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Procº nº 592/00 ACÓRDÃO Nº304/01
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: I - RELATÓRIO
1. – E... e mulher M... propuseram, no Tribunal Cível da Comarca do Porto, contra S... e mulher C... uma acção ordinária de reivindicação de propriedade relativa a uma garagem que os réus ocupam, segundo os autores sem título bastante, pelo que pretendem que sejam declarados legítimos donos da garagem, considerando-se a detenção por parte dos réus ilegal e de má fé, condenado-se os mesmos a restituírem-lhes a garagem livre e desocupada.
Por sentença de 5 de Julho de 1998, o Tribunal julgou a acção procedente e provada, julgando que os AA são proprietários da garagem identificada e que os RR não têm título legítimo para ocuparem a garagem, sendo condenados a restituí-la aos AA livre e devoluta.
Os réus, não se conformando com a sentença, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 18 de Maio de
1999, decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Ainda inconformados, os réus interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), resumindo a revista a uma
única questão: a de saber se a alínea e) do nº2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro, se aplica a todos os arrendamentos nela previstos que tenham sido celebrados antes da entrada em vigor do referido diploma.
2. - O STJ, por acórdão de 6 de Julho de 2000, decidiu negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.
Analisando a questão, o STJ começa por afirmar que a norma agora questionada não fazia parte do elenco das excepções elencadas no nº2 do artigo 1083º do Código Civil (CC), o que podia indiciar tratar-se de uma norma inovadora. Porém, analisada a sua eventual natureza interpretativa, o STJ conclui que, a ser a lei nova interpretativa, ela não seria substancialmente retroactiva pelo que não violaria qualquer expectativa legitimamente fundada dos recorrentes.
Mas, o STJ entende que a norma em causa é inovadora, o que, todavia, não obsta à sua aplicação imediata.
Escreve-se no acórdão do STJ:
'Com efeito, na lição do Prof. Pereira Coelho, 'a nova lei que concedeu ao senhorio um tal direito de denúncia dispõe directamente sobre o conteúdo da relação locativa independentemente do contrato em que a mesma relação se originou (artº 12º, nº2, 2ª parte do CCV)'.
«Não se trata de um efeito do contrato, de um efeito das declarações de vontade das partes, mas de um efeito da lei, que, independentemente do que tivesse sido acordado entre as partes ou do silêncio delas a tal propósito alterou o estatuto do senhorio nos arrendamentos de que se trata, conferindo-lhe um amplo direito de denúncia do contrato' - Breves Notas ao Arrendamento Urbano, in RLJ 125, pág.
260 e 264. A tese contrária abriga-se quase sempre na doutrina do Prof. Baptista Machado segundo a qual 'sendo o contrato um acto de previsão e um acto de autonomia negocial, as partes tomam em conta, quando o celebram, a lei que então se acha em vigor e que é em função dessa lei que elas realizam o equilíbrio das suas convenções' – cfr. Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, 1968, pág.
108.
É esta a ideia força de toda a argumentação dos recorrentes, embora não refiram aquele Mestre coimbrão. Contudo, esquecem-se, como todos os que assim pensam, que esta construção foi elaborada para os contratos em geral e no âmbito da aplicação do princípio da autonomia privada, o qual, no entanto, cede terreno no domínio dos arrendamentos vinculísticos, onde a lei restringe a liberdade contratual fixando o estatuto fundamental das pessoas através das normas de carácter público. Aí, é de aplicar a lei nova nos termos do artº 12º, nº2, 2ª parte, visto o legislador ter disposto sobre o conteúdo da relação jurídica, abstraindo dos factos que lhe deram origem.'
3. - Ainda inconformados, os réus interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, para que se aprecie a norma do artigo 5º, nº2, alínea e) do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro [no requerimento diz-se que a norma é do decreto-lei, mas, só pode ter sucedido por lapso, uma vez que o nº2 do artigo 5º do DL 321-B/90, não tem alínea e)], quando interpretada como sendo possível ao senhorio denunciar livremente o contrato de arrendamento de uma garagem no termo do mesmo, ainda que o dito contrato tenha sido celebrado antes da entrada em vigor do RAU.
Segundo os recorrentes, uma tal interpretação normativa viola o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático.
4. – Neste Tribunal, os recorrentes apresentaram alegações, nas quais formularam as seguintes conclusões:
'I O pensamento fundamental de que arranca a eficácia prospectiva da lei (...) é o de, não podendo exigir-se às pessoas o dom de preverem as alterações legislativas futuras, ser justo aplicar aos diferentes actos jurídicos as normas em vigor ao tempo da sua prática, por ser com os efeitos desta que os interessados, ao agirem, podem e devem, razoavelmente, contar.' II
'Sendo o contrato um acto de previsão e um acto de autonomia negocial, as partes tomam em conta, quando o celebram, a lei que então se acha em vigor e que é em função dessa lei que elas realizam o equilíbrio das suas convenções.' III
'De harmonia com a jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional, embora o princípio da não retroactividade da lei não tenha assento na Constituição vigente, salvo quanto á matéria penal, todavia uma lei retroactiva pode ser inconstitucional, não por ser retroactiva, mas por contrariar normas ou princípios constitucionais, como, por ex., o princípio da protecção da confiança
'ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático', especificamente acolhido no artº 2º da Constituição, o que sucederá quando a aplicação retroactiva de um preceito legal se revelar 'ostensivamente irrazoável', quando uma norma retroactiva violar 'de forma intolerável a segurança jurídica e a confiança que os cidadãos e a comunidade hão-de depositar na ordem jurídica que os rege, confiança materialmente justificada no reconhecimento da situação jurídica ou das suas consequências'. IV A violação intolerável da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos tem lugar quando a aplicação da lei nova implicar '(...)nas relações jurídicas anteriormente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos impor-se-á que actue o sub-princípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de Direito Democrático, por forma a que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança que todos têm de respeitar. V O artº 5º, nº2, alínea e), do D.L. 321-B/90, de 15 de Outubro, é uma norma inovadora, sendo o regime nele previsto apenas aplicável aos contratos celebrados após a entrada em vigor do dito Decreto-Lei.'
Também os recorridos alegaram, tendo concluído as suas alegações pela forma seguinte:
'I) - O artº 5º, nº2, al. e) do RAU é aplicável aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor. II) – O princípio da confiança e da Segurança Jurídica, não sai afectado com tal inovação, dado que nenhuma razão de interesse público justificava a aplicação aos casos previstos no artº 5º nº al. e) do RAU, a disciplina proteccionista existente para os arrendamentos chamados vinculísticos. III) – A 'expressão da alínea c) do artigo 2º da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto
(Lei de Autorização), delimitadora das alterações ao regime jurídico do arrendamento urbano em termos de 'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário', comporta a credenciação ao Governo para a eliminação das normas anteriores que visassem a protecção dos arrendatários, mas se revelassem socialmente imprestáveis, fosse por subverterem princípios basilares do ordenamento jurídico, fosse por se tratarem desigualmente, sem fundamento material bastante, os sujeitos da situação locatária'. VI) – A norma em causa, com a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, não enferma, por isso, de vício de inconstitucionalidade'.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTOS
5. – A norma cuja conformidade à Constituição vem questionada pelos recorrentes é a norma da alínea e), do nº2, do artigo 5º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de
15 de Outubro (e não a norma que, no requerimento de interposição do recurso e nas alegações, vem referida - certamente por mero lapso – como sendo do próprio decreto-lei).
O artigo 5º do RAU tem o seguinte teor:
'Artigo 5º
(Normas aplicáveis)
1 – O arrendamento urbano rege-se pelo disposto no presente diploma e, no que não esteja em oposição com este, pelo regime geral da locação civil.
2 – Exceptuam-se:
a)[...];
e) Os arrendamentos de espaços não habitáveis, para afixação de publicidade, armazenamento, parqueamento de viaturas ou outros fins limitados, especificados no contrato, salvo quando realizados em conjunto com arrendamentos de locais aptos para habitação ou para o exercício do comércio; f) [...].'
Esta norma corresponde, com algumas alterações, ao artigo 1083º do Código Civil, que foi revogado pelo artigo 3º, nº1, alínea a), do Decreto-Lei nº 321-A/90, de 15 de Outubro.
O nº1 deste artigo 5º manda reger o arrendamento urbano pelo regime que consta do presente diploma e, ainda, pelo regime geral da locação civil na parte em que não estiver em oposição com o que consta do diploma. O regime geral da locação civil consta do Código Civil – artigos 1022º a 1063º. De acordo com o artigo 6º do RAU, aplica-se 'aos arrendamentos e subarrendamentos referidos nas alíneas a) a e) do nº2 do artigo 5º, bem como o disposto nos artigos 2º a 4º, 19º a 21º, 44º a 46º, 74º a 76º e 83º a 85º, 88º a
89º, do presente diploma, com as devidas adaptações'.
Segundo os recorrentes, a norma da alínea e) do nº2 do artigo 5º interpretada com o sentido do senhorio poder denunciar livremente o contrato de arrendamento de uma garagem no seu termo, mesmo que tal contrato tenha sido celebrado antes do início de vigência do Decreto-Lei nº 321-B/90, de
15 de Outubro, é inconstitucional, por violar o princípio da confiança ínsito no artigo 2º da Constituição.
Vejamos se é assim.
6. – A norma em causa, ao estabelecer que os arrendamentos de espaços não habitáveis, quer para a fixação de publicidade, quer para armazenagem, parqueamento de viaturas ou outros fins limitados, são exceptuados do regime do arrendamento urbano introduz matéria nova relativamente ao teor da anterior disposição do Código Civil (CC).
Com efeito, o já mencionado artigo 1083º do CC também exceptuava do regime aplicável ao arrendamento de prédios urbanos, entre outros, os arrendamentos para outros fins especiais transitórios. Aqui se incluía o caso de arrendamento de uma casa para armazenamento ou outros fins, desde que transitórios e desde que constem especificadamente do respectivo contrato
(alínea b) do nº2 do preceito).
A este tipo de contratos, de finalidades atípicas ou para fins transitórios, já antes do RAU se entendia que a lei lhes recusa 'a tutela própria da legislação vinculística, nomeadamente o princípio da relocação obrigatória imposta ao senhorio pelo arrendatário (...)' – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, 'Código Civil Anotado, V. 2º, 3ª ed., pág. 528.
De qualquer modo, não pode negar-se que o RAU ao fazer incluir no conjunto dos arrendamentos da alínea e) do nº2 do artigo 5º os arrendamentos de espaços não habitáveis para afixação de publicidade, ao lado dos arrendamentos para armazenagem, ou para parqueamento de viaturas ou outros fins limitados especificados no contrato está a regular matéria nova, embora surgida na sequência de dúvidas ocorridas na doutrina e na jurisprudência, que se centraram, em particular, no aspecto da denúncia de arrendamentos de paredes ou telhados para afixação de painéis publicitários (cf., esta questão, os pareceres dos Professores José de Oliveira Ascensão e Antunes Varela, na
'Colectânea de Jurisprudência', Ano XVIII, T. III, págs. 5 a 14 e 16 a 22).
A norma em questão, na sua parte final, estabelece uma ressalva que permite que, a tais arrendamentos, possa aplicar-se o regime do arrendamento urbano: basta que sejam realizados em conjunto com arrendamentos de locais aptos para habitação ou para o exercício do comércio. Fora desta hipótese, é-lhes aplicável o regime geral da locação e o disposto nos preceitos do RAU indicados no artigo 6º, nº1, entendendo-se, em geral, que, não se indicando neste artigo o nº2 do artigo 68º do RAU, o legislador pretendeu afastar a regra da renovação obrigatória do contrato de arrendamento de prédio urbano (para afixação de publicidade, armazenamento ou para garagem), conferindo assim ao senhorio o direito de denúncia.
Quanto à questão do arrendamento de garagens ou de lugares para parqueamento foi também questão amplamente discutida na vigência do artigo 1083º do Código Civil, designadamente, qual o regime contratual que devia aplicar-se a tais contratos – se o de um contrato inominado, atípico ou misto de depósito e de prestação de serviço, se um contrato de arrendamento. A jurisprudência pronunciou-se em regra pela sujeição dos contratos de arrendamento de garagens ao regime do contrato de arrendamento urbano.
O Prof. Dr. Antunes Varela, em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Dezembro de 1981 (in 'Revista de Legislação e de Jurisprudência', Ano 118, nº 3731, pág. 59 e ss) conclui citando Larenz que, no caso de se colocar à disposição de outrem o local destinado à guarda do veículo, sem se assegurar outra obrigação, se está a celebrar um contrato de arrendamento do local, se o contrato for oneroso, e de comodato se for gratuito. Dado que 'o interesse da recolha da viatura em determinado local não reveste, nem de perto nem de longe, a acuidade da habitação da família no prédio que ela ocupa ou da manutenção do estabelecimento comercial no local onde a empresa tem a sua sede ', o regime aplicável aos contratos em apreço 'não goza da protecção específica concedida nos artigos 1107º e seguintes aos arrendamentos para habitação, aos arrendamentos para comércio ou indústria e aos arrendamentos para exercício de profissões liberais. Mas beneficia, em contrapartida, com todas essas modalidades de arrendamento, quer do regime comum da locação, quer da tutela especial concedida a todos os arrendamentos de prédios urbanos ( e de prédios rústicos não sujeitos ao regime do arrendamento rural) nos artigos 1083º a 1106º do Código Civil'.
