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Proc. nº 658/2000
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. F... instaurou junto do Tribunal Cível do Porto acção de despejo contra J... e A..., com fundamento no artigo 64º, n.º 1, alínea d), do Regime do Arrendamento Urbano, uma vez que os réus realizaram obras não autorizadas no imóvel arrendado.
O Tribunal Cível da Comarca do Porto, por decisão de 27 de Outubro de 1999, declarou a resolução do contrato de arrendamento, condenando os réus a entregarem à autora o imóvel livre e devoluto de pessoas e bens e a demolirem as obras realizadas, nos termos do artigo 64º, nº 1, alínea d), do Regime do Arrendamento Urbano.
2. J... e A... interpuseram recurso da decisão de 27 de Outubro de
1999 para o Tribunal da Relação do Porto. Nas respectivas alegações os recorrentes sustentaram a inconstitucionalidade da norma da alínea d) do nº 1 do artigo 64º do Regime do Arrendamento Urbano, 'na medida em que permite o despejo de arrendatário sem que a este esteja garantida uma habitação alternativa a preços para si compatíveis', por violação do artigo 65º, nº 1, da Constituição'.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 3 de Outubro de 2000, considerou que a solução normativa consagrada no artigo 64º, nº 1, alínea d), do Regime do Arrendamento Urbano, corresponde à resolução do 'conflito operado entre o direito à habitação do inquilino e o direito à propriedade privada do senhorio', resolução essa compatível com a Constituição. Em consequência, julgou o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.
3. J... e A... interpuseram recurso de constitucionalidade do acórdão de 3 de Outubro de 2000, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 64º, nº 1, alínea d), do Regime do Arrendamento Urbano.
Junto do Tribunal Constitucional os recorrentes apresentaram alegações que concluiram do seguinte modo: O acórdão proferido, ao
1º Apreciar a aplicação da alínea d) do nº 1 do artigo 64º do RAU à luz da comparação do direito à habitação do senhorio face ao direito à habitação do inquilino, quando o direito à habitação do senhorio não está em crise, nem sequer foi invocado pela A.;
2º Por via disso, se fundamentar numa orientação jurisprudencial não aplicável ao caso e decidir, com base nela, pela constitucionalidade do citado preceito do RAU;
3º Em consequência, conferir a um direito meramente obrigacional primazia sobre um direito constitucionalmente protegido;
4º Violou, nomeadamente, os artigos 65º, nº 1 e 202º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa. Termos em que com o doutíssimo suprimento de V.Exas. deve ser revogada a decisão proferida na parte em que acolhe a constitucionalidade da alínea d) do nº 1 do artigo 64º do RAU aplicada ao caso dos autos e, em consequência, substituída por outra que julgue a acção improcedente, por não provada, e os RR. absolvidos do pedido.
A recorrida não apresentou contra-alegações.
Cumpre decidir.
III Fundamentação
4. O preceito impugnado tem a seguinte redacção: Artigo 64º
(Casos de resolução pelo senhorio)
1. O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
(...) d) Fizer, no prédio, sem consentimento escrito do senhorio, obras que alterem substancialmente a sua estrutura externa ou a disposição interna das suas divisões, ou praticar actos que nele causem deteriorações consideráveis, igualmente não consentidas e que não possam justificar-se nos termos dos artigos
1043º do Código Civil ou 4º do presente diploma;
(...)
Os recorrentes sustentam que o preceito transcrito tal como foi aplicado nos autos viola o disposto no artigo 65º, nº 1, da Constituição, uma vez que permite o decretamento do despejo sem que o inquilino tenha qualquer alternativa habitacional viável, 'em nome e em favor de um direito meramente obrigacional'.
5. O regime jurídico da relação arrendatícia (particularmente, no âmbito do arrendamento urbano) consubstancia um polo de tensão, no qual se procura a composição juridicamente sustentável dos interesses do titular do direito sobre o imóvel (senhorio) e do arrendatário (titular do direito à habitação). Neste quadro de posições divergentes, as soluções limitadoras de direitos de uma das partes, para além da compensação contratual devida, hão-de sempre encontrar fundamento legitimador numa dimensão prevalecente dos interesses do outro contraente. É na correcta articulação das duas posições que se encontrará o equilíbrio juridicamente pretendido. A norma impugnada faculta a resolução do contrato quando o inquilino realize obras não autorizadas pelo senhorio que impliquem a alteração substancial do imóvel arrendado e não sejam estritamente necessárias.
A garantia de estabilidade do contrato, à qual se encontra associada a limitação dos casos de resolução por parte do senhorio, é um dos aspectos do regime que concretizam a tutela do direito à habitação do arrendatário, originando uma compressão do direito de propriedade do senhorio (que, de resto, a admite no momento em que celebra o contrato de arrendamento).
Por outro lado, na vigência do contrato de arrendamento, o arrendatário deve preservar o imóvel arrendado, de modo a minimizar os efeitos da sua utilização. Deve também respeitar a estrutura e a configuração do imóvel, não procedendo a alterações ou a obras não autorizadas, ainda que as considere benéficas, pois o senhorio, proprietário do imóvel, mantém a legitimidade para decidir acerca das alterações da coisa arrendada. Tutela-se, agora, o direito de propriedade num âmbito que não colide com o direito à habitação do arrendatário
(o direito à habitação é assegurado, no seu núcleo essencial, com a possibilidade de utilizar uma casa, não sendo exigível por essa garantia o poder de alterar estruturalmente a casa habitada – desde que não esteja em causa, como
é o caso, a necessidade de obras para evitar a degradação estrutural, a própria habitabilidade, do imóvel). Assim, sobre o arrendatário impende o dever de respeitar essa dimensão do direito do senhorio, no quadro de um relacionamento leal e transparente, essencial à subsistência do próprio contrato de arrendamento. No caso em apreciação, o senhorio pretende a resolução do contrato, uma vez que foram realizadas obras não autorizadas que alteram substancialmente o imóvel arrendado. É uma situação que tem a sua origem num comportamento voluntário do arrendatário.
A realização de obras não autorizadas que alterem substancialmente o imóvel implica a resolução do contrato por parte do senhorio. Trata-se de uma solução consagrada expressamente na lei, com a qual um arrendatário diligente no que respeita ao conhecimento dos seus direitos e obrigações pode razoavelmente contar.
Não decorre do direito à habitação constitucionalmente consagrado que o arrendatário possa realizar obras sem autorização do senhorio (impondo no imóvel as alterações que considere necessárias) e que, concomitantemente, tenha direito à subsistência do arrendamento. Com efeito, não é inerente ao direito à habitação o direito a realizar alterações e obras não autorizadas no imóvel arrendado, uma vez que a satisfação do interesse do titular do direito à habitação na posição de arrendatário não pressupõe o reconhecimento de um direito ilimitado sobre a coisa locada (materialmente semelhante, neste aspecto, ao do proprietário). A solução impugnada resulta, pois, da necessária composição dos interesses do proprietário do imóvel com os interesses do arrendatário. Quando o arrendatário decide realizar as obras não autorizadas e não estritamente necessárias, corre o risco de o senhorio vir a exercer o seu direito à resolução do contrato de arrendamento, pois tal actuação não se fundamenta numa qualquer necessidade fundamental inerente ao núcleo essencial do direito à habitação. Se pretende a subsistência do contrato em segurança, então deverá não proceder a tais obras, cumprindo, desse modo, as obrigações que assume perante o senhorio. A norma que consagra a consequência previsível (o despejo) de uma actuação voluntária e ilícita (a realização de obras estruturais não autorizadas que meramente visam aumentar o conforto dos arrendatários) que não decorre de uma situação de necessidade não viola qualquer dimensão do direito à habitação constitucionalmente consagrado.
Por outro lado, o facto de não haver alternativa habitacional não altera a anterior ponderação, já que o arrendatário pode razoavelmente contar com as graves consequências da sua actuação, e, por isso, não se colocar a si próprio em tal situação.
Conclui-se, nessa medida, que no caso dos autos, se a resolução do contrato foi decretada, tal ficou a dever-se unicamente à actuação dos recorrentes, e não a uma qualquer solução normativa inconstitucional.
Improcede, portanto, