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Processo n.º 634/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A. e B., C. e D., a primeira vem reclamar para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da Decisão Sumária n.º 489/2013, de 17 de setembro de 2013, que não conheceu do objeto do recurso interposto pela ora reclamante.
2. O teor da fundamentação da Decisão Sumária n.º 369/2013 é o seguinte:
“ 5. Importa recordar que, nos termos do artigo 72º, nº 2, da LTC, o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º dessa Lei – o interposto pelo ora recorrente - respeita à constitucionalidade de normas aplicadas na decisão recorrida e só pode ser interposto “pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade […] de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida […]”. Quer isto dizer, em síntese, que a admissibilidade do recurso ali previsto depende de se tratar de uma questão de constitucionalidade normativa respeitante a uma norma aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida e de o recorrente ter confrontado o tribunal a quo, antes de ter sido proferida essa decisão, com a questão da inconstitucionalidade da norma – ou, se for o caso, da interpretação normativa – que, nos termos do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade pretende ver apreciada. Ora, nos presentes autos, é manifesto que tal se não verifica, como se demonstrará de seguida.
6. Importa desde logo referir que a questão de inconstitucionalidade aqui submetida se encontra feita, no requerimento de interposição do recurso, de forma praticamente incompreensível. A recorrente invoca a inconstitucionalidade da interpretação de um “preceito” enunciado num ponto acima, e necessita de doze linhas para enunciar a interpretação que é questionada.
O Tribunal tem reiteradamente afirmado que nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Nesses casos, contudo, tem o recorrente o ónus de enunciar, de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e percetível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adotado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”.
Ora, como decorre dos termos em que a recorrente formula a questão de inconstitucionalidade, no supra transcrito requerimento de interposição de recurso, esse ónus não claramente foi cumprido. A recorrente não logra enunciar de forma compreensível a norma e o sentido normativo cuja inconstitucionalidade pretende ver sindicada.
7. Por outro lado, basta ler o requerimento de interposição do recurso para se verificar que a recorrente não coloca uma questão de constitucionalidade normativa ao Tribunal Constitucional. Na verdade, o que claramente ressalta desse requerimento é que a recorrente contesta a própria decisão do Tribunal da Relação de Guimarães, que julgou improcedente o recurso do despacho do Tribunal Judicial de Vila Nova de Cerveira datado de 15/10/2012, que indeferiu pedido de reforma do despacho sobre custas do mesmo tribunal, datado de 05/06/2012.
O Tribunal da Relação de Guimarães aplicou o artigo 670.º, n.º2 do CPC, (com a redação anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 303/2007, de 24 de agosto), por considerar que o despacho do Tribunal Judicial de Vila Nova de Cerveira, datado de 15/10/2012, havia conhecido do pedido de reforma do despacho de 05/06/2012, pelo que, assim sendo, não cabia recurso do mesmo. A recorrente, pelo contrário, considera que o despacho datado de 15/10/2012 não havia conhecido do pedido de reforma, pelo que não seria aplicável ao caso o artigo 670.º, n.º2 do CPC.
A verdadeira pretensão da recorrente é, assim, discutir no presente recurso se o referido despacho de 15/10/2012 conheceu do mérito do pedido de reforma e se, em consequência, o Tribunal da Relação de Guimarães esteve bem ao aplicar a norma constante do artigo 670.º, n.º2 do CPC aos autos. Demonstrativa dessa sua pretensão são as seguintes passagens do requerimento de interposição do recurso, em que a recorrente discorre sobre qual deve ser a interpretação a conferir ao artigo 670.º, n.º2, do CPC: “quando o mesmo estabelece que “do despacho de indeferimento referido no número anterior não cabe recurso”, quer, estreme de dúvidas, referir-se ao despacho de indeferimento que não tenha corrigido o vício, aclarado ou reformado o despacho mas depois de conhecer do seu objeto, o que seria, só então, uma decisão de mérito, na qual teriam sido apreciadas as questões levantadas no referido requerimento do incidente de reforma do despacho e não o simples indeferimento formal por se ter entendido, mal, que o meio de o impugnar seria o recurso e não o requerimento de reforma do mesmo, não tendo, por isso, dele conhecido, quando é certo que aquele nem é admissível, cfr. artigo 31º, nº 6, do RCP, que é o caso do despacho em causa.”
Ora, como assim se vê, o que a recorrente invoca é, não a inconstitucionalidade de uma norma, mas do juízo subsuntivo feito em concreto pelo Tribunal a quo, que considerou aplicável ao caso o artigo 670.º, n.º2 do CPC. Porém, não incumbe ao Tribunal Constitucional substituir-se no juízo subsuntivo realizado pelo tribunal a quo. É jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, estando em causa a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82: para o Tribunal Constitucional cabe recurso das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, “identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
8. Mas, ainda que assim não se entendesse, o facto é que este Tribunal nunca poderia conhecer do recurso. Na verdade, o recorrente não colocou, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, qualquer questão de constitucionalidade normativa de que este pudesse conhecer.
De facto, o que a recorrente alegou também perante o Tribunal da Relação de Guimarães foi imprestável para permitir a essa instância conhecer adequadamente de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, já que apenas referiu que “o disposto no artigo 670º, nº 2, do CPC não se aplica ao caso dos autos” e que “decidir em sentido contrário seria violar o princípio do direito a uma decisão mediante processo equitativo”. Mais uma vez, o que a recorrente suscitou perante o tribunal a quo foi uma suposta “inconstitucionalidade” decorrente da concreta aplicação do artigo 670.º, n.º2 do CPC ao caso concreto, e não a inconstitucionalidade da norma em si, ou de uma interpretação da mesma suscetível de generalização.
Assim, também por exata razão não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC e assim tem sido afirmado por este Tribunal em inúmeras ocasiões.
Tanto basta para que se não possa conhecer do objeto do presente recurso”.
3. A recorrente reclamou para a conferência com os fundamentos seguintes:
“Questão Prévia
Diz-se, a fls. 303 da referida decisão sumária, “….. que a questão de inconstitucionalidade aqui submetida se encontra feita, no requerimento de interposição de recurso, de forma praticamente incompreensível”.
E, a fls. 303 da mesma, que “a recorrente não logra enunciar de forma compreensível a norma e o sentido normativo cuja inconstitucionalidade pretende ver sindicada”.
Ora, estabelecendo o artigo 69º da Lei nº 28/82 de 15 de novembro que “à tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de Processo Civil, em especial as respeitantes ao recurso de apelação”,
Há que ter em atenção o que dispõe o artigo 6º, nº 2, deste Código, onde se preceitua que “o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo”,
E, também, no estabelecido no artigo 7º, nº 1, do mesmo Código, que, impondo o Princípio da Cooperação, dispõe que “na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”.
Outrossim, o artigo 590º, nº 4, daquele Código impõe que “incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”,
Convite que tem caráter vinculado, já que o elemento central da atividade de todos em juízo é a defesa dos direitos e dos interesses dos cidadãos, tendo-se, assim, abandonado a estéril querela dos poderes do juiz face aos advogados.
Por sua vez, o artigo 75º-A, nº 5, da referida Lei nº 28/82 de 15 de novembro, dispõe que “se o requerimento de interposição do recurso não indicar algum dos elementos previstos no presente artigo, o juiz convidará o requerente a prestar essa indicação no prazo de 10 dias”,
Estabelecendo o seu nº 6 que “o disposto nos números anteriores é aplicável pelo relator no Tribunal Constitucional, quando o juiz ou o relator que admitiu o recurso de constitucionalidade não tiver feito o convite referido no n.º 5”.
Está-se, pois, a ver que, à luz de todos os transcritos preceitos, se era assim tão incompreensível a questão de inconstitucionalidade submetida pela recorrente, o que devia ter acontecido era que o Venerando Juiz Conselheiro Relator convidasse, obrigatoriamente, esta a prestar o esclarecimento, o aperfeiçoamento ou o complemento pertinentes com vista à superação daquela pretensa incompreensibilidade.
Tal não aconteceu, porém, tendo sido proferida a referida decisão sumária, na qual se entendeu, mas, com o devido respeito, mal, que o que a recorrente pretendia era “discutir no presente recurso se o referido despacho de 15/10/2012 conheceu do mérito do pedido de reforma e se, em consequência, o Tribunal da Relação de Guimarães esteve bem ao aplicar a norma constante do artigo 670º, nº 2, do CPC aos autos”, como da mesma consta a fls. 305.
Ora, caso entendam V. Exas. que o requerimento de interposição do presente recurso é, na verdade, incompreensível, a recorrente requer e espera que, ao abrigo das disposições acima transcritas, seja convidada a esclarecer, a aperfeiçoar ou a completar o mesmo, no sentido de vir a ser apreciada, muito singelamente, se o artigo 670º, nº 2, do CPC, obviamente anterior, pode ser aplicado quando o despacho de que se recorre constitui um simples indeferimento formal por se entender que o meio de impugnar o despacho proferido sobre um requerimento de reforma de uma anterior decisão era o recurso e não o requerimento de reforma da mesma, não se tendo, por isso, conhecido do mesmo.
(…) é certo, sem qualquer margem de dúvida, que a recorrente impugnou a interpretação dada ao artigo 670º, nº 2, do CPC pelo acórdão da Relação, considerando-a inconstitucional, mais indicando a correta e constitucional interpretação a fazer daquela norma, o que é suscetível de generalização, como é, por demais, evidente, bem ao invés do afirmado pelo Venerando Juiz Conselheiro Relator que, aliás, transcreveu excertos da reclamação para a conferência no dito tribunal da Relação de Guimarães e do requerimento de interposição de recurso, os quais desintegrados do texto em que se inserem, passaram a ter um sentido que não é o verdadeiro.
Na verdade, notificada que foi a recorrente, em 20/05/2013, do acórdão da Relação de Guimarães que decidiu não admitir o interposto recurso de agravo do despacho que indeferiu o seu requerimento de reforma de despacho proferida na 1ª instância e efetuado nos termos dos artigos 666º, nº 3, e 669º, nº 2, al. a), do CPC, anterior, o que fez com pretenso fundamento no artigo 670º, nº 2, 1ª parte, do mesmo Código, suscitou a mesma, no seu requerimento apresentado nos termos do artigo 704º, nº 1, do referido diploma, na redação anterior à da alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007 de 24 agosto, o seguinte:
A - A inconstitucionalidade da interpretação dada àquele preceito, na medida em que se cingiu à letra do mesmo, devendo antes entender-se, numa interpretação lógica e extensiva, de modo a poder alcançar-se a mens lagislatoris e a ratio legis, que, quando o mesmo estabelece que “do despacho de indeferimento referido no número anterior não cabe recurso”, quer, estreme de dúvidas, referir-se ao despacho de indeferimento que não tenha corrigido o vício, aclarado ou reformado o despacho mas depois de conhecer do seu objeto, o que seria, só então, uma decisão de mérito, na qual teriam sido apreciadas as questões levantadas no referido requerimento do incidente de reforma do despacho e não o simples indeferimento formal por se ter entendido, mal, que o meio de o impugnar seria o recurso e não o requerimento de reforma do mesmo, não tendo, por isso, dele conhecido, quando é certo que aquele nem é admissível, nos termos do artigo 31º, nº 6, do RCP, que é o caso do despacho em causa;
B - Outrossim, suscitou a violação do princípio do direito a uma decisão mediante processo equitativo, ou seja, na sua aceção restrita, de processo justo, nos termos do artigo 20º, nº 4, da CRP, e, quando tal não tenha acontecido, a violação do princípio do acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, do que é reflexo o direito de requerer a reforma de uma decisão, ou de da mesma interpor recurso, estabelecido no artigo 669º, nºs 2, als. a) e b), e 3 do CPC, o qual é clara decorrência do princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, consignado no artigo 20º da CRP;
C – Suscitou, ainda, a violação dos princípios consignados nos artigos 202º, nº 2, e 204º da mesma Lei Fundamental;
Suscitação que foi feita de modo processualmente adequado perante o tribunal da Relação, que proferiu a decisão recorrida, em termos de estar obrigado a dela conhecer, não admitindo a mesma recurso ordinário, por a lei o não prever,
Pelo que, mostrando-se inconformada, veio, ao abrigo do consignado na al. b) do nº 1 do artigo 280º da já referida Constituição da República Portuguesa e da al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro, da mesma interpor recurso para este Venerando Tribunal Constitucional.