7. – A solução era, porém, controvertida existindo dúvidas quer na doutrina quer na jurisprudência, designadamente, quanto à proibição da denúncia nos casos de arrendamento de paredes ou telhados para afixação de painéis publicitários e das garagens para parqueamento de viaturas, pois havia quem entendesse que se não justificava a aplicação a tais casos do regime dos arrendamentos vinculísticos.
Com a norma da alínea e) do nº2 do artigo 5º do RAU, o legislador resolveu as dúvidas existentes no sentido de nos arrendamentos de espaços não habitáveis estar excluída a aplicação de parte essencial do regime do arrendamento urbano, designadamente, a imposição do princípio da renovação automática do contrato.
Não interessa agora apreciar se a tal norma deve atribuir-se uma natureza interpretativa ou se a mesma tem natureza inovadora, relativamente ao anterior regime jurídico. Com efeito, a decisão recorrida expressamente qualifica a norma em causa como inovadora, sendo certo que a mesma decisão admite que a norma possa qualificar-se como interpretativa, integrando-se assim na lei interpretanda e, por isso, teria de se aplicar aos arrendamentos anteriores, sem que se estivesse a fazer uma aplicação retroactiva da mesma, pois a lei interpretativa não pode ser considerada substancialmente retroactiva (ver Baptista Machado, 'Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador', Coimbra, 1983, pág. 247).
A decisão do STJ, em recurso, considerou, pois, que a norma do artigo 5º, nº2, alínea e) do RAU é uma norma inovadora, mas seguindo a lição do Prof. Pereira Coelho entendeu que 'a nova lei, que concedeu ao senhorio um tal direito de denúncia dispõe directamente sobre o conteúdo da relação locativa independentemente do contrato em que a mesma relação se originou (artº
12º, nº2, 2ª parte do CCV)'.
Assim, a decisão recorrida aplicou a lei nova ao contrato de arrendamento em questão, embora o mesmo tivesse sido celebrado na vigência do artigo 1083º do Código Civil, ou seja, antes da entrada em vigor do RAU.
E é esta aplicação que os recorrentes consideram inconstitucional por violação do princípio da confiança, que decorre do princípio do Estado de Direito Democrático, constante do artigo 2º da Constituição.
Também quanto a este aspecto da aplicação imediata da lei nova, a jurisprudência dividiu-se: em sentido favorável podem ver-se os acórdãos da Relação de Lisboa, de 30 de Maio de 1995 (Bol. Min. Just., nº 457, pág. 430), da Relação do Porto, de 8 de Maio de 1995, Col. Jur. XX, 3, 201) e da Relação de Coimbra, de 18 de Maio de 1993 (BMJ, 427, 593); em sentido contrário, ver o Acórdão da Relação de Lisboa, de 3 de Dezembro de 1992, BMJ, 422, 415.
Havia ainda quem entendesse que a norma do RAU tinha natureza interpretativa e, em consequência, aplicação retroactiva (neste sentido, Menezes Cordeiro e Castro Fraga, Novo Regime do Arrendamento Urbano, pág. 55).
Vejamos, então, o aspecto da aplicação imediata da lei nova (artigo 5º, nº2, alínea e) do RAU) ao contrato celebrado no âmbito do regime anterior à vigência do RAU.
8. - O princípio da não retroactividade da lei encontra-se consagrado na Constituição, de modo expresso, unicamente para a matéria penal (desde que a lei nova se não mostre de conteúdo mais favorável ao arguido) - cf. nºs 1 e 4 do artigo 29º -, para as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias - cf. nº 3 do artigo 18º, e para o pagamento de impostos
– cf. artigo 103º, nº3, (versão da Lei Constitucional nº 1/97) - podendo, assim, dizer-se que a lei fundamental não consagra como princípio a não retroactividade da lei em geral, ainda que a Constituição não seja insensível a tal questão.
No caso em apreço, em que estava em causa um contrato de arrendamento de garagem, a primeira instância julgou a acção proposta procedente, considerando que os autores podiam denunciar o contrato, por aplicação do artigo 5º, nº2, alínea e) do RAU.
Tanto a segunda instância como o STJ confirmaram o decidido na primeira instância, considerando os recorrentes que a aplicação da norma atrás referida do RAU (com vigência apenas desde Novembro de 1990) a um contrato de arrendamento iniciado vários anos antes da entrada em vigor do RAU, implica uma aplicação retroactiva de tal norma, com violação do princípio da confiança e, por isso, inconstitucional.
É certo que a decisão do STJ, em recurso, entende que não existe, no caso, qualquer aplicação retroactiva do RAU. Com efeito, do que se trata é de mera aplicação da lei nova a situações que se prolongam no tempo, ou seja, de um caso de mera retrospectividade legal.
Estando em causa a possibilidade de livre denúncia do contrato, admitida pela lei nova, esta possibilidade concedida inovatoriamente respeita directamente ao conteúdo da relação locativa independentemente do contrato de arrendamento que originou tal relação, não podendo considerar-se um efeito do contrato ou das declarações de vontade das partes, mas antes, um efeito da própria lei que alterou os estatuto do senhorio conferindo-lhe aquele direito de denúncia (artigo 12º, nº2, 2ª parte do Código Civil).
De qualquer modo, no caso, importa apurar se a aplicação da lei nova a contratos celebrados no âmbito de um quadro legal anterior e diverso viola ou não o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático.
9. - Este Tribunal, na esteira de jurisprudência já perfilhada pela Comissão Constitucional, vem entendendo que o princípio do Estado de direito democrático (proclamado no preâmbulo da Constituição e, após a revisão constitucional de 1982, consagrado no seu artigo 2º) postula «uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas», razão pela qual «a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático terá de ser entendida como não consentida pela lei básica» ( cf. o Acórdão nº303/90, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 17º V., pág.65 e Diário da República, Iª série, de 26 de Dezembro de 1990).
Consequentemente, o princípio do Estado de direito democrático há-de conduzir a que «os cidadãos tenham, fundadamente, a expectativa na manutenção de situações de facto já alcançadas como consequência do direito em vigor».
Todavia, isso não leva a que seja vedada por tal princípio a estatuição jurídica que tenha implicações quanto ao conteúdo de anteriores relações ou situações criadas pela lei antiga, ou quando tal estatuição venha dispor com um verdadeiro sentido retroactivo. Seguir entendimento contrário representaria, ao fim e ao resto, coarctar a «liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade» do legislador, características que são
«típicas», «ainda que limitadas», da função legislativa (cf. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, p.309).
Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, 'consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam «tocadas» relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Em tais casos, a lei viola aquele mínimo de certeza e segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de direito, impondo-se, então, a intervenção do princípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança, que todos têm de respeitar.
10. – No caso em apreço, é manifesto que a lei nova – o artigo 5º, nº2, alínea e) do RAU – consagrou a solução inovadora, relativamente aos arrendamentos de espaços não habitáveis para parqueamento de viaturas, de permitir a livre denúncia dos mesmos.
Porém, tratava-se, no direito anterior, de uma questão controvertida e a lei nova veio eliminar as dúvidas existentes, consagrando uma das soluções possíveis, ainda que não fosse a solução da jurisprudência dominante.
Não pode, por isso, afirmar-se que os autores gozassem de uma expectativa jurídica legitimamente fundada de que o caso, no domínio do regime jurídico vigente antes do RAU, seria decidido favoravelmente. Isto é, embora materialmente fundada a possibilidade de uma tal questão ser resolvida no sentido pretendido pelos recorrentes, ela apresenta-se como relativamente enfraquecida ou como não consistente.
Assim, pode dizer-se que, no caso, a aplicação da lei nova a situações jurídicas já antecedentemente constituídas, não representa uma aplicação retrospectiva que viole de forma inadmissível, intolerável ou arbitrária os direitos ou expectativas fundadas dos cidadãos, não se verificando o desrespeito dos mínimos de certeza e segurança exigíveis.
Não é, em consequência, inconstitucional a aplicação do artigo 5º, nº2, alínea e) do RAU – no caso, a lei nova – a contratos de arrendamento de espaço não habitáveis para fins de parqueamento de viaturas celebrados antes da entrada em vigor do mesmo RAU. III – DECISÃO
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao presente recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 27 de Junho de 2001 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa