desenvolver os fundamentos desta linha de interpretação sistemática, confrontando-a com os argumentos hermenêuticos apresentados em sentido contrário pelos requerentes.
11. Desde logo, esta outra interpretação do novo regime legal encontra arrimo na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 153/XII, que deu origem ao diploma que contém as normas ora impugnadas. Nos termos dessa exposição:
« [A] alteração do período normal de trabalho de 35 para 40 horas semanais constitui apenas mais uma etapa do caminho que está a ser percorrido no sentido de uma maior convergência entre os trabalhadores do setor público e do setor privado, no caso com evidentes ganhos para a prestação dos serviços públicos, para as populações que os utilizam e para a competitividade da própria economia nacional, aproximando, assim, a média nacional de horas de trabalho da média dos países da OCDE.
[E]sta alteração que agora se preconiza […tem] em vista alcançar uma maior convergência entre os setores público e privado, passando os trabalhadores do primeiro a estar sujeitos ao período normal de trabalho que há muito vem sendo praticado no segundo.»
Mais:
« Esta alteração, importa ainda esclarecer, em nada colide com o núcleo essencial da relação jurídica de emprego na Administração Pública, tal como constitucionalmente protegida. Num processo que o Tribunal Constitucional tem vindo a apelidar de laboralização da função pública, tem sido reconhecida a convergência entre o regime laboral privado e as regras do trabalho público, em termos de flexibilidade da parte do trabalhador e condicionalismos do empregador. Acresce que, se é indiscutível que essa relação é caracterizada pela tendência para a estabilidade, é também verdade, como também vem sendo repetidamente confirmado pelo Tribunal Constitucional, que a mesma pode ser comprimida em benefício de outros direitos ou valores também constitucionalmente protegidos (como é o caso do princípio da justiça, do modelo de boa administração que é inerente ao princípio da prossecução do interesse público e da necessidade de uma eficiente gestão dos recursos humanos), situando-se a alteração do período normal de trabalho em 5 horas semanais claramente fora da esfera de imprevisibilidade que poderia fazer perigar o princípio da proteção da confiança.»
Na verdade, se o objetivo é o da convergência de regimes de duração do trabalho entre o sector privado e a Administração Pública, e sendo o regime do Código do Trabalho iniludivelmente o da fixação de um limite máximo redutível por negociação coletiva, do mesmo modo deve ser entendido o limite agora introduzido pelas normas impugnadas.
Mas, para além disso, e tão decisivamente, a mesma interpretação é consistentemente suportada pela letra e pela integração sistemática dos preceitos em causa. Para tanto, importa atentar em mais três ordens de razões.
12. O ponto de partida da análise da redação dada pela Lei n.º 68/2013 ao artigo 126.º, n.º 1, do RCTFP de que parte o primeiro grupo de requerentes não é exato. De acordo com o respetivo requerimento, o paralelismo que até à citada Lei existia entre o Código do Trabalho, artigo 203.º, e o mencionado Regime assentaria numa redação muito parecida: as epígrafes de ambos os preceitos utilizavam a expressão “limites máximos” e o n.º 1 dos dois artigos continha a menção de que «o período normal de trabalho não pode exceder». Deste modo, segundo os mesmos requerentes, o sentido normativo dos dois preceitos era inequivocamente o de estabelecer a “fixação obrigatória, não apenas da duração do trabalho, mas dos seus limites, mormente do limite máximo”. E é a partir da eliminação daquela menção «o período normal de trabalho não pode exceder» no artigo 126.º, n.º 1, do RCTFP, com a nova redação, e da omissão de uma menção similar no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013 que os requerentes concluem no sentido de as alterações introduzidas pela nova Lei «frustrarem e esvaziarem» a fixação obrigatória dos referidos limites máximos.
Todavia, a conclusão afigura-se demasiado apressada.
Em primeiro lugar, importa ter presente que a disciplina legal da duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas se contém em dois diplomas com um âmbito de aplicação subjetivo diferente: o RCTFP, no que respeita aos trabalhadores contratados, e o Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, relativamente aos trabalhadores nomeados (cfr., de resto, o artigo 1.º, n.º 1, da própria Lei n.º 68/2013, que de algum modo explica a estrutura e a técnica legislativa adotadas pela mesma Lei). Ora, relativamente aos segundos, a técnica legislativa utilizada no Decreto-Lei n.º 259/98 era – e, na sequência das alterações introduzidas pela Lei n.º 68/2013, continua a ser – a de fixar ou estabelecer a duração do trabalho semanal e o período normal de trabalho diário:
«Artigo 7.
(Duração semanal do trabalho)
1 – A duração semanal do trabalho nos serviços abrangidos pelo presente diploma é de trinta e cinco horas.
2 – O disposto no número anterior não prejudica a existência de regimes de duração semanal inferior já estabelecidos, nem os que se venham a estabelecer mediante despacho conjunto do membro do Governo responsável pelo serviço e do membro do Governo que tiver a seu cargo a Administração
Pública
Artigo 8.º
(Limite máximo do período normal de trabalho)
1 – O período normal de trabalho diário tem a duração de sete horas.
2 –…»
A única modificação introduzida pelo artigo 4.º da Lei n.º 68/2013 respeita ao número de horas semanais e diárias: respetivamente, quarenta horas e oito horas, em vez das anteriores trinta e cinco horas e sete horas (cfr. supra o n.º 2).
Todavia, a fixação ou o estabelecimento daqueles períodos não corresponde à imposição dos mesmos como «limites mínimos imperativos». Para o comprovar, basta tomar em consideração a epígrafe do artigo 8.º e, sobretudo, o disposto no n.º 2 do artigo 7.º, que expressamente admite “a existência de regimes de duração semanal inferior já estabelecidos, nem os que se venham a estabelecer mediante despacho conjunto”. Acresce que tanto a citada epígrafe, como este n.º 2 foram expressamente ressalvados pela Lei n.º 68/2013 (cfr. o respetivo artigo 4.º).
Idêntica técnica legislativa foi adotada pela Lei ora considerada em relação à previsão do período normal de trabalho no RCTFP (cfr. o artigo 126.º, n.º 1, nova redação). Também, neste caso, a nova formulação dada ao preceito em causa não implica a imposição de quaisquer «limites mínimos imperativos». Daí compreender-se não apenas a manutenção da epígrafe do citado artigo 126.º - “Limites máximos dos períodos normais de trabalho” -, e, bem assim, da referência no artigo 129.º, n.º 1, do mesmo Regime aos “limites máximos dos períodos normais de trabalho fixados no artigo 126.º”; como, sobretudo, a não revogação do artigo 130.º do RCTFP. É o seguinte o teor deste último:
«Artigo 130.º
Redução dos limites máximos dos períodos normais de trabalho
1 – A redução dos limites máximos dos períodos normais de trabalho pode ser estabelecida por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho.
2 – Da redução dos limites máximos dos períodos normais de trabalho não pode resultar diminuição da remuneração dos trabalhadores.»
É claro que o mesmo resultado normativo – a fixação de um limite máximo dos períodos normais de trabalho diário e semanal suscetível de redução por via da adoção de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho – poderia ser alcançado com recurso a outras técnicas legislativas, como, por exemplo, a remissão para o Código do Trabalho ou a pura e simples manutenção da formulação do artigo 126.º, n.º 1, anterior à Lei n.º 68/2013, com modificação apenas dos limites quantitativos. As técnicas legislativas mobilizáveis pelo legislador são múltiplas e cabem – todas elas – na sua liberdade de conformação. O ponto a salientar nesta sede é apenas o de que a nova redação dada ao artigo 126.º, n.º 1, do RCTFP, em virtude de replicar uma formulação adotada com a mesma finalidade no Decreto-Lei n.º 259/98, só por si, não permite indiciar suficientemente uma vontade do legislador de consagrar um sistema de duração do trabalho assente em limites mínimos imperativos. Aliás, tal vontade é infirmada pela subsistência de outros preceitos do RCTFP, nomeadamente o artigo 129.º, n.º 1, e o artigo 130.º, que depõem precisamente em sentido contrário.
13. A eventual revogação implícita das referências ao limite máximo dos períodos normais de trabalho diário e semanal constantes desses outros preceitos do RCTFP – maxime do citado artigo 130.º – por força da imperatividade estatuída no artigo 10.º da Lei n.º 68/2013 criaria, por outro lado, uma desarmonia entre o regime da duração do trabalho aplicável aos trabalhadores em funções públicas, respetivamente, contratados e nomeados, difícil de explicar.
Com efeito, uma vez que o artigo 4.º da Lei n.º 68/2013 ressalva expressamente o disposto no n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 259/98, é seguro que a imperatividade estatuída no artigo 10.º daquela Lei não afasta a possibilidade de reduzir a duração semanal do trabalho (e, por consequência, também a diária) fixada na lei para os trabalhadores nomeados. Porém, na interpretação sufragada pelo primeiro grupo de requerentes, tal possibilidade inexistiria no caso dos trabalhadores contratados. Esta desarmonia – caso existisse – consubstanciaria uma incongruência interna da própria Lei n.º 68/2013, uma vez que determinaria para aqueles trabalhadores, em princípio, sujeitos a um regime mais acentuadamente juspublicístico, em razão de exercerem a sua atividade num âmbito mais próximo das funções de soberania do Estado – os nomeados (cfr. o artigo 10.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro) –, uma solução mais flexível do que aquela que seria aplicável aos trabalhadores cujo regime funcional é mais marcado pela laboralização do regime da função pública – os trabalhadores contratados. Como os próprios requerentes reconhecem, uma solução rígida de imposição de limites mínimos obrigatórios afasta-se totalmente do regime consagrado no Código do Trabalho para os trabalhadores do sector privado.
14. Por fim, é justamente a partir deste plano da maior flexibilidade própria do regime do RCTFP que se torna mais clara a inconsistência sistemática da interpretação do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, em articulação com o artigo 10.º do mesmo diploma, preconizada pelo primeiro grupo de requerentes.
Para além da circunstância de, no seu teor literal, o mencionado artigo 10.º nem sequer se reportar ao artigo 3.º da Lei n.º 68/2013 – que justamente concretiza no âmbito do RCFTP a alteração do período normal de trabalho consagrada no artigo 2.º da mesma Lei –, a verdade é que o mesmo artigo 10.º não se sobrepõe nem afasta – nem pretende afastar – o artigo 81.º, n.º 2, da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro:
« São ainda fonte normativa [do regime jurídico-funcional, aplicável aos trabalhadores que, enquanto sujeitos de uma relação jurídica de emprego público diferente da comissão de serviço, se encontrem em condições diferentes das referidas no artigo 10.º da Lei ora considerada], nas matérias que, face ao disposto na lei, possam regular, os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho que integrem ou derroguem disposições ou regimes constantes das fontes referidas na alíneas a) a d) do número anterior [- entre elas, além da própria Lei n.º 12-A/2008, justamente o RCTFP -], desde que mais favoráveis aos trabalhadores […].»
Em conformidade, dispõe-se nos artigos 1.º e 4.º, n.º 1, ambos do RCTFP:
«Artigo 1.º
Fontes específicas
O contrato de trabalho em funções públicas, abreviadamente designado por contrato, está sujeito, em especial, aos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, nos termos do n.º 2 do artigo 81.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro.
Artigo 4.º
Princípio do tratamento mais favorável
1 – As normas do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (RCTFP) podem ser afastadas por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador e se daquelas normas não resultar o contrário.
2 – …»
Este artigo 4.º, n.º 1, é a «chave de leitura» para determinar se uma qualquer norma constante do RCTFP é ou não derrogável por um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho mais favorável e é, sobretudo, neste princípio da derrogabilidade da lei em favor do trabalhador – que é um corolário do citado princípio do tratamento mais favorável – que se precipita a maior flexibilidade (e a mais acentuada laboralização) do RCTFP, por confronto com o regime aplicável aos trabalhadores nomeados (cfr. o artigo 80.º, com a epígrafe «Fontes normativas da nomeação», da Lei n.º 12-A/2008). Nos termos do artigo 4.º, n.º 1, em análise, as normas do RCTFP só não podem ser afastadas por instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho mais favoráveis, caso das próprias normas do IRCT resulte que tal não pode suceder.
Ora, na sua letra, o artigo 126.º, n.º 1, desse Regime, com a redação dada pelo artigo 3.º da Lei n.º 68/2013, não impede que o período normal de trabalho aí fixado possa ser reduzido por instrumento de regulamentação coletiva do trabalho; aliás, e como mencionado, o artigo 130.º do RCTFP admite expressamente tal possibilidade. Por outro lado, também não se vislumbra qual o fundamento para o artigo 10.º da citada Lei afastar o disposto no mencionado artigo 4.º, n.º 1, do RCTFP, tanto mais que este regime é, como igualmente já referido, uma «lei geral» (cfr. o artigo 81.º, n.º 2, alínea d), da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro).
O teor literal do artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2013 – que estatui sobre o respetivo objeto –, evidencia que esta Lei visa apenas estabelecer a duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, alterando em conformidade o RCTFP e o Decreto-Lei n.º 259/98; a mesma Lei não pretende alterar nem o sistema de fontes específicas do contrato de trabalho em funções públicas nem os termos em que, no RCTFP, se encontra consagrado o princípio do tratamento mais favorável. Consequentemente, o artigo 4.º, n.º 1, de tal Regime nem sequer foi beliscado pela Lei n.º 68/2013, continuando plenamente em vigor.
Deste modo, se a intenção do legislador da Lei n.º 68/2013 fosse estabelecer no âmbito do regime aplicável aos contratos de trabalho em funções públicas um período normal de trabalho correspondente a um limite mínimo imperativo, revogando implicitamente o disposto no artigo 130.º do RCTFP, seria necessário, à luz do citado artigo 4.º, n.º 1, do mesmo Regime, que do seu artigo 126.º, n.º 1, com a nova redação, resultasse um qualquer impedimento a que o número de horas de trabalho diário e semanal pudesse ser afastado por instrumento de regulamentação coletiva do trabalho mais favorável. Com efeito, a expressão contida nesse artigo 4.º, n.º 1, «se daquelas normas resultar o contrário» refere-se exclusivamente às normas contidas no próprio RCTFP, e não a quaisquer outras. Ora, conforme referido, do teor literal do artigo 126.º, n.º 1, na redação dada pela Lei n.º 68/2013, não resulta qualquer impedimento a que a duração do período normal de trabalho aí referido seja reduzida por instrumento de regulamentação coletiva do trabalho.
A imperatividade do artigo 126.º, n.º 1, do IRCT, com a nova redação, é, assim, aquela que decorre do artigo 4.º, n.º 1, do mesmo Regime. E a Lei n.º 68/2013, porque circunscrita à matéria da duração do trabalho, não pretendeu alterar – nem alterou com a estatuição contida no seu artigo 10.º – a imperatividade própria das normas do RCTFP, conforme estabelecida no respetivo artigo 4.º, n.º 1.
15. Em conclusão, o que está em causa no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, mesmo lido em articulação com o artigo 10.º da mesma Lei, é o aumento da duração do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas para oito horas diárias e quarenta horas semanais, com a consequente adaptação dos horários específicos e a previsão da possibilidade de existência de períodos normais de trabalho superiores. É esta a norma que deve ser confrontada com os parâmetros constitucionais indicados pelos requerentes.
Como referido na exposição de motivos da proposta de lei que esteve na origem da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, a determinação de que o período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas é de oito horas por dia e quarenta horas por semana – concretizada, depois, por outras disposições legais que estabelecem tempos superiores ou diferenciados, horários específicos e períodos de atendimento ao público, horários flexíveis, regimes de bancos de horas, ou até a possibilidade de regulamentação coletiva de alguns desses aspetos referentes ao tempo de trabalho – corresponde a uma nova opção fundamental do legislador, inserindo-se no quadro de uma reforma da Administração Pública e do estatuto dos seus trabalhadores que visa aproximar este do regime do contrato individual de trabalho.
A imperatividade de tal período normal de trabalho estatuída no artigo 10.º da Lei em apreço visa tão só garantir que os novos limites máximos se impõem, quer a leis especiais, quer a instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho, desde que as primeiras e os segundos sejam anteriores à mesma Lei e prevejam uma duração do trabalho mais reduzida. Trata-se de uma solução destinada a garantir a eficácia imediata da alteração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas e que todos estes trabalhadores fiquem colocados numa situação inicial de igualdade, a partir da qual, futuramente, se poderão estabelecer as diferenciações que, em função dos diferentes sectores de atividade e pelos modos previstos nos regimes próprios aplicáveis, sejam consideradas convenientes.
16. É certo que uma outra interpretação da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, fundada predominantemente no elemento literal, poderia conduzir a que se entendesse, tal como fazem os requerentes, que a imperatividade estatuída no respetivo artigo 10.º afastaria também a possibilidade de os limites máximos do período normal de trabalho previstos no artigo 126.º, n.º 1, do RCTFP, com a nova redação, serem derrogados por instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho posteriores ao início de vigência da citada Lei n.º 68/2013. Contudo, não sendo o elemento literal o único a considerar pelo intérprete, e devendo este presumir que o legislador democraticamente legitimado não quis afrontar a Constituição, deve, também por esta razão, dar-se preferência ao sentido anteriormente explicitado (cfr. supra o n.º 15).
B) Quanto à violação da obrigação de fixar um limite máximo do horário de trabalho
17. Entende o primeiro grupo de requerentes que a fixação obrigatória dos limites máximos da duração do trabalho “foi agora frustrada e esvaziada pelas alterações introduzidas [no artigo 126.º, n.º 1, do RCTFP], na medida em que, apesar da manutenção da epígrafe do artigo 126.º do Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas, se faz intencionalmente desaparecer qualquer referência a limites máximos ou a «não poder exceder» no corpo daquele artigo 126.º, bem como no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto”.
Todavia, o parâmetro jurídico-constitucional do limite máximo da jornada de trabalho, de per si considerado, não levanta obstáculo à conformidade constitucional das normas impugnadas.
De facto, tendo em conta a globalidade das normas constantes do artigo 2.º, não se pode dizer que o legislador tenha optado por omitir, pura e simplesmente, a fixação de um número máximo de horas de trabalho, deixando essa decisão ao arbítrio da Administração Pública empregadora. Com efeito, da conjugação do n.º 1 com o n.º 3 desse preceito, só resulta que esse limite máximo não é absoluto, dado que a fixação do período normal de trabalho em oito horas por dia e quarenta por semana não prejudica a previsão, por diploma próprio, de períodos superiores.
Por outro lado, no que se refere especificamente às alterações introduzidas no RCTFP pelo artigo 3.º da Lei n.º 68/2013, as mesmas, na interpretação aqui sufragada (cfr. supra o n.º 15), não alteram o sistema anteriormente vigente, ou seja, um regime flexível de tempo de trabalho (cfr. o artigo 126.º e seguintes do citado Regime). Mas também esse regime está submetido a limites máximos, diários e semanais.
Com efeito, considerando o regime «normal» de duração de trabalho – o regime do trabalho extraordinário (artigos 158.º a 165.º do RCTFP) não foi modificado pela Lei n.º 68/2013 – o limite máximo é o fixado no n.º 1 do artigo 126.º do RCTFP, para os trabalhadores contratados; e o fixado nos artigos 7.º, n.º 1, e 8.º n.º 1, do Decreto-Lei n.º 259/98, quanto aos trabalhadores nomeados. Esses limites só podem ser excedidos pelos mecanismos de flexibilização taxativamente fixados na lei, com especial destaque para a adaptabilidade e para o banco de horas. E, quanto a estes últimos aspetos, o regime coincide inteiramente com o consagrado no Código do Trabalho. E o Tribunal Constitucional já decidiu, nos Acórdãos n.os 338/2010 e 602/2013, que tal não representava uma restrição ilegítima ao direito ao repouso e ao lazer dos trabalhadores.
Assim, ainda que a normação aplicável aos trabalhadores em funções públicas não contenha a indicação de um limite expressamente designado como máximo – ou um único limite máximo –, de forma alguma tem cabimento sustentar que existe na ordem jurídica portuguesa um vazio legal, facultativo de um livre poder decisório da Administração, enquanto empregadora, ofensivo, nessa medida, do artigo 59.º, n.os 1, alínea d), e 2, alínea b), da Constituição. O período normal de trabalho é um período que, com ressalva de lei especial e dos mecanismos legalmente previstos de flexibilização do tempo de trabalho, não pode ser excedido, pelo que a sua duração baliza simultaneamente um limite máximo. A garantia, constitucionalmente exigível, de um marco temporal para o exercício da atividade laboral está, deste modo, presente. Por isso, não corresponde aos dados normativos infraconstitucionais que a ordem jurídica portuguesa, no que respeita aos trabalhadores em funções públicas, seja omissa quanto ao limite máximo, quer do período normal de trabalho, quer dos períodos previstos em regimes especiais, como é o caso do banco de horas e do regime da adaptabilidade.
C) Quanto à violação da proibição do retrocesso social
18. O segundo grupo de requerentes assinala que o aumento do tempo de trabalho introduzido pela legislação impugnada constitui uma violação do princípio de proibição do retrocesso, na medida em que implica um regresso “aos tempos anteriores a 1988, quando os trabalhadores em funções públicas adquiriram um clima de segurança jurídica e de confiança consolidadas com a fixação da duração semanal do trabalho em 35 horas”.
É claramente de rejeitar a alegação, pois a simples alteração in peius das disposições normativas respeitantes ao tempo de trabalho na função pública não pode ser considerada contrária à Constituição, por violação de um princípio da proibição do retrocesso social. Como repetidamente tem sustentado este Tribunal, entre outros, no Acórdão n.º 3/2010:
«A jurisprudência do Tribunal, por seu turno, tem-se caracterizado por perfilhar a visão de que o princípio apenas poderá valer numa aceção restrita, valendo, por conseguinte, apenas quando a alteração redutora do conteúdo do direito social se faça com violação de outros princípios constitucionais. O princípio da proibição do retrocesso social, a admitir-se, sempre carecerá de autonomia normativa em relação não só a outros parâmetros normativos de maior intensidade constitucional mas de menor extensão económico-social, tais como [...] o princípio da igualdade, ou o princípio da proteção da confiança legítima, que resulta da ideia de Estado de Direito, mas também ao próprio núcleo essencial do direito social já realizado e efetivado através de medidas legislativas.»
A não ser assim, a admitir-se a irreversibilidade do nível de concretização de direitos económicos e sociais efetivada pelo legislador ordinário, destruir-se-ia quase totalmente a autonomia da função legislativa e a liberdade de atuação do legislador.
Mas a negação da autonomia normativa da proibição do retrocesso significa, nem mais nem menos, que dela não se retira qualquer parâmetro próprio de controlo da afetação negativa dos direitos sociais (cfr. Reis Novais, Direitos Sociais - Teoria Jurídica dos Direitos Sociais Enquanto Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 249). Para levar a cabo esse controlo, há que considerar os parâmetros extraíveis dos princípios constitucionais de valência geral.
D) Quanto à violação do princípio da proteção da confiança
19. No que respeita ao princípio da proteção da confiança, o Tribunal Constitucional tem sobre ele vindo a desenvolver uma jurisprudência constante e reiterada, tendo mesmo precisado os requisitos que devem verificar-se para que a tutela nele fundamentada seja possível. Escreveu-se, a este propósito, no Acórdão n.º 128/2009 (e com acolhimento nos Acórdãos n.º 188/2009, 3/2010 e 396/2011):
«Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.»
Pode admitir-se que um aumento do período normal de trabalho abrangendo universalmente o conjunto dos trabalhadores em funções públicas não cai facilmente na zona de previsibilidade de comportamento dos detentores do poder decisório. Aliás, a diminuição clara, no passado, da jornada normal de trabalho da função pública, consolidada, como argumentam os requerentes, ao longo dos últimos 25 anos, legitima uma expectativa consistente na manutenção, ao menos, de um período normal de trabalho de 35 horas semanais. Pode também admitir-se que essa expectativa fundou a tomada de opções e a formação de planos de vida assentes na continuidade dessa situação.
De acordo com esta linha de avaliação, o aumento agora introduzido, na medida em que contraria a normalidade anteriormente estabelecida pela atuação dos poderes públicos nesta matéria, frustra expectativas bem fundamentadas. E trata-se de um aumento relevante, passível de gerar ou acentuar dificuldades de manutenção de práticas vivenciais e de satisfação de necessidades dos cidadãos, nomeadamente, a conjugação lograda entre a vida privada e familiar e a vida laboral, ou o exercício de direitos fundamentais como a cultura, a liberdade de aprender e ensinar ou o livre desenvolvimento da personalidade.
Todavia, e em sentido inverso, pode, desde logo argumentar-se que a tutela constitucional da confiança, por sua natureza, não pode ser considerada entrave a qualquer alteração legislativa passível de frustrar expectativas legítimas e fundamentadas dos cidadãos. De facto, só poderá utilizar-se a ideia de proteção da confiança como parâmetro constitucional nas situações em que a sua violação contraria a própria ideia de Estado de Direito, de que aquela constitui um corolário.
Ora, no presente caso, deve ter-se em consideração que a tendência para a laboralização do regime dos trabalhadores da Administração Pública, fortemente acentuada, a partir de 2008, com a adoção, como regime-regra, do contrato de trabalho em funções públicas (disciplinado por um diploma – o RCTFP – próximo do Contrato de Trabalho), permite afirmar que não seria totalmente imprevisível uma alteração como a ora em causa do período normal de trabalho.
20. Já foi referido que um dos objetivos do novo regime da duração do trabalho é a convergência com o regime vigente nesse mesmo domínio no âmbito do Código do Trabalho (artigo 203.º). Como se refere na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 153/XII:
« [E]sta alteração que agora se preconiza [do período normal de trabalho de trinta e cinco para quarenta horas semanais tem] em vista alcançar uma maior convergência entre os setores público e privado, passando os trabalhadores do primeiro a estar sujeitos ao período normal de trabalho que há muito vem sendo praticado no segundo.»
Nessa medida, a Lei n.º 68/2013 é apresentada como “mais uma etapa” do “processo de laboralização da função pública”, no âmbito do qual tem sido reconhecida “a convergência entre o regime laboral privado e as regras do trabalho público, em termos de flexibilidade da parte do trabalhador e condicionalismos do empregador” (cfr. supra o n.º 11).
Sobre a tendência para a laboralização da relação de emprego público, fortemente impulsionada a partir de 2004, retenha-se a síntese constante do Acórdão n.º 474/2013:
« A Lei n.º 23/2004, de 22 de junho, aprovou o regime jurídico do Contrato Individual de Trabalho na Administração Pública, consentindo a utilização generalizada do contrato de trabalho por tempo indeterminado para atividades que não impliquem o exercício de poderes de autoridade ou funções de soberania, podendo a entidade pública empregadora, fora desses domínios, recorrer à modalidade contratual de constituição da relação laboral em alternativa à de nomeação ou ao contrato administrativo de provimento (cfr. Vera Antunes, O Contrato de Trabalho na Administração Pública, 2010, pág. 200). Acolheram-se, assim, na Administração Pública vínculos laborais até aí específicos do contrato de trabalho de natureza privada, sem conferir aos trabalhadores contratados a condição de funcionário ou agente administrativo. Como referiu Ana Fernanda Neves, abriu caminho à substituição da figura arquetípica do funcionário público dada pelo regime de nomeação (cfr. O Contrato de Trabalho na Administração Pública, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, 2006, vol. I, pág. 126) e acentuou o movimento de atração da relação de emprego público pelo regime laboral privado, de acordo com dinâmica de interseção de regimes que há muito se vinha sentindo (cfr. Maria do Rosário Ramalho, Intersecção entre o Regime da Função Pública e o Regime Laboral, Estudos de Direito do Trabalho, vol. I, 2003, págs. 69 e segs.; Cláudia Viana, A Laboralização do Direito da Função Pública, Sciencia Iuridica, Tomo LI, 2002, págs. 81 e segs.; e Ana Fernanda Neves, Os «Desassossegos» de Regime da Função Pública, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 2000, pág. 49 e segs.). Movimento este que encontrou manifestações noutros países europeus com estrutura de emprego público similar (cfr. Paulo Veiga e Moura, A privatização da função pública, 2004, págs. 334 e segs. e Vera Antunes, ob. cit., pág. 59). […]
Em 2008, é publicada a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, que define e regula os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas (retificada pela declaração n.º 22-A/2008, de 24 de abril e alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 34/2010, de 2 de Setembro, 55-A/2010, de 31 de dezembro, 64-B/2011, de 30 de dezembro, 66/2012, de 31 de dezembro, e 66-B/2012, de 31 de dezembro, e pelo Decreto-Lei n.º 47/2013, de 5 de abril).
Esse diploma abandona na sua terminologia as noções de funcionário e de agente administrativo (que não mais são utilizadas e permanecem hoje como definições conceptuais) e afasta a nomeação como regime-regra da constituição da relação de emprego público, colocando nesse lugar o contrato de trabalho. Deu dessa forma novo impulso ao movimento de laboralização da relação de emprego público, mesmo que continuando relação laboral específica, apenas aplicável na Administração Pública (cfr. Alda Martins, A laboralização da função pública e o direito constitucional à segurança no emprego, Julgar, n.º 7, 2009, pág. 169). A constituição do vínculo de nomeação passou a ser reservada aos trabalhadores cuja carreira esteja diretamente adstrita ao exercício de poderes de autoridade ou de soberania, i.e., ao que já se designou de núcleo duro da função pública (cfr. Paulo Veiga e Moura e Cátia Arrimar, Os Novos Regimes de Carreiras e de Remunerações dos Trabalhadores da Função Pública, 2010, pág. 57 e Miguel Lucas Pires, Os Regimes de Vinculação e a Extinção das Relações Jurídicas dos Trabalhadores da Administração Pública, 2013, pág. 57). […]
O quadro normativo dessa alteração de paradigma completa-se meses depois, com a publicação da Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, que aprovou o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, com aproximação ainda mais marcada ao regime do Código do Trabalho, mesmo que convivendo com a qualificação dessa relação de trabalho subordinado como de natureza administrativa (artigo 9.º, n.º 3).»
Ora, uma laborização, também nesta matéria da duração do trabalho, da função pública não defronta, em princípio, obstáculos constitucionais. O objetivo, declarado, de convergência, gradual e tendencial, entre o regime laboral dos trabalhadores do setor privado e do setor público é um propósito admissível no atual quadro jurídico-constitucional, pelo menos no que respeita a boa parte das matérias disciplinadas pelo regime jurídico do emprego público, de que não se exclui a duração do tempo de trabalho. Daí não se poder falar de justificada expectativa de manutenção do statu quo.
21. A este aspeto acresce que, mercê da conexão entre horário de trabalho e trabalho extraordinário (“aquele que é prestado fora do horário de trabalho”, segundo a definição do artigo 158.º, n.º 1, do RCTFP; cfr. também o artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 259/98), o aumento do período normal de trabalho tem normalmente um impacto positivo sobre os custos associados ao trabalho e, por essa via, à redução da despesa pública. Nessa perspetiva, e considerando as sucessivas medidas de contenção de tais custos que têm vindo a ser adotadas ao longo dos últimos anos, desde 2010 a 2013, não causa surpresa que, também por esta via, se procure contribuir para o equilíbrio orçamental e a consequente sustentabilidade do nível de despesa pública corrente.
22. Estas duas ordens de razões excluem que se esteja perante uma situação de confiança digna de tutela, já que as expectativas de continuidade eventualmente existentes não se mostram suficientemente fundadas em razões consistentes, tendo em conta a evolução legislativa e das condições laborais dos trabalhadores da Administração Pública registadas nos últimos anos.
Com efeito, contrariamente ao alegado pelos dois grupos de requerentes, o aumento do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, equiparando-o àquele que já vigorava para os trabalhadores do sector privado, não constitui uma medida “inesperada”; ao invés, mostra-se consequente com o conjunto de reformas legislativas da Administração Pública que têm vindo a ser adotadas ao longo dos últimos anos.
23. Mas, mesmo que assim não se entendesse, haveria que ter em conta que só é inadmissível a frustração da confiança quando ela não seja justificada pela salvaguarda de um interesse público que deva considerar-se prevalecente. Só poderá afirmar-se estarmos perante uma desproteção da confiança constitucionalmente desconforme, caso o Tribunal Constitucional entenda que as razões que fundamentam as normas questionadas não são suficientes para justificar a alteração do comportamento do legislador em relação ao rumo que até aqui podia ser considerado como previsível.
Neste quadro, a determinação da violação do parâmetro jurídico constitucional da proteção da confiança dependerá necessariamente da ponderação valorativa que se faça entre os direitos e valores em conflito. Como se escreveu no Acórdão n.º 304/2001:
« Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a proteção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam “tocadas” relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte.»
Ora, não poderá deixar de assinalar-se que a medida de aumento do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas visa a salvaguarda de interesses públicos relevantes.
Desde logo, como se menciona na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 153/XII (cfr. supra o n.º 11), na medida em que proporciona um alargamento dos horários de funcionamento e atendimento ao público dos serviços da administração, o que não poderá deixar de considerar-se como um efeito positivo, não só a nível individual, para cada utente, como em termos globais, para a sociedade.
Há também que destacar que as normas impugnadas se apresentam como parte de um «pacote de medidas» de contenção de despesa pública que constam da Sétima Revisão do Programa de Ajustamento para Portugal constante do Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica, assinado em 2011 (cfr. Relatório da Sétima Avaliação, disponível somente em versão inglesa, em http://ec.europa.eu/economy_finance/publications/occasional_paper/2013/pdf/ocp153_en.pdf.
Tais medidas visam a diminuição da massa salarial do setor público através de restrições ao emprego e a redução da remuneração do trabalho extraordinário e de compensações. Efetivamente, afirma-se no Relatório citado que “uma redução adicional do emprego público e compensações está previsto através da transformação do esquema de Mobilidade Especial num programa de requalificação, da convergência das regras laborais dos setores público e privado – especialmente através do aumento de 35 para 40 horas do período normal de trabalho do setor público – e de um corte nas prestações acessórias”.
Deste modo, resulta claro que um dos principais propósitos das medidas aprovadas pelas normas questionadas é uma certa flexibilização do regime laboral dos trabalhadores em funções públicas, tendo também em vista a contenção salarial e a redução de custos associados à prestação de trabalho fora do período normal. E, em face da situação de crise económico-financeira, é de atribuir grande peso valorativo a esses objetivos de redução da remuneração do trabalho extraordinário e de contenção salarial, associados ao aumento do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas.
E, atento o exposto, sempre se poderia concluir que, na presente situação, os interesses públicos a salvaguardar, não só estão claramente identificados, como são indiscutivelmente de grande relevo.
Assim, ainda que não se ignore a intensidade do sacrifício causado aos trabalhadores em funções públicas, devido à mutação legislativa, no que respeita à delimitação do período normal de trabalho, a verdade é que, a existirem expectativas legítimas relativamente ao regime anteriormente em vigor, ainda assim não resulta evidente que a tutela das mesmas devesse prevalecer sobre a proteção dos interesses públicos que estão na base da alteração legislativa operada mediante a Lei n.º 68/2013, pelo que, também sob o ponto de vista deste teste, não se mostra procedente a violação do princípio da proteção da confiança.
E) Quanto à violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade
24. A invocação, por parte dos requerentes, de que o aumento do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, de sete para oito horas por dia, e de trinta e cinco para quarenta horas por semana, viola os princípio da proporcionalidade e da igualdade assenta num pressuposto: o de que o regime de duração do trabalho aplicável aos trabalhadores do sector privado, constante do Código do Trabalho, consagra um regime de limites máximos sujeitos a derrogação por via da contratação coletiva; enquanto o regime aprovado pela Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, teria consagrado um regime de limites mínimos imperativos e, portanto, inderrogáveis por via de instrumentos de regulamentação coletiva.
Saliente-se, em primeiro lugar, que nem os requerentes do primeiro grupo nem os do segundo grupo pretendem sindicar os regimes que foram objeto de alteração pela citada Lei, designadamente o Decreto-Lei n.º 259/98 e o RCTFP, em si mesmos, e nas diferenças que estabelecem entre si ou nas diferenças que cada um deles consagra relativamente ao regime do Código do Trabalho; o objeto exclusivo da sua atenção são as alterações introduzidas nesses mesmos regimes gerais pelos artigos 2.º (em articulação com o 10.º), 3.º, 4.º e 11.º da Lei n.º 68/2013.
Ora, como se evidenciou anteriormente, tais alterações não redundaram na consagração pelos regimes gerais do Decreto-Lei n.º 259/98 e do RCTFP de uma solução, em matéria de duração do trabalho, correspondente à noção de limites mínimos imperativos (cfr. supra o n.º 15). Ao invés, o legislador de 2013 manteve inalterada a solução de limites máximos derrogáveis nos termos próprios de cada um desses regimes gerais. Assim, no tocante em especial ao RCTFP, a solução agora prevista nos seus artigos 126.º, n.º 1, e 130.º não é substancialmente diferente daquela que o artigo 203.º, n.os 1 e 4, do Código do Trabalho consagra: os limites máximos do período normal de trabalho – que agora são iguais em ambos os diplomas: oito horas por dia e quarenta horas por semana – podem ser reduzidos por instrumento de regulamentação coletiva do trabalho sem diminuição da remuneração dos trabalhadores.
Na ausência de diferenças de tratamento novas, relativamente aos trabalhadores do sector privado ou aos trabalhadores da Administração Pública entre si, que tenham sido introduzidas pelas alterações da Lei n.º 68/2013 aos regimes gerais da duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, falece o pressuposto em que os requerentes baseiam a arguição da violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
F) Quanto à violação do direito à retribuição
25. Os dois grupos de requerentes alegam, por último, que o aumento da duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas operado pela Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, implica uma violação do direito à retribuição.
E, na verdade, não pode negar-se existir, efetivamente, uma óbvia diminuição do salário/hora com implicações no que respeita à remuneração do trabalho extraordinário, o que, aliás, constitui objetivo declarado do Governo, no âmbito das medidas de redução de despesa pública, como já se evidenciou (cfr. supra o n.º 23). Ou seja, se para os trabalhadores em funções públicas a tempo inteiro a quantia em dinheiro recebida mensalmente não deverá sofrer alterações, a redução do salário/hora terá, porém, consequências reais no que respeita às quantias recebidas como contrapartida do trabalho extraordinário, uma vez que este tem por base de cálculo o valor do salário/hora, que sofrerá uma redução de cerca de 14%, segundo cálculo dos requerentes.
Estes alegam ainda que a diminuição do salário/hora afetará igualmente o salário nominal dos trabalhadores em tempo parcial que mantiverem, por necessidades de serviço, o horário atual.
Todavia, é de duvidar que assim seja. Na verdade, nos termos do artigo 145.º do RCTFP, “do contrato a tempo parcial deve constar a indicação do período normal de trabalho diário e semanal com referência comparativa ao trabalho a tempo completo”. Ou seja, o trabalho a tempo parcial é sempre concebido como uma fração ou percentagem do período normal de trabalho a tempo inteiro, pelo que parece mais razoável concluir que, face às alterações legislativas ora em causa, o que deverá ocorrer é um aumento do período normal de trabalho diário e semanal dos trabalhadores a tempo parcial, em proporção do aumento estabelecido para os trabalhadores em funções públicas a tempo completo. Não deverá haver, por isso, redução do salário nominal dos trabalhadores a tempo parcial, mas sim um incremento das horas de trabalho, à semelhança dos restantes trabalhadores. A diminuição salarial no que respeita ao salário/hora não deverá assim refletir-se nas quantias efetivamente auferidas por aqueles trabalhadores.
26. O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado, repetidamente, sobre a questão do direito à retribuição, em particular no que respeita aos trabalhadores da Administração Pública. A esse propósito, tem, em primeiro lugar, chamado a atenção para o facto de não constar da Constituição qualquer regra que estabeleça a se, de forma direta e autónoma, uma garantia de irredutibilidade dos salários, inscrevendo-se tal regra no direito infraconstitucional (no RCTFP, artigo 89.º, alínea d), e no Código do Trabalho, artigo 129.º, n.º 1, alínea d)). Mais ainda, tem-se insistido na ideia de que a regra da irredutibilidade dos salários não é absoluta, nem na relação laboral comum, em que a diminuição pode estar prevista na lei ou em instrumento de regulação coletiva do trabalho, nem na relação de emprego público, em que se admite que a lei possa prever reduções (artigo 89.º, alínea d) do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas). O que se proíbe, em termos absolutos, é apenas que as entidades empregadoras, públicas ou privadas, diminuam injustificadamente o quantitativo da retribuição, sem adequado suporte normativo.
A este propósito, pode ler-se no Acórdão n.º 396/2011:
« Inexistindo qualquer regra, com valor constitucional, de direta proibição da diminuição das remunerações e não sendo essa garantia inferível do direito fundamental à retribuição, é de concluir que só por parâmetros valorativos decorrentes de princípios constitucionais, em particular os da confiança e da igualdade, pode ser apreciada a conformidade constitucional das soluções normativas em causa.»
E esta orientação foi confirmada no Acórdão n.º 187/2013, no qual se sustentou:
« Não há razões para afastar este entendimento, expresso no acórdão n.º 396/2011, quanto à não atribuição de estatuto jusfundamental ao direito à irredutibilidade de prestação, nem como direito autónomo, materialmente constitucional, nem como uma dimensão primária do direito fundamental à justa retribuição consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º, da Constituição.»
Ora, não parecem descortinar-se razões para se divergir desta linha jurisprudencial, no presente caso. Tanto mais quanto a diminuição salarial em causa, apesar de existente, não se traduz numa redução real dos meios colocados à disposição do trabalhador para satisfazer as necessidades materiais, tanto próprias como da sua família, uma vez que a quantia pecuniária recebida se mantém a mesma.
Não se ignora que o aumento do período normal de trabalho diário poderá originar despesas adicionais para os trabalhadores (relacionadas com transportes, com o cuidado de ascendentes ou descendentes, etc.), mas, em todo o caso, há que ter presente que o grande prejuízo que as normas impugnadas lhes trazem é de tempo: tempo disponível para si mesmos, para as suas famílias e para o exercício de um conjunto de direitos fundamentais consagrados na Constituição (direito ao livre desenvolvimento da personalidade, liberdade de criação e fruição cultural, liberdade religiosa, liberdade de aprender e ensinar, liberdade de associação, entre outros), que se reconduzem a dimensões importantes da vida.
A perda salarial real limita-se, assim, à remuneração do trabalho suplementar. Como a remuneração deste tipo de trabalho tem por base a remuneração horária do período normal de trabalho, é óbvio que as alterações legislativas ora introduzidas, ao comportarem uma redução nominal dos salários, provocarão uma redução das quantias recebidas como contrapartida das horas extraordinárias.
Este facto não pode deixar de ser valorado pelo Tribunal Constitucional, tendo, além do mais, em conta as reduções salariais efetivas que o universo dos trabalhadores em funções públicas tem sofrido nos últimos anos, em virtude da necessidade de consolidação orçamental no âmbito do programa de assistência financeira. Não pode, igualmente, deixar de se tomar em conta a obrigatoriedade de prestação de trabalho extraordinário, à luz do disposto no artigo 26.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 259/98 e do artigo 159.º do RCTFP.
Contudo, e quanto à redução da remuneração pelo trabalho extraordinário, afirmou este Tribunal no Acórdão n.º 187/2013:
« [P]or sua própria natureza, apesar de ser tido como um suplemento remuneratório e de corresponder à contrapartida do trabalho efetuado, o acréscimo pecuniário devido pela prestação de trabalho extraordinário não assume, contrariamente ao que sucede com os subsídios de férias e de Natal, o caráter de habitualidade ou regularidade que tipicamente caracteriza a prestação retributiva, em sentido técnico-jurídico. [...]
Não integrando o pagamento do trabalho extraordinário, pelo menos de forma direta e necessária, o conceito qualitativo de retribuição, é de afastar, desde logo, a invocada garantia constitucional da irredutibilidade do salário como parâmetro constitucional pertinente à aferição da validade da medida legislativa, ora questionada, que opera a redução dos coeficientes para o respetivo cálculo.
Por outro lado, [...] a remuneração proporcionada pelo trabalho suplementar (é) de natureza variável e não prognosticável, porque dependente de decisões gestionárias da esfera exclusiva do empregador.»
Nestes termos, não é decisiva, no sentido da inconstitucionalidade, a diminuição das quantias efetivamente recebidas como remuneração do trabalho extraordinário. Desde logo, não sendo aplicável, nos termos da citada jurisprudência constitucional, a garantia da irredutibilidade do salário, não poderá ser este o fundamento de qualquer julgamento de desconformidade com a Constituição.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 2.º, em articulação com o artigo 10.º, 3.º, 4.º e 11.º, todos da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto.
Lisboa, 21 de novembro de 2013 – Pedro Machete – Maria João Antunes - Maria de Fátima Mata-Mouros (Votei a decisão essencialmente pelo que consta do ponto 16.da fundamentação. Renovo o ponto 4 da declaração aposta ao Ac. nº 187/2013) – José Cunha Barbosa - Maria Lúcia Amaral – Lino Rodrigues Ribeiro – Ana Maria Guerra Martins (com declaração que se junta) – Catarina Sarmento e Castro (vencida, parcialmente, pelas razões constantes da declaração de voto junta ) – Maria José Rangel de Mesquita (Parcialmente vencida pelas razões constantes da declaração de voto anexa) – João Cura Mariano (vencido, parcialmente, pelas razões constantes da declaração de voto junta) – Fernando Vaz Ventura (vencido, parcialmente, pelas razões constantes da declaração de voto que junto) – Carlos Fernandes Cadilha (vencido, parcialmente, pelas razões constantes da declaração de voto em anexo) – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, em parte, pelas razões constantes da declaração em anexo)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a declaração de não inconstitucionalidade da norma dos artigos 2.º, em articulação com o artigo 10.º, 3.º, 4.º e 11.º, todos da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, afastando-me, no entanto, de alguns pontos essenciais da fundamentação do Acórdão.
Note-se, antes de mais que o que está em causa não é o artigo 2.º isoladamente, mas sim a leitura conjugada deste preceito legal com o artigo 10.º.
Desde logo, não subscrevo o iter argumentativo constante dos n.ºs 10 a 16 da fundamentação relativo ao sentido a atribuir ao artigo 2.º conjugado com o artigo 10.º da referida Lei. Não acompanho, de todo, o modo como se procedeu à articulação sistemática das alterações introduzidas pela Lei constante do Acórdão, nem a forma como a teleologia da lei nele foi tratada, pois considero que não têm a mínima correspondência na letra da lei. Ao interpretar determinada norma vertida em preceito legal, o julgador constitucional não pode, tal como resulta das mais elementares regras hermenêuticas, abstrair-se do elemento literal, que se autonomiza da específica vontade dos ocasionais titulares dos órgãos com competência legislativa. Como refere o n.º 2 do artigo 9º do Código Civil, não pode o intérprete considerar um “pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal”.
Ora, sendo a letra da lei o ponto de partida de toda a interpretação jurídica é por ela que vou começar. Em meu entender, o artigo 10.º da lei em apreço apresenta claramente duas partes. A primeira estabelece que o disposto no artigo 2.º tem natureza imperativa, o que significa – sem qualquer margem para dúvidas – que a norma constante do artigo 2.º – o período normal de trabalho dos trabalhadores da função pública é de oito horas por dia e quarenta horas por semana – não pode ser derrogada por nenhuma outra. Em princípio, não se admitiriam períodos normais de trabalho inferiores nem superiores. Porém, como o artigo 2.º, n.º 3, da mesma Lei admite expressamente períodos normais de trabalho superiores previstos em diploma próprio, daqui decorre que a norma do n.º 1 do artigo 2.º só não pode ser derrogada por nenhuma outra de sentido mais favorável ao trabalhador.
Por outro lado, a segunda parte da norma do artigo 10.º estipula que o disposto no artigo 2.º prevalece sobre quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva, o que significa que, em caso de conflito com outras normas (recorde-se: mais favoráveis ao trabalhador), a norma do artigo 2.º prima, tem supremacia, ou seja, aplica-se em detrimento dessas outras normas, sejam elas anteriores ou posteriores à entrada em vigor da presente lei.
Tal entendimento – quanto a normas legais e convenções coletivas posteriores à entrada em vigor do ato legislativo em apreço – sai reforçado pelo recente Acórdão n.º 793/2013, que concluiu (ainda que contrariamente à opinião por mim ali expressa, em declaração de voto) que: «(…) a definição do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, (…) é um aspeto nuclear e estruturante do regime próprio da relação de emprego público, quer em razão da sua importância para os próprios trabalhadores (…), quer como condição relevante para garantir a eficácia, eficiência e qualidade da ação da Administração na prossecução do interesse público (artigo 266.º, n.º 1, da Constituição). Como tal, aquela definição constitui uma «base do regime da função pública», nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição» [cfr. § 16]. Sucede, porém, que este entendimento, no sentido de qualificar a norma extraída do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013 como matéria de “bases” do regime jurídico da função pública, se afigura contraditório com o que agora se sustenta, isto é, com a afirmação de que a norma extraída da conjugação entre os artigos 2.º e 10.º da Lei n.º 68/2013 «não integra uma lei de valor reforçado nos termos do artigo 112.º, n.º 3, da Constituição, [pelo que] o mesmo também não pode impedir leis especiais novas de derrogarem o período normal de trabalho fixado no artigo 2.º» [cfr. § 10].
Com efeito, não só o n.º 2 do artigo 112.º da Constituição determina que os decretos-lei de desenvolvimento de matérias integradas em leis de bases se subordinam a estas, como a doutrina jusconstitucionalista é unânime em qualificar como “leis de valor reforçado” as que versem sobre matéria de “bases” de determinado regime jurídico, por força do artigo 112.º, n.º 3, in fine, da Constituição. Tal significa que o comando injuntivo resultante do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, por ser forçosamente conjugado com o artigo 2.º desse diploma, goza dessa natureza jurídica reforçada e, portanto, sempre impediria – se se aceitasse a sua redação literal – quer a adoção de leis especiais, quer a negociação e celebração de convenções coletivas mais favoráveis aos trabalhadores em funções públicas.
Este é, em meu entender, o único sentido possível a extrair da letra da lei.
Daqui não decorre, evidentemente, que o sentido literal seja o único a ponderar, nem, tão pouco, que aquele seja mesmo determinante – o que, aliás, na atualidade, é totalmente pacífico na Doutrina. As palavras não têm em si mesmas uma qualidade essencial, sendo fundamental o contexto em que se inserem, bem como a finalidade que prosseguem, pelo que se devem levar em linha de conta outros elementos extrínsecos à fixação linguística, a saber, os elementos sistemático, histórico ou teleológico. Note-se, porém, que estes elementos encontram-se, em certo sentido, dependentes do enunciado linguístico. Com efeito, existe um limite à tomada em conta desses outros elementos, o qual é constituído pela sua necessária correspondência verbal.
Posto isto, importa averiguar se, contra um sentido literal unívoco – como se afigura, em meu entender, aquele que acabei de expor relativamente à norma do artigo 2.º conjugado com o artigo 10.º em apreço nos presentes autos – ainda se podem procurar outros pontos de vista interpretativos, designadamente, ainda se pode explorar a via do cânone da interpretação conforme à Constituição.
É certo que a interpretação conforme à Constituição tem sido normalmente utilizada na fiscalização sucessiva concreta da constitucionalidade das normas. Porém, nada impede – e a Doutrina admite-a (cfr. Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade, Lisboa, UCP, 1999, p. 396) – que a mesma ocorra em sede de fiscalização sucessiva abstrata, pelo que é perfeitamente legítimo invocá-la nos presentes autos.
Partindo, assim, do pressuposto de que o sentido que o Acórdão atribuiu à norma não encontra qualquer correspondência na letra da lei, coloca-se a questão de saber se a interpretação conforme à Constituição deve ser delimitada negativamente pela letra da lei ou se se deve aceitar uma interpretação corretiva do sentido literal da norma. Ambas as teses têm adeptos na Doutrina (sobre este debate doutrinário, cfr. Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade…, p. 303 e ss).
Já o Tribunal Constitucional tem sido muito cauteloso – e até, de certo modo, restritivo – no recurso à interpretação conforme à Constituição, tendo sustentado que “não parece curial, nem, sequer, admissível que o Tribunal Constitucional proceda a uma interpretação conforme à Constituição que subverta de forma clara e inequívoca, a vontade presumida do legislador” (cfr. Acórdão n.º 254/92).
Em tese geral, estou de acordo com a doutrina consagrada nesta Jurisprudência. Entendo, contudo, que ela não é aplicável ao caso em apreciação, na medida em que a letra da lei e a vontade do legislador não se mostram coincidentes. Assim, se se atender somente à letra da lei chegar-se-ia, porventura, à declaração de inconstitucionalidade, na medida em que se violaria o direito à contratação coletiva inserto no artigo 56.ºs, n.º 3 e 4, da CRP.
Se, pelo contrário, se tiver em consideração a vontade inequívoca do legislador tal declaração poderá, eventualmente, ser afastada. Aliás, em consonância com o que sustentei no Acórdão n.º 602/2013 relativamente ao artigo 7.º da Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 121.
É certo que o julgador constitucional se deve manter equidistante dos demais poderes constitucionalmente consagrados, na qualidade de guardião da Constituição, mas deve igualmente, cingir-se ao seu papel de “legislador negativo”.
Assim sendo, sempre que possível, o julgador constitucional deve abster-se de interferir, de modo desnecessário e excessivamente oneroso – e mesmo que se afigure como altamente provável, tal como sucede com a norma ora em apreço, a verificação de uma inconstitucionalidade normativa –, desde que encontre outros mecanismos interpretativos que possam contornar os efeitos que acarretam uma declaração de inconstitucionalidade. Ora, neste caso, atenta a vontade inequívoca do legislador em permitir a vigência de leis especiais e de convenções coletivas de trabalho que derroguem, em sentido mais favorável aos trabalhadores em funções públicas, a fixação de um horário máximo de 40 horas semanais e de 8 horas diárias, não faria sentido que o Tribunal Constitucional insistisse numa declaração de inconstitucionalidade. Ainda que da norma em apreço se extraia um sentido prescritivo inconstitucional, o julgador constitucional pode (e, a meu ver, deve) interpretá-la de tal modo que a mesma seja conforme aos comandos e vinculações jurídico-constitucionais.
Com efeito, a vontade expressa, de forma clara e inequívoca, pelo legislador quer na exposição de motivos da proposta de lei n.º 153/XII que deu lugar à lei n.º 68/2013 quer na “Nota Explicativa” apensa aos presentes autos e quer ainda na proposta de lei n.º 184/XII que se encontra pendente para aprovação como lei na Assembleia da República converge no sentido de considerar que não se pretendeu – nem se pretende no futuro – que a norma do artigo 2.º prevaleça sobre futuros instrumentos de regulamentação coletiva.
Com efeito, analisados os trabalhos preparatórios da Lei n.º 68/2013, nada permite concluir que o legislador tenha pretendido afastar para o futuro a existência de normas mais favoráveis ao trabalhador em matéria de período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas. Ou seja, a imperatividade do artigo 10.º não significa que, para futuro, o legislador e os instrumentos de regulamentação coletiva não possam estabelecer períodos de trabalho inferiores ao estipulado no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013.
Da discussão na generalidade da proposta de lei na Assembleia da República pode inferir-se que o proponente da norma pretendeu a equiparação entre o setor público e o setor privado em matéria de período normal de trabalho (cfr. «Diário da Assembleia da República», I Série, n.º 112, de 12 de julho de 2013, p. 5. Ou seja, a vontade presumida do proponente do ato seria aplicar regime idêntico ao do Código do Trabalho, o qual admite redução dos limites máximos de tempo de trabalho por instrumento de regulamentação coletiva (artigo 203.º, n.º 4), como melhor se verá adiante.
Em segundo lugar, a “Nota Explicativa”, proveniente do Ministério das Finanças, apresentada pelo Governo, enquanto órgão proponente da lei em causa, no âmbito destes autos, expressa claramente a ideia que a Lei n.º 68/2013 não teria alterado as normas, constantes de outras leis, que “permitem, por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, a redução daqueles limites máximos (…)” (cfr. § 43), visto que a referida lei não impediria “a redução do novo limite máximo de duração de trabalho, continuando a proporcionar, à semelhança do que sucede no setor privado, a manutenção do espaço anteriormente concedido à autonomia coletiva para negociar períodos de trabalho abaixo daqueles limites (v. g. o referido artigo 130.º do RCTFP)” (§§ 47 e 48). Tudo isto para concluir que “já que a imperatividade do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013 não parametriza o comportamento futuro do legislador nem esta lei assume valor reforçado nos termos do artigo 112.º da CRP» (§ 48).
Por último, acrescente-se – ainda que a título complementar – que a iniciativa do Governo da República, que corresponde à Proposta de Lei n.º 184/XII que pretende instituir um regime geral do trabalho em funções públicas remete a matéria das relações entre a lei e os instrumentos de regulamentação coletiva e entre aquelas fontes e o contrato de trabalho em funções públicas, bem como a matéria do tempo de trabalho e do tempo de não trabalho para o Código do Trabalho (cfr. artigo 4.º, alíneas a), g) e h), respetivamente, da referida Proposta), o que implica que, num futuro que se julga próximo, o legislador pretende adotar a solução do Código de Trabalho, a qual consta do artigo 203.º. O n.º 1 deste preceito estabelece que “o período normal de trabalho não pode exceder oito horas por dia e quarenta horas por semana”, mas admite no n.º 4 que “os limites máximos do período normal de trabalho podem ser reduzidos por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, não podendo daí resultar diminuição da retribuição dos trabalhadores.”
Em suma, o elemento literal é suscetível de ser afastado se se aceitar que o legislador não terá querido efetivamente afastar a possibilidade de períodos de trabalho inferiores a 8 horas diárias e 40 horas semanais dos trabalhadores em funções públicas. Mas isto significa que se afasta a letra da lei e se admite uma interpretação corretiva da mesma.
Aqui chegados, a questão a resolver é a de saber se se deve aceitar esta interpretação corretiva, em nome de alguns princípios caros à ordem jurídica constitucional, como é o caso, por exemplo, do princípio da hierarquia constitucional e da unidade da ordem jurídica, o princípio da segurança jurídica, o princípio do aproveitamento dos atos normativos, o princípio da presunção da constitucionalidade dos atos normativos e o princípio da proporcionalidade (cfr. Carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional, tomo II, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 381 e ss), ou se, pelo contrário, se deve dar prevalência ao princípio do expurgo das normas inconstitucionais da ordem jurídica portuguesa, optando pela declaração de inconstitucionalidade da norma em apreço.
Não obstante a última solução apontada me parecer, em tese geral, mais consentânea com o sistema português de fiscalização da constitucionalidade de normas jurídicas, na medida em que as decisões interpretativas de rejeição, ao contrário das decisões interpretativas de acolhimento, não gozam dos efeitos jurídicos previstos no artigo 282.º da CRP, admito, no entanto, em casos excecionais, como, em meu entender, é o que se está a analisar, aceitar a interpretação conforme com a Constituição mesmo em sentido contrário à letra da lei, se for evidente que o legislador disse o contrário daquilo que teria querido dizer.
Ora, no caso em apreço, já apontei vários argumentos que convergem nesse sentido.
Assim sendo, é com base na interpretação conforme à Constituição que voto no sentido da declaração de não inconstitucionalidade do artigo 2.º em conjugação com o artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto.
Ana Guerra Martins
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Acompanhei a decisão de não inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, que consagra o período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, fixando-o em oito horas por dia e quarenta horas por semana.
Subscrevi, nessa parte, embora com alguns pontos de discordância, o essencial da fundamentação do Acórdão.
Os pontos da fundamentação em que mais me distancio – designadamente no que respeita à valoração do princípio da proteção da confiança – não me conduziriam a considerar violados os parâmetros apreciados, pelo que sempre chegaria a idêntica solução, numa leitura da norma que correspondesse, apenas e só, à fixação de um horário máximo de trabalho de oito horas por dia e quarenta horas por semana.
2. Contudo, a minha leitura das normas em apreciação, para a qual é decisivo o conteúdo e alcance do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, não coincide com a do Acórdão (teria subscrito a que foi, então, proposta no memorando apresentado pelo Senhor Conselheiro Presidente Joaquim de Sousa Ribeiro, que pode ser apreendida na respetiva declaração de voto).
Em tal leitura não ignoro que o proponente da Lei n.º 68/2013 veio, em nota explicativa junta ao processo de apreciação da constitucionalidade, sustentar uma diferente interpretação. Mas considerei-a, desde logo, demasiado afastada do teor literal de um dos preceitos que a suporta. Pelo que, como afirmámos já, o entendimento que fizemos do que hoje, de facto, dispõe a lei, não coincide com a interpretação avançada pelo Acórdão (nessa matéria são, aliás, bem visíveis as variadíssimas e contraditórias leituras que a norma provocou, para tal bastando atentar nas manifestações inscritas nas declarações de voto apostas ao presente Acórdão, até por aqueles que se manifestaram pela inexistência de vício gerador de inconstitucionalidade).
3. Assim, apesar de me ter pronunciado no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º, quando consagra o período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, fixando-o em oito horas por dia e quarenta horas por semana, fiquei vencida ao votar a inconstitucionalidade da norma resultante da interpretação conjugada do mesmo artigo 2.º com o artigo 10.º da Lei n.º 68/2013.
Dela resulta, a meu ver, que, ao mesmo tempo que se impõe uma jornada de trabalho de trabalho de 8 horas diárias e 40 horas semanais (aumento, em si mesmo, não inconstitucional), também se proíbe que lei especial ou instrumento de regulamentação coletiva de trabalho possam prever um período normal de trabalho inferior.
A norma do artigo 2.º, que vem impugnada, fixou a duração normal da jornada de trabalho, sem prejuízo das exceções de períodos normais de trabalho superiores, que possam ser previstas em diploma próprio, autorizadas pelo seu n.º 3. Deste modo, deu cumprimento à imposição constitucional prevista no artigo 59.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, que exige que se estabeleça um limite máximo da jornada de trabalho (imposição de realização imperativa, independentemente de cuidarmos aqui de saber se o é por ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, ou por constar de uma norma constitucional suficientemente precisa, com caráter de regra, pelo que seria direta e imediatamente aplicável). A fixação deste limite é um princípio estruturante da Função Pública para os efeitos da delimitação de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1 alínea t) – veja-se o recente Acórdão n.º 793/2013).
Ora, na norma resultante da interpretação conjugada do disposto no artigo 2.º com o disposto no artigo 10.º, ao ser imposta uma jornada normal de trabalho que não pode sofrer alteração por via de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, está a fixar-se o limite máximo da jornada de trabalho e, simultaneamente, por este valor ser imodificável, a estabelecer-se o seu limite mínimo obrigatório, coincidente com o período normal de trabalho de 8 horas diárias e 40 horas semanais. Ou seja, o artigo 10.º, ao estabelecer a imperatividade e prevalência do regime previsto no artigo 2.º, define o alcance vinculativo deste último.
Ao afastar a possibilidade de fixação de regime mais favorável por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, deve considerar-se que esta solução normativa viola o direito à contratação coletiva, previsto no artigo 56.º, n.º 3, da Constituição.
Na verdade, como a entendemos, a norma do artigo 10.º determina que a previsão do artigo 2.º (que fixa o horário de 8 horas diárias e 40 horas semanais) seja imperativa, sobrepondo-se às convenções coletivas de trabalho que venham a ser celebradas no futuro, e que prevaleça sobre as convenções já celebradas (para além de leis especiais, o que, naturalmente, não está aqui em causa).
Em nosso entender, a lei pode, e deve, estabelecer um limite máximo da jornada de trabalho, e o Tribunal Constitucional – no presente Acórdão – não censura o limite fixado nas 8 horas diárias e 40 horas semanais. Mas já não deveria ser permitido ao legislador vedar a fixação, mediante instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, de horários que, cumprindo o limite superior fixado por aquele padrão normal, pudessem vir a ser convencionados, para o futuro, beneficiando o trabalhador. Do mesmo modo, em meu entender, será constitucionalmente censurável que da norma em apreciação resulte a prevalência do horário normal agora fixado, sobre contratos coletivos de trabalho pretéritos que hajam fixado um horário de trabalho inferior.
Ora, no caso da norma conjugada em apreço, não só o limite horário definido no artigo 2.º prevalece sobre o anteriormente acordado na contratação coletiva, como também veda, para o futuro, que um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho se desvie desse teto imperativamente estipulado na lei, favorecendo o trabalhador.
Cabendo à lei fixar o horário normal de trabalho – ao estabelecer o limite máximo da jornada de trabalho (artigo 59.º da Constituição) –, o legislador não pode retirar, por completo, à disponibilidade da contratação coletiva, a modelação do horário de trabalho, desde que cumprido aquele limite.
A modelação do concreto horário de trabalho – negociado a partir do valor de referência necessariamente fixado por lei – integra o núcleo essencial do direito à contratação coletiva (artigo 56.º, n.º 3, da Constituição). Pelo que não pode deixar de se considerar constitucionalmente desconforme.
Em face da interpretação alcançada da conjugação do artigo 2.º com o artigo 10.º, esta seria, aliás, a única posição coerente com a que anteriormente assumi relativamente às normas constantes do artigo 7.º do Código de Trabalho. Considerei, então, que tais normas, embora não vedando a celebração de novo instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, impunham a cessação ou suspensão, antes do seu termo, da eficácia de instrumentos de regulamentação coletiva em vigor, já que sobrepunham disposições do Código de Trabalho às previsões constantes de instrumentos de regulamentação coletiva celebrados antes da entrada em vigor da Lei n.º 23/2012, de modo a tornar imperativas aquelas disposições, sempre que estes instrumentos fossem mais favoráveis para o trabalhador (para isso fazendo cessar a sua eficácia, ou suspendendo-a).
Por essa razão, considerei que também aquelas normas violavam o direito de contratação coletiva (artigo 56.º, n.º 3, da Constituição), abalando a confiança naqueles instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho (declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 602/2013).
No caso em apreço, a proibição da modelação mais favorável ao trabalhador opera nos dois sentidos: para o futuro (interpretação negada pelo Acórdão), impedindo a consagração, por via de negociação coletiva, de alterações ao período de trabalho normal dos trabalhadores em funções públicas, de sentido mais favorável; para o passado, fazendo cessar os instrumentos de que resultasse um horário laboral inferior ao limite agora fixado.
4. Foi pelas razões sumariamente expostas que, embora não me havendo pronunciado pela inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º em si mesmo considerado, quando prevê a fixação do horário normal de trabalho nas 8 horas diárias e 40 semanais, votei a inconstitucionalidade da norma extraída da conjugação do artigo 2.º com o artigo 10.º, havendo, nessa parte, ficado vencida, desde logo, em virtude do entendimento diverso que deles fez o presente Acórdão.
Catarina Sarmento e Castro
DECLARAÇÃO DE VOTO
A) Divergi da Decisão do presente Acórdão no que respeita à norma do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, pelas razões essenciais que de seguida se explicitam.
O artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, com a epígrafe «Prevalência», determina que «O disposto no artigo 2.º tem natureza imperativa e prevalece sobre quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho».
Acolhe-se, no essencial, o Acórdão e a sua fundamentação quando afirma, em conclusão, quanto ao sentido das normas objeto do pedido de fiscalização, que o que está em causa no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, mesmo lido em articulação com o artigo 10.º da mesma Lei, é o aumento da duração do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas para oito horas diárias e quarenta horas semanais (II, A) 15) e, ainda, que aquela norma, quando confrontada com os parâmetros constitucionais invocados pelos requerentes, não se afigura contrária à Constituição da República Portuguesa (II, B) a F)).
Não obstante entende-se, quanto ao sentido das normas objeto do pedido de fiscalização, que caberia ainda no pedido a apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo 10.º na parte em que, por referência à nova duração do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas prevista no artigo 2.º, determina a prevalência deste sobre os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho anteriores ao início da vigência da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto – ainda que por confronto com um parâmetro constitucional não invocado pelos requerentes.
O resultado daquela norma do artigo 10.º, por referência à nova duração do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas prevista no artigo 2.º, é o de fazer prevalecer o regime ora definido pelo legislador, menos favorável ao trabalhador do que a anterior duração do período normal de trabalho de referência, sobre os regimes adotados por via da contratualização coletiva que se revelem mais favoráveis àquele, fazendo cessar os efeitos de convenções coletivas já firmadas – na medida em que não impede a consagração, por via de nova negociação coletiva, de alterações ao novo período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas em sentido mais favorável a esses trabalhadores.
Da aplicação da norma do artigo 10.º em causa, por referência ao período normal de trabalho de referência previsto no artigo 2.º, resulta que aquela afeta o exercício concreto, já ocorrido, do direito fundamental de contratação coletiva, ao determinar a prevalência do novo período normal de trabalho de referência sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho já celebrados e, assim, determinando uma conformação externa e a posteriori do conteúdo das convenções coletivas afetadas.
Tal ingerência agora operada no conteúdo do direito de contratação coletiva afigura-se excessiva à luz do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, já que não se consideram prevalecentes os objetivos a prosseguir, indicados na Proposta de Lei n.º 153/XII que deu origem ao diploma sindicado – a aplicação de um mesmo período normal de trabalho a todos os trabalhadores que exercem funções públicas e a pretendida maior convergência entre os trabalhadores do setor público e do setor privado, com ganhos para a prestação dos serviços públicos e para as populações que os utilizam (por via do alargamento do número de horas de atendimento semanal dos serviços públicos) e para a competitividade da economia nacional – quando confrontados com o valor constitucionalmente protegido da negociação coletiva já vertida em concretas convenções coletivas de trabalho vigentes.
O resultado da prevalência é a afetação do regime (ou regimes) resultante de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, livremente celebrado pelas estruturas associativas que subscreveram os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho. Para mais tratando-se de domínio do contrato de trabalho em funções públicas incluído na reserva de contratação coletiva, as razões que terão determinado a opção do legislador não justificarão a pretendida e efetiva ablação do exercício, em concreto, do direito fundamental de contratação coletiva.
Acresce que a ingerência em causa também se afigura desnecessária na medida em que se dirija a instrumentos de contratação coletiva necessariamente sujeitos a um termo (cfr. artigo 363.º e seguintes do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas) que determinará num futuro próximo, se antes não for acordado pelas partes, a renegociação das cláusulas contratuais agora postas em crise, fazendo participar as estruturas representativas dos trabalhadores, no exercício do direito de contratação coletiva (artigo 56.º, n.ºs 3 e 4, da CRP) e os representantes das entidades empregadoras públicas.
Atendendo ao exposto, a nossa pronúncia foi no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na parte em que determina a prevalência do disposto no artigo 2.º – em matéria de duração do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas – sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalhos anteriores ao início de vigência da mesma Lei, por se entender que se verifica uma restrição desproporcionada do direito consagrado no artigo 56.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
B) Divergi, parcialmente, da fundamentação do presente acórdão no que respeita à apreciação da violação do princípio da proteção da confiança, pelas razões essenciais que de seguida se explicitam.
Não se acolhe a fundamentação do Acórdão na parte em que admite, por duas ordens de razões – a tendência para a laboralização da relação de emprego público (e assim também em matéria de duração do trabalho) e, mercê da conexão entre horário de trabalho e trabalho extraordinário, o impacto do aumento do período normal de trabalho sobre os custos associados ao trabalho e, por essa, via, sobre a redução da despesa pública –, que não se pode falar de justificada expectativa de manutenção do status quo e, assim, de uma situação de confiança digna de tutela.
Entende-se que, não obstante ambas as ordens de razões poderem corresponder a propósitos do legislador no quadro da sua margem de conformação legislativa, ainda assim é de admitir que possam existir expectativas legítimas, justificadas em boas razões e que os privados tenham feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual – não só por força da evolução passada da jornada normal de trabalho da função pública, no sentido da sua diminuição, mas também por força da necessária organização da sua vida privada e familiar em função do regime vigente até à entrada em vigor da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto – e que tais expectativas legítimas se afiguram merecedoras de tutela.
O incremento do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas – sem prejuízo da fixação de períodos de trabalho inferiores, designadamente por novo instrumento de regulamentação coletiva de trabalho – afigura-se gravosa pela intensidade do sacrifício que implica em virtude quer da redução do período de descanso e de lazer, quer da necessidade de reorganização da vida privada e familiar em função do novo período normal de trabalho de referência – a qual pode implicar também, entre outros aspetos organizativos, custos acrescidos para o trabalhador por força dos seus compromissos familiares e relacionados com a educação do seu agregado familiar e a assistência ao mesmo, os quais, num contexto de redução, ainda que temporário, do rendimento disponível auferido pelos trabalhadores em funções públicas, podem, sobretudo para os que auferem rendimentos mais baixos, assumir um peso significativo no seu orçamento familiar.
Isto sem prejuízo de se reconhecer que possam existir razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento estadual e, assim, a alteração legislativa sindicada – a redução de custos associados ao trabalho extraordinário e, por essa via, a redução, de modo sustentado, da despesa pública. Admite-se, pois, que o incremento do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas pode constituir uma medida necessária e adequada ao fim de interesse público a prosseguir pelo legislador, no âmbito da sua margem de conformação legislativa. E, na medida em que deixa ao trabalhador um período diário que lhe permite ainda o gozo de outros direitos fundamentais, como o direito ao repouso e aos lazeres – e, apesar de com um esforço acrescido, o direito à conciliação da atividade profissional com a vida familiar – não se afigura desproporcionada.
Maria José Rangel de Mesquita
DECLARAÇÃO DE VOTO
O presente acórdão optou por efetuar uma interpretação dos artigos 2.º e 10.º, da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, no sentido de que a consagração de novos limites máximos de referência do tempo de trabalho diário e semanal dos trabalhadores em funções públicas se impunham quer a leis especiais, quer a instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho pré-existentes, derrogando quaisquer disposições nessa matéria, mas não impedia a celebração de futuros instrumentos de regulamentação coletiva que acordassem na prestação de trabalho por tempos inferiores aos novos limites máximos.
Se esta interpretação corretiva da letra da lei, salva a constitucionalidade da parte do artigo 10.º, da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, onde se prescreve que o disposto no artigo 2.º, tem natureza imperativa, não afasta o problema da constitucionalidade da parte do mesmo preceito que confere prevalência ao novo período normal de trabalho fixado no artigo 2.º, da mesma Lei, sobre os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados em data anterior à entrada em vigor do diploma sob apreciação.
Incluindo-se esta dimensão normativa no objeto do pedido formulado pelos deputados do Partido Socialista e não estando este Tribunal limitado na sua apreciação pelos parâmetros constitucionais invocados pelos Requerentes, não podia o Tribunal Constitucional omitir a confrontação daquele segmento com o direito à contratação coletiva constante do artigo 56.º, n.º 3 e 4, da Constituição.
Ora, recorrendo ao raciocínio efetuado aquando da fiscalização do disposto no artigo 7.º da Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, que recentemente introduziu alterações ao Código de Trabalho (Acórdão n.º 602/13), constata-se que as normas relativas à duração do trabalho diário e semanal não integram um regime caracterizado pela sua injuntividade, com exceção da definição do seu limite máximo; bem pelo contrário, tais matérias, pela sua conexão imediata com os direitos dos trabalhadores ao repouso, à conciliação da atividade profissional com a vida familiar e à proteção da família consagrados no artigo 59.º, n.º 1, da Constituição, são naturalmente vocacionadas para serem objeto de negociação coletiva, podendo ser definidas em termos mais favoráveis ao trabalhador, em instrumento de regulamentação coletiva.
O disposto no artigo 10.º, da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na parte em que confere prevalência ao novo período normal de trabalho fixado no artigo 2.º, da mesma Lei, sobre os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados em data anterior à entrada em vigor do diploma sob apreciação, traduz-se, por conseguinte, numa intromissão ilegítima do legislador num campo que ele próprio reconhece estar aberto à livre negociação dos trabalhadores e entidade patronal, neste caso o próprio Estado, uma vez que desconsidera o resultado dessas negociações.
Extinguir os efeitos vinculativos de uma convenção coletiva, produzidos “nos termos da lei” em vigor no momento da celebração, por lei posterior, em matéria que se mantém na disponibilidade dos contratantes, é um atentado à garantia institucional que o reconhecimento constitucional do direito à contratação coletiva subentende.
Por isso, mesmo seguindo a interpretação corretiva adotada por este acórdão do disposto no artigo 10.º, da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, a norma resultante dessa leitura deveria ter sido declarada inconstitucional, por violação do artigo 56.º, n.º 3 e 4, da Constituição.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
Importa, desde logo, deixar claro que a minha divergência não reside na conformidade constitucional das normas constantes do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na medida em que estabelecem o aumento da duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas para oito horas diárias e quarenta horas semanais. O problema reside na articulação desse preceito com o disposto no artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, mormente com a imperatividade que estatui para tal período normal de trabalho.
Com efeito, não vejo como possível, face ao peso e relevo fulcral que a imperatividade assume na relação entre fontes normativas juslaborais, que a hermenêutica acolhida na posição que encontrou vencimento possa subsistir, sem contrariar a letra do preceituado no artigo 10.º. Sobretudo quando se confronta essa formulação - que se presume cuidada - com a que se encontra no artigo 7.º da Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, que introduziu alterações ao Código do Trabalho, e onde se encontra, de forma expressa, a aplicabilidade do regime então fixada aos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados antes da sua entrada em vigor, deixando margem para a contratação coletiva futura consagrar regras mais favoráveis. E, porque assim foi, cabe notar, entendi que tal normação não afetava o núcleo essencial da autonomia coletiva, em termos de conduzir à inconstitucionalidade de tais normas, face aos artigos 56.º, n.º 3 e 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição, conforme declaração aposta no Acórdão n.º 602/2013.
Ora, a normação em apreço, na conjugação que cabe estabelecer entre o artigo 2.º e o artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, não se limita a estabelecer a imediata aplicabilidade e a automática prevalência do novo regime legal. Em virtude da imperatividade com que foi editado, o regime projeta igualmente para o futuro a inalterabilidade para menos da jornada de trabalho diária e semanal por via de instrumentos de regulação coletiva, sem que se perfilem interesse constitucionalmente relevantes para remover doravante da contratação coletiva, no âmbito do Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas, tal elemento fulcral, peça nuclear para a conformação dos períodos de repouso e lazer do trabalhador, incluindo naturalmente o trabalhador em funções públicas, e, bem assim, das condições para a conciliação da atividade profissional com a vida familiar. A essencialidade desse domínio de regulação decorre claramente da inclusão do limite máximo da jornada de trabalho na alínea d), do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.
Assim, e em linha com o entendimento que defendi no âmbito do Acórdão n.º 602/2013, pronunciei-me pela violação dos artigos 56.º, n.º 3 e 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição, na parte em que a normação decorrente da conjugação entre os artigos 2.º e 10.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, impede – veda – o estabelecimento por instrumentos de regulação coletiva para o futuro de período normal de trabalho mais favorável, pela afetação do núcleo essencial do direito de contratação coletiva que comporta.
Fernando Vaz Ventura
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à decisão de não declaração de inconstitucionalidade da norma do artigo 2º em conjugação com a do artigo 10º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, quando interpretada no sentido de que o disposto nesse preceito tem natureza imperativa e prevalecente sobre quaisquer outras disposições legais ou convencionais.
A Lei n.º 68/2013 pretendeu estabelecer a duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, alargando-o para oito horas por dia e quarenta horas por semana, e alterando em conformidade o Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas (RCTFP), aplicável aos trabalhadores contratados, e o Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, que define as regras e os princípios gerais em matéria de duração de trabalho para os trabalhadores com vínculo de nomeação.
A técnica legislativa adotada foi a de introduzir um princípio regra, que consta do artigo 2º, e não prejudica a existência de horários específicos e de períodos normais de trabalho superiores (n.ºs 2 e 3), e adaptar ao período normal de trabalho de referência, por via dos subsequentes artigos 3º e 4º, as disposições do RCTFP e do Decreto-Lei n.º 259/98 que se referissem especificamente ao tempo de trabalho. A necessidade de operar expressamente essas alterações, como sucede relativamente aos artigos 123º, 126º, 127º, 127º-A, 127º-C, 127º-D, 131º e 155º do RCTFP e aos artigos 3º, 7º, 8º, 16º e 17º do Decreto-Lei n.º 259/98, deve-se ao facto de estarem aí em causa disposições que continham uma menção específica a um período de referência (período de atendimento, adaptabilidade, banco de horas, duração média do trabalho, trabalho noturno), que carecia de ser adaptado em função do novo regime regra fixado pelo artigo 2º para o período normal de trabalho.
A norma do artigo 10º da Lei n.º 68/2013 estabelece, por seu turno, que o disposto nesse artigo 2º «tem natureza imperativa e prevalece sobre quaisquer leis especiais e instrumentos e regulamentação coletiva de trabalho». Essa norma tem dois segmentos prescritivos: por um lado, qualifica a disposição que fixa o período normal de trabalho como imperativa, impedindo – face ao significado jurídico corrente que esta expressão possui no direito laboral – que futuros instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho possam convencionar horários de trabalho inferiores ao estabelecido por essa disposição; por outro lado, confere prevalência a esse regime-regra em relação a quaisquer outras disposições legais ou convencionais, significando a derrogação tácita de preceitos, ainda que incluídos no RCTFP ou no Decreto-Lei n.º 259/98, que possam instituir um regime jurídico divergente.
Nesse sentido, a Lei n.º 68/2013 deve ser entendida como instituindo o regime geral em matéria de período normal de trabalho, relativamente ao qual quaisquer outros diplomas legais – ainda que possam caracterizar-se tecnicamente como leis gerais – são tidos, para o efeito previsto no artigo 10º, como constituindo regimes especiais que cedem perante o disposto naquele artigo 2º.
Deve assim ter-se como tacitamente revogada a disposição do artigo 130º do RCTFP, que permite a redução dos limites máximos dos períodos normais de trabalho, bem como a do artigo 7º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 259/98, que admite a possibilidade de serem estabelecidos regimes de duração semanal inferiores através de despacho dos membros do Governo responsável pelo serviço e que tiver a seu cargo a Administração Pública.
Neste contexto, não tem qualquer relevo hermenêutico no plano de uma interpretação sistemática da lei, que o legislador tenha alterado disposições do RCTFP ou do Decreto-Lei n.º 259/98 que se referiam especificamente ao período normal de trabalho e simultaneamente se tenha abstido de modificar outros preceitos desses diplomas, que possam conter um regime divergente em relação ao regime geral definido no artigo 2º. Essa é uma mera consequência da técnica legislativa utilizada. O legislador optou por definir um princípio geral em matéria de horário normal de trabalho, fazendo-o prevalecer sobre quaisquer disposições em contrário, e modificou a redação de preceitos contidos em diplomas especiais apenas na medida do estritamente necessário à conformação do estabelecido nesses preceitos com o regime regra. Não existe, por outro lado, qualquer incoerência no sistema visto que devem ter-se como tacitamente derrogadas quaisquer disposições que contrariem o regime geral, sendo justamente essa a função da regra de prevalência que decorre da segunda parte do artigo 10º da Lei n.º 68/2013.
Por outro lado, o sentido interpretativo a atribuir a este preceito, nos termos agora expostos, além de ser aquele que mais se aproxima da letra da lei, é o único que se mostra consentâneo com a teleologia do diploma. Como resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 153/XII, que deu origem à Lei n.º 68/2013, a alteração do período normal de trabalho de 35 para 40 horas semanais visa obter uma maior convergência entre os trabalhadores do setor público e do setor privado, com vantagens para a prestação dos serviços públicos para as populações que os utilizam e para a competitividade da própria economia nacional, aproximando, assim, a média nacional de horas de trabalho da média dos países da OCDE, além de se justificar por razões de contenção orçamental. Sendo estes os objetivos do legislador, seria inteiramente incongruente que o princípio geral em matéria de período normal de trabalho, que se pretendeu instituir como padrão uniformizador, em ordem à dita convergência com o setor privado, pudesse ser afinal afastado mediante a possibilidade de fixação de horários inferiores nos termos gerais do disposto no artigo 130º do RCTFP e do artigo 7º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 259/98 e que o efeito prático da pretendida uniformização não fosse mais de que eliminar eventuais disposições avulsas que contivessem um regime divergente.
Por outro lado, havendo de entender-se a norma do artigo 2º, interpretada conjugadamente com a do artigo 10º, como possuindo um caráter de imperatividade, ela tem necessariamente o sentido de impedir para futuro a celebração de convenções coletivas de trabalho que se destinem a fixar horários de trabalho com limites inferiores ao previsto no regime geral.
E, nessa perspetiva, a norma afronta o direito à contratação coletiva reconhecido pelo artigo 56º, n.º 3, da Constituição.
Esta disposição, ao garantir às associações sindicais o direito de contratação coletiva «nos termos da lei», estabelece uma reserva legal de conformação do direito, impondo ao legislador a delimitação negativa do conteúdo das convenções coletivas de modo a assegurar um mínimo de eficácia constitucionalmente relevante e garantir um conteúdo útil próprio. Gozando de liberdade conformativa, ao legislador está vedado afetar ou modificar o conteúdo essencial do direito.
Embora a Constituição não faça alusão expressa às matérias que poderão ser objeto de contratação coletiva, não deixa de fornecer contributos relevantes para a delimitação do seu âmbito na medida em que comete às associações sindicais a defesa e promoção «dos direitos e interesses dos trabalhadores» (artigo 56º, n.º 1) e enuncia um conjunto de direitos dos trabalhadores e de imposições sobre as condições de trabalho (artigo 59º, n.º 1). Estas normas e princípios constitucionais, que incluem o direito ao limite máximo da jornada de trabalho e ao descanso semanal, não podem deixar de ser tidas como referência para a delimitação do núcleo duro típico das matérias que constituirão o objeto próprio das convenções coletivas (VIEIRA DE ANDRADE/FERNANDA MAÇÃS, Contratação Coletiva e Benefícios Complementares de Segurança Social, Scientia Ivridica, Maio-Agosto de 2001, Tomo L, n.º 290, pág. 34)
Ao excluir da contratação coletiva a matéria respeitante à fixação do horário de trabalho, ao fazer caducar as convenções coletivas vigentes e impedir que novos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho possam estabelecer condições mais favoráveis (por a elas se opor a norma imperativa do artigo 2º da Lei n.º 63/2013), o legislador efetua uma restrição ao conteúdo essencial do direito fundamental que lhe é vedada pelo artigo 18º, n.º 3, in fine da Constituição. E que, para além disso, não cumpre as exigências atinentes ao princípio da proporcionalidade a que se refere o n.º 2 desse preceito. De facto, poderia entender-se que a medida é idónea à satisfação de valores constitucionalmente relevantes tal como seja o incremento da produtividade, a diminuição do custo do trabalho e a melhoria da prestação de serviços aos cidadãos; mas de nenhum modo é um meio necessário ou indispensável para a satisfação desses interesses e que se situe numa justa medida em relação aos fins a realizar, visto que a fixação de um horário de trabalho mais favorável do que aquele que consta do regime geral, por via da contratação coletiva, só poderia ser obtida por acordo das partes e com base na realização de interesses que ao Estado, enquanto entidade empregadora, sempre lhe caberia prosseguir e defender.
Votei por isso a inconstitucionalidade da norma do artigo 2º em conjugação com a do artigo 10º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na parte em que impede a celebração futura de convenções coletivas de trabalho de sentido mais favorável, por violação do direito à contratação coletiva.
Carlos Fernandes Cadilha
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Começo por deixar bem claro que as razões da posição dissidente que assumi nada têm a ver com o disposto no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, em si mesmo considerado. Considero, na verdade, que a fixação do período normal dos trabalhadores em funções públicas em oito horas diárias e quarenta semanais, com possibilidade de previsão de períodos normais de trabalho superiores, não seria constitucionalmente desconforme, se não sofresse a incidência do disposto no artigo 10.º da mesma lei.
Simplesmente, a conjugação entre os dois preceitos é inevitável. Desde logo por força do próprio conteúdo deste artigo, que expressamente se destina – e é essa a sua única função – a fixar o sentido vinculativo do artigo 2.º Mas a consideração isolada das normas do artigo 2.º também não é possível por obediência ao princípio do pedido, já que o primeiro grupo de requerentes solicita a apreciação e declaração de inconstitucionalidade das “normas constantes do artigo 2.º na interpretação conjugada com a norma constante do artigo 10.º”
Do teor do artigo 10.º resulta que o artigo 2.º vale com a força vinculativa que aquele artigo lhe inoculou. Sendo assim, é verdadeiramente crucial estabelecer o significado prescritivo do enunciado no artigo 10.º, para se medir o alcance da mutação legislativa operada pela Lei n.º 68/2013, ao fixar um mais dilatado período normal de trabalho em funções públicas. E essa tarefa, tratando-se de fiscalização abstrata, cabe ao Tribunal Constitucional, uma vez que, ao contrário da fiscalização concreta, o conteúdo e alcance da norma a fiscalizar não são um dado, resultante da atividade interpretativa do tribunal a quo.
Sob a epígrafe “prevalência”, o artigo 10.º reza assim: «O disposto no artigo 2.º tem natureza imperativa e prevalece sobre quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho».
Numa interpretação objetivista, melhor correspondente ao “horizonte do destinatário”, dir-se-á que o preceito comporta dois segmentos distintos, com uma valência normativa própria, sendo um a atribuição de natureza imperativa ao artigo 2.º e o outro a fixação da sua prevalência sobre quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho. A imperatividade, como não pode deixar de ser, rege para o futuro, pelo que, por esta via, fica proibido o afastamento deste regime, designadamente pelo exercício da autonomia coletiva e individual. A prevalência, em contrapartida, tem como objeto referencial fontes normativas em vigor, significando a sua consagração que o regime de duração de trabalho estabelecido no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013 suplanta, derrogando-os, os períodos inferiores constantes de leis especiais ou de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho anteriormente celebrados e ainda vigentes.
Por esta dupla via se garantiria, em grau máximo, a aplicação efetiva e uniforme do novo regime – sendo certo que “a aplicação de um mesmo período normal de trabalho a todos os trabalhadores que exercem funções públicas” é um objetivo confesso da iniciativa legislativa, constante da exposição de motivos da proposta que conduziu à Lei n.º 68/2013.
Este resultado interpretativo é, não só possível, como o que mais naturalmente decorre da letra do preceito e daquele elemento da ratio legis. No mesmo sentido aponta também a fixação de um período “normal” de trabalho, em vez de um período “máximo” de prestação de trabalho, como seria mais natural se o que estivesse em causa fosse exclusivamente uma garantia para os trabalhadores e não também (ou sobretudo) a imposição de uma maior duração em confronto com a anteriormente vigente – isto sem prejuízo de dever ser entendido, como sustenta fundadamente o Acórdão, que «o período normal de trabalho é um período que, com ressalva de lei especial e dos mecanismos legalmente previstos de flexibilização do tempo de trabalho, não pode ser excedido, pelo que a sua duração baliza simultaneamente um limite máximo».
É este também o resultado interpretativo a que chegam os requerentes, o que os leva a qualificar como “limite mínimo imperativo” o fixado no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2013.
Tal resultado é insistentemente contrariado na “Nota explicativa” apresentada pelo Governo e também rejeitado pelo Acórdão, que, no termo de um longo percurso interpretativo, atribui ao artigo 10.º o seguinte sentido: «A imperatividade de tal período de trabalho estatuída no artigo 10.º da Lei em apreço visa tão só garantir que os novos limites máximos se impõem, quer a leis especiais, quer a instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho, desde que as primeiras e os segundos sejam anteriores à mesma Lei e prevejam uma duração do trabalho mais reduzida».
Retira-se daqui que a proibição e a prevalência estabelecidas no artigo 10.º são unidirecionais, regeriam apenas para o passado, ficando em aberto a possibilidade de redução dos limites horários agora fixados, quer por leis especiais, quer por instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho.
Mas esta interpretação tem claramente contra si a formulação do enunciado normativo. Ela funde num único comando prescritivo os conceitos de “imperatividade” e de “prevalência”. Ora, a esta “reductio ad unum” dos dois segmentos opõe-se a obrigatória presunção de que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artigo 9.º, n.º 3, 2.ª parte, do Código Civil). Os dois conceitos têm denotações não coincidentes, pelo que nem sequer se pode alvitrar que estamos perante uma redundância, um uso (desnecessário) de dois significantes com o mesmo sentido. É forçoso, por conseguinte, concluir que o legislador, ao atribuir “natureza imperativa” ao disposto no artigo 2.º quis exprimir algo de diferente do que diz ao estabelecer, no segundo segmento do artigo 10.º, a prevalência desse regime sobre as leis especiais e os instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho.
Esta conclusão não levaria necessariamente à interpretação de que se quis afastar a conformação futura, por instrumento de regulamentação coletiva, de períodos de trabalho de menor duração se pudéssemos admitir que a “natureza imperativa” corresponde aqui ao regime-regra de semi-imperatividade ou de imperatividade relativa, ou seja, à fixação de um limite horário máximo que se impõe ao empregador, mas não impede a redução, por via convencional, do horário de trabalho. Mas não creio que tal interpretação tenha cabimento. Seria, na verdade, absolutamente anómalo que o legislador autoqualificasse como imperativa uma disposição legal apenas para estabelecer que ela pode ser afastada por instrumento de regulamentação coletiva, isto é, para dizer exatamente o contrário do que o termo, utilizado sem mais, inculca. Não é para reafirmar o regime-regra que o termo é utilizado (raramente, aliás), mas, bem ao invés, para o pôr fora de ação, estabelecendo uma imperatividade rígida e absoluta (cfr., por exemplo, a articulação da epígrafe com o disposto no artigo 250.º do Código de Trabalho, quanto ao regime de faltas).
O modo como, no lugar paralelo tão próximo (no tempo, na matéria e na intenção reguladora) do artigo 7.º da Lei n.º 23/2012 (última revisão do Código do Trabalho), o legislador conformou as relações entre fontes de regulação depõe no mesmo sentido de que, com o artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, quis, contrariamente ao que pretende o Acórdão, algo mais do que colocar os trabalhadores em funções públicas “numa situação inicial de igualdade”, sem prejuízo da possibilidade de estabelecimento, no futuro, de diferenciações. Nos n.ºs 1, 2 e 3 daquela norma da Lei n.º 23/2012 deixou-se, na realidade, bem expresso que a sobreposição da lei importava apenas a nulidade ou redução do estabelecido em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados antes da sua entrada em vigor. Custa a admitir que, para exprimir aproximativamente o mesmo, o legislador, pouco mais de um ano volvido, cominasse perentoriamente a imperatividade e a prevalência do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013 sobre quaisquer instrumentos de regulamentação coletiva, sem estabelecer qualquer distinção temporal entre eles.
Bem sei que o elemento literal não é o único, nem sequer o decisivo, fator de interpretação. E a posição que fez vencimento socorreu-se de elementos sistemáticos de interpretação que, prima facie, podem lançar alguma dúvida sobre a correspondência entre o teor do artigo 10.º e a intenção reguladora que a ele presidiu.
É o caso, sobretudo, da manutenção em vigor do artigo 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 259/98. Na verdade, num mesmo diploma – a Lei n.º 68/2013 – o legislador que, pelo artigo 10.º, estabeleceu a imperatividade e a prevalência do disposto no artigo 2.º, alterando, em consequência, para quarenta horas a duração semanal do trabalho fixada no n.º 1 do artigo 7.º do citado Decreto-Lei, deixou intocado o n.º 2 do mesmo artigo. Daqui retira o Acórdão a conclusão de que «a imperatividade estatuída no artigo 10.º daquela Lei não afasta a possibilidade de reduzir a duração semanal (e, por consequência, também a diária) fixada na lei para os trabalhadores nomeados». E, como o contrário representaria uma incongruência interna da Lei n.º 68/2013, o mesmo deve valer para os trabalhadores contratados.
Mas o Decreto-Lei n.º 259/98 rege apenas para os trabalhadores com vínculo de nomeação, área em que não opera, como fonte normativa autónoma, a contratação coletiva, pelo que o n.º 2 do artigo 7.º passa ao lado da questão da articulação do novo regime de duração do trabalho com o estabelecido naquela fonte. De resto, a atribuição à manutenção desta norma de alcance explicitante do pretendido significado do artigo 10.º provaria de mais, já que o que nela se estabelece é a salvaguarda absoluta, tanto para o futuro como para o passado, de regimes de duração inferiores. Basta atentar na sua formulação: «O disposto no número anterior não prejudica a existência de regimes de duração semanal inferior já estabelecidos, nem os que se venham a estabelecer (…)» (itálico meu).
Também não subscrevo a ideia de que, à luz do artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 59/2008 (RCTFP), seria necessário que do artigo 126.º, n.º 1, deste diploma «resultasse um qualquer impedimento a que o número de horas de trabalho diário e semanal pudesse ser afastado por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho mais favorável». A alteração no artigo 126.º, n.º 1, é introduzida pelo artigo 3.º da Lei n.º 68/2013, destinando-se a colocar aquela norma em consonância com o período de duração do trabalho fixado no artigo 2.º deste diploma. Desta forma, o regime daquele artigo replica o desta norma, com a carga vinculativa que ela incorpora, por força do disposto no artigo 10.º Ao atuar sobre o artigo 2.º, o artigo 10.º atua também sobre a nova redação do artigo 126.º, n.º 1, que mais não é do que a sua reprodução, no âmbito do RCTFP. O novo artigo 126.º, n.º 1, não é dissociável nem se autonomiza do modo como a Lei n.º 68/2013 fixa o período normal do horário de trabalho. Se não fosse assim, aliás, o primeiro segmento do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, com a sua cominação da natureza imperativa daquele período, perderia completamente campo de aplicação, pois não é aplicável aos trabalhadores com vínculo de nomeação, por força do n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 259/98, e também não o seria aos trabalhadores contratados, na interpretação seguida no Acórdão.
Em suma, é minha convicção de que as razões de ordem sistemática e teleológica invocadas não logram contrariar o sentido inequívoco objetivado no texto do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, em consonância com três das quatro razões apontadas, na exposição de motivos da proposta de lei, como objetivos da medida.
Em conformidade com a interpretação do artigo 10.º de que parto, pronunciei-me, pois, pela inconstitucionalidade da norma obtida pela conjugação da norma do artigo 2.º com aquela disposição normativa. Essa norma atenta contra o artigo 56.º, n.º 3, da CRP, na medida em que, dotando de natureza imperativa o horário de trabalho fixado e fazendo-o prevalecer sobre instrumentos de regulamentação coletiva, impede a celebração de contratos coletivos de trabalho com períodos laborais inferiores e acarreta a caducidade de cláusulas convencionais vigentes, com esse conteúdo. Pelo menos quanto a esta segunda vertente, creio que resulta afetado o núcleo essencial do direito à contratação coletiva. Seguro é, em qualquer caso, que estamos perante uma restrição excessiva de tal direito. Na verdade, o Estado, enquanto empregador, dispunha de outros instrumentos menos lesivos para assegurar uma tendencial uniformização de um horário de trabalho em funções públicas mais dilatado. Em relação a instrumentos de regulamentação coletiva em vigor, recorrendo ao exercício das faculdades de denúncia previstas nos artigos 363.º a 366.º do regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas. Em relação a contratos a celebrar, a Administração Pública, enquanto parte, teria o controlo dos termos a convencionar, podendo rejeitar propostas não consonantes com o interesse público.
Daí a justificação de uma declaração de inconstitucionalidade parcial qualitativa.
2. Numa versão mitigada da interpretação seguida no Acórdão, poderá eventualmente sustentar-se que, não sendo essa interpretação a única possível, ela é, mesmo assim, possível, pelos cânones hermenêuticos comuns, pelo que, assegurando (na ótica que fez vencimento) a conformidade com a Constituição, deveria ter preferência.
Mesmo neste quadro de uma benigna interpretatio, a conclusão não se justifica. Há, na verdade, que ter em conta que tal interpretação, a admitir-se, não é, seguramente, a que mais se conforma com o sentido da fórmula normativa, só podendo alcançar-se por uma rebuscada “engenharia interpretativa”, que conduz à correção da letra da lei.
No plano hermenêutico geral, é discutida a admissibilidade de uma interpretação conforme à Constituição corretiva da lei (cfr., sobre o ponto, Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, Lisboa, 1999, 302 e s.). Gomes Canotilho parece excluí-la, ao enunciar o princípio da exclusão da interpretação conforme a constituição mas “contra legem”, que “impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e os sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5.ª ed., Coimbra, 2003, 1210) e ao afastar tal interpretação quando “em contradição com o sentido literal ou sentido objetivo claramente recognoscível da lei (…)” (ob. cit., 1211).
Seja qual for a melhor solução, fora do domínio da fiscalização abstrata de constitucionalidade, neste domínio e em configurações deste tipo, levanta-se uma dificuldade específica quanto à admissibilidade do critério, atinente à falta de eficácia vinculativa das decisões de não inconstitucionalidade. Parece correto sustentar-se que, em processo de fiscalização abstrata, quando uma mesma disposição normativa é passível de várias interpretações, sendo uma delas, com fundamento sólido nas regras de interpretação, contrária à Lei Fundamental, deverá o Tribunal Constitucional optar pela declaração de inconstitucionalidade, tendo em conta, precisamente, a impossibilidade de impor aos órgãos administrativos e judiciais a adoção de uma interpretação conforme à Constituição. Sobretudo quando não há ainda um “direito vivente”, em resultado da efetiva aplicação da interpretação conforme, «a preferência, no âmbito da fiscalização abstrata sucessiva, vai claramente para as decisões interpretativas de acolhimento» (Rui Medeiros, ob. cit., 406). E, para este efeito, não faz as vezes de um direito efetivamente aplicado uma proclamada intenção aplicativa, em certo sentido, ou um juízo de oportunidade que tenha em conta o que consta do artigo 105.º, n.º 3, da Proposta de lei n.º 184/XII: «O período normal de trabalho pode ser reduzido por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, não podendo daí resultar diminuição da retribuição dos trabalhadores». Não dispondo o Tribunal Constitucional português de instrumentos do tipo das declarações provisórias de constitucionalidade, ou das decisões apelativas, é pelo juízo quanto à conformidade constitucional, no presente, da situação normativa objeto de valoração que deve exclusivamente determinar-se o sentido da decisão.
Como o mesmo Autor expende, noutro local (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, III, Coimbra, 2007, p. 854):
«Em qualquer caso, não se pode olvidar que, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a decisão interpretativa de rejeição está totalmente desprovida de eficácia vinculativa geral e, ao permitir a subsistência no ordenamento jurídico de leis ambíguas, configura-se como um instrumento inadequado à garantia de uma proteção efetiva da Constituição. Daí que, atenta a força obrigatória geral das declarações de inconstitucionalidade proferidas em sede de fiscalização abstrata sucessiva, o Tribunal Constitucional deva preferencialmente, quando pretender lançar mão da interpretação conforme à Constituição, proferir uma decisão interpretativa de acolhimento. Numa palavra (…) a opção por uma decisão interpretativa de acolhimento, ao pôr em relevo o sentido inconstitucional da lei, traduz a solução mais consentânea com um sistema que se preocupa, fundamentalmente, com a expurgação das normas inconstitucionais do ordenamento jurídico (...)»
No caso presente, uma interpretação da norma resultante da conjugação do artigo 2.º com o artigo 10.º, tal como a sustentada no pedido, ou seja, no sentido da imperatividade absoluta e da prevalência do regime jurídico do período normal de trabalho em funções públicas fixada no artigo 2.º, não só não pode, de facto, qualificar-se como descabida, como é, no mínimo, aquela que, independentemente da vontade do legislador que esteve na sua origem, encontra mais consistente suporte nos fatores objetivos de interpretação.
É quanto basta, de acordo com a orientação acima enunciada, para que, no presente caso, se afaste a possibilidade de uma interpretação conforme à Constituição.
3. De resto, mesmo que assim não fosse, a própria interpretação perfilhada pelo Acórdão, de que o artigo 10.º só derroga as leis especiais e os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho anteriores à Lei n.º 68/2013, que prevejam uma duração de trabalho mais reduzida, não impedindo o estabelecimento, no futuro, de regimes de duração de trabalho mais favoráveis aos trabalhadores, atentaria, em minha opinião, contra o direito à contratação coletiva.
Como já sustentei em declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 602/2013, a propósito do artigo 7.º da Lei n.º 23/2012, entendo que fere o conteúdo essencial do direito à contratação coletiva a ineficácia, por lei posterior, ex abrupto e sem mais, do produto do anterior exercício da autonomia coletiva, durante o seu período de vigência. Como defendem Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2007, 745, « (…) a lei não pode impor a caducidade retroativa de normas de convenção coletiva de forma a afetar a estabilidade dos contratos afetados com base nessas normas».
Joaquim de Sousa Ribeiro