Não pretende, pois, a recorrente que este Venerando Tribunal sindique a decisão em causa, mas a violação da interpretação dada ao artigo 670º, nº 2, do CPC anterior, assim como das normas e princípios que acima enuncia, controlando a constitucionalidade dos mesmos, não apenas relativamente ao caso concreto, que é a decisão na qual foram cometidas as violações em causa e prejudicaram a recorrente, mas também a todo e qualquer caso, o que constitui “generalidade e abstração inerentes a uma interpretação normativa independente do circunstancialismo estrito dos factos do caso concreto”.
Assim,
E invocando o imprescindível e mui douto suprimento de V. Exas.,
Requer:
• Seja revogada a decisão sumária de não conhecer do objeto do recurso,
• Decidindo-se do mesmo conhecer,
• Ou, pelo menos, ordenar-se o aperfeiçoamento, correção ou complemento do requerimento de interposição de recurso, com vista a clarificar os pontos, porventura, considerados menos claros,
• Com todas as consequências,
• Pois, só assim será servida a
Justiça!”
II – Fundamentação
4. A recorrente reclama para a conferência da Decisão Sumária n.º 489/2013, por discordar do já decidido quanto ao não conhecimento do objeto do recurso interposto para este Tribunal.
A ora reclamante considera, em primeiro lugar, que o Relator deveria obrigatoriamente tê-la convidado a esclarecer, aperfeiçoar, ou complementar o requerimento de interposição de recurso. Em segundo lugar, considera que a Decisão Sumária esteve mal ao decidir que “o que a recorrente pretendia era «discutir no presente recurso se o referido despacho de 15/10/2012 conheceu do mérito do pedido de reforma e se, em consequência, o Tribunal da Relação de Guimarães esteve bem ao aplicar a norma constante do artigo 670.º, n.º2 do CPC aos autos»”.
5. Comecemos pela primeira questão.
Decorre, de facto, dos n.ºs 5 e 6 do artigo 75-A da LTC que, se o requerimento de interposição do recurso não indicar algum dos elementos previstos nos n.ºs 1 e 2 desse artigo, o juiz (do tribunal a quo, ou o Relator no Tribunal Constitucional) convidará o requerente a prestar essa indicação no prazo de 10 dias.
No entanto, como se pode ler na decisão sumária reclamada, não foi por falta dos elementos enunciados no artigo 75-A, n.º1 e 2 da LTC que o Tribunal Constitucional decidiu não tomar conhecimento do presente recurso. O não conhecimento do recurso não se prendeu com a falta de (ou insuficiente) indicação desses elementos, mas sim com a falta de verificação dos pressupostos processuais indispensáveis ao conhecimento do mesmo – nomeadamente a falta de suscitação prévia e de forma adequada da questão de constitucionalidade que se pretendia ver apreciada, perante o tribunal a quo, bem como a natureza não normativa da questão objeto do recurso. A falta desses pressupostos processuais era insuprível com o convite a que a ora reclamante se refere.
6. No que toca à segunda questão, importa sublinhar que, ainda que a ora reclamante viesse, na sequência de convite ao aperfeiçoamento, enunciar de forma compreensível o objeto do recurso, ainda assim não ficava cumprido um requisito fundamental para conhecimento do presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70.º da LTC, e de que na Decisão Sumária n.º 489/2013 se deu conta – o da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
De facto, contrariamente ao que a ora reclamante agora alega, em momento algum a mesma confrontou o Tribunal da Relação de Guimarães com uma questão de constitucionalidade normativa de que este pudesse conhecer.
Para se compreender melhor, confrontemos o que, para o Tribunal Constitucional, constitui o preenchimento desse ónus de suscitação prévia, e o que a ora reclamante fez no caso concreto.
6.1. Fazendo-se o acesso ao Tribunal Constitucional por via de recurso é necessário que o tribunal que proferiu a decisão recorrida tenha sido confrontado, por iniciativa do sujeito processual interessado, com a questão de constitucionalidade normativa, “identificando-se (…) o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, uma questão de constitucionalidade normativa é aquela que surge com autonomia relativamente ao tema da simples interpretação normativa e aplicação de determinada norma aos factos da causa. A determinação de qual seja a norma infraconstitucional aplicável a determinado caso concreto está arredada da competência do Tribunal Constitucional. Assim, questionar se determinada norma de direito infraconstitucional deve ou não ser a aplicável ao caso concreto é algo que se situa ainda no plano infraconstitucional, não se confundindo com a suscitação de que a norma efetivamente aplicada deve ser tida como inconstitucional, ainda que numa determinada dimensão interpretativa.
E assim é “porque não vigora entre nós um sistema de recurso de amparo ou de queixa constitucional, existindo, sim, um sistema de fiscalização normativa da constitucionalidade que não permite que o Tribunal Constitucional do ato casuístico de subsunção de um pormenorizado conjunto de factos concretos na previsão abstrata de uma certa norma legal” (Acórdão n.º 183/08).
6.2. Sendo este o entendimento do Tribunal Constitucional para o que constitui o preenchimento do pressuposto específico do recurso de fiscalização de constitucionalidade ao abrigo da alínea b), de “suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida”, veremos que o mesmo não foi adequadamente cumprido pela ora reclamante, como se mencionou na decisão sumária reclamada.
De facto, o que a reclamante invocou, perante o Tribunal da Relação de Guimarães foi o seguinte:
“(…) o disposto no artigo 670.º, n.º2, do CPC não se aplica ao caso dos autos, desde logo porque o (a) Mmº(ª) Juiz(a) que proferiu o despacho em crise não indeferiu o requerimento do incidente de reforma do despacho após ter conhecido do seu objeto, mas porque entendeu que a recorrente devia ter interposto recurso do mesmo em vez de ter requerido aquele incidente, quando não é assim, como demonstrado está na alegação deste agravo
Quando aquele preceito diz que «do despacho de indeferimento referido no número anterior não cabe recurso», quer referir-se, extreme de dúvidas, ao despacho de indeferimento que não tenha corrigido o vício, aclarado ou reformado o despacho depois de conhecer do objeto do requerimento do incidente, o que seria, então, uma decisão de mérito, sendo esta a única interpretação aceitável, pois que só ela respeita os princípios constitucionais ao mesmo atinentes.
No caso dos autos, não se está perante tal decisão de mérito, onde tenham sido apreciadas questões suscitadas no referido incidente de reforma do despacho, mas sim uma decisão meramente formal, que entendeu que o meio de o impugnar seria o recurso e não o requerimento de reforma do mesmo.
Decidir em sentido contrário, seria violar o princípio do direito a uma decisão mediante processo equitativo, ou seja, na sua aceção restrita, de processo justo, nos termos do artigo 20.º, n.º4, da CRP, que estabelece que «todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão… mediante processo equitativo».
(…)
Quando isso não tenha acontecido, a todos continua a ser assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, do que é reflexo o direito de requerer a reforma de uma decisão, ou de da mesma interpor recurso, estabelecido no artigo 669.º, nºs a2, als. A) e b, e 3 do CPC, o qual é clara decorrência do princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, consignado no artigo 20.º da CRP, que estabelece que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…».
Também o artigo 202.º, n.º2, da mesma impõe que «na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados»,
E o seu artigo 204.º que «nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados», que, como se disse, ocorreria se não se entendesse que o recurso é perfeitamente admissível, devendo o mesmo ser conhecido, sendo o seu objeto o de saber, tão-só, se a recorrente estava ou não impedida de interpor recurso do despacho do(a) Mmº(ª) Juiz(a) a quo, dado o disposto no 31.º, n.º6, do RCP (Regulamento das Custas Processuais), que estabelece que «da decisão do incidente de reclamação e da proferida obre as dúvidas do funcionário judicial que tiver efetuado a conta cabe recurso em um grau, se o montante exceder o valor de 50 UC», pelo que o único meio de impugnação ao seu dispor era, como foi, o incidente de reforma do mesmo despacho”. (sublinhados nossos)
Vem agora a ora reclamante invocar que no requerimento transcrito “suscitou a inconstitucionalidade do referido artigo 670.º, n.º2, do CPC, quando interpretado no sentido de que o mesmo era aplicável qualquer que fosse o fundamento do indeferimento”.
No entanto, não é isso que decorre do requerimento em análise. O daí resulta é que, muito pelo contrário, a ora reclamante invocou que, (1) o artigo 670.º, n.º2 não era aplicável ao caso dos autos e (2) que essa era a única interpretação aceitável, de tal forma que decidir em sentido contrário seria violar toda uma série de princípios constitucionais.
6.3. Assim se vê, pois, que a ora reclamante nunca reputou a norma constante do artigo 670.º, n.º2 do CPC de inconstitucional, antes se preocupando em fundamentar que a mesma não devia ser aplicável ao caso dos autos e que se deveria optar apenas por outra determinada interpretação da mesma.
Mas se assim é, não se pode considerar que tenha suscitado perante o tribunal a quo uma questão de constitucionalidade normativa de que este pudesse conhecer. A reclamante não o fez de forma que fosse discernível a autonomização da questão, como questão de constitucionalidade da norma infraconstitucional, relativamente ao tema da sua interpretação e aplicação aos factos da causa. O horizonte argumentativo da ora reclamante limita-se sempre ao caso concreto, defendendo que a norma em causa deve ser interpretada de determinada forma, e que o caso dos autos não deve ser subsumível à mesma.
7. À mesma conclusão somos levados a chegar se atentarmos no requerimento de interposição de recurso perante este Tribunal. Nessa peça a reclamante confirma, sem margem para dúvidas, que o que pretende é sindicar o juízo interpretativo e subsuntivo do tribunal a quo. Senão vejamos o que aí se refere:
A - A inconstitucionalidade da interpretação dada àquele preceito, na medida em que se cingiu à letra do mesmo, devendo antes entender-se, numa interpretação lógica e extensiva, de modo a poder alcançar-se a mens lagislatoris e a ratio legis, que, quando o mesmo estabelece que “do despacho de indeferimento referido no número anterior não cabe recurso”, quer, estreme de dúvidas, referir-se ao despacho de indeferimento que não tenha corrigido o vício, aclarado ou reformado o despacho mas depois de conhecer do seu objeto, o que seria, só então, uma decisão de mérito, na qual teriam sido apreciadas as questões levantadas no referido requerimento do incidente de reforma do despacho e não o simples indeferimento formal por se ter entendido, mal, que o meio de o impugnar seria o recurso e não o requerimento de reforma do mesmo, não tendo, por isso, dele conhecido, quando é certo que aquele nem é admissível, nos termos do artigo 31º, nº 6, do RCP, que é o caso do despacho em causa; (sublinhado nosso).
(…)
Também aqui, pois, a ora reclamante demonstra que o que visa discutir é qual a melhor interpretação a conceder à norma em análise, juízo esse que cai fora do âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional. Por outro lado, demonstra também – pelas várias referências aos circunstancialismos do caso concreto - que visa discutir, mais uma vez, o juízo subsuntivo feito pelo tribunal a quo que decidiu aplicar a norma do artigo 670.º do CPC ao caso dos autos.
8. Apesar de não ser na reclamação para a Conferência que a recorrente poderia sanar as falhas apontadas, sempre se dirá que na mesma volta a incorrer no mesmo erro. De facto, continua a insistir em qual deveria a interpretação dada ao artigo 670.º, n.º2 do CPC, pugnando que “o mesmo deve ser interpretado no sentido de que o despacho de indeferimento a que se refere é o que conhece dos fundamentos suscitados no requerimento de reforma, e não o que indefere por, pura e simplesmente, entender que se devia ter recorrido em vez de requerer a reforma”. Mais uma vez, é claro que uma suposta questão de inconstitucionalidade da norma não é tida como uma questão autónoma da referente à melhor interpretação do direito infraconstitucional.
9. Perante o exposto, é fácil concluir que não se encontravam reunidos os pressupostos processuais para o Tribunal Constitucional decidir com base na al. b) do n.º 2 do artigo 70.º da LTC. A ora reclamante não suscitou, perante o tribunal a quo, uma questão de constitucionalidade normativa de forma processualmente adequada e, em segundo lugar, contesta o próprio juízo interpretativo / subsuntivo feito pelo tribunal a quo, e não a inconstitucionalidade de uma norma. Acrescente-se que a falta destes pressupostos é, de resto, insuprível com um convite feito pelo juiz Relator nos termos e para os efeitos do artigo 75-A da LTC.
Nada mais acrescentando a ora reclamante no que toca à decisão de não conhecimento do objeto do presente recurso, conclui-se que a mesma é de manter.
III – Decisão
10. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 21 de novembro de 2013. – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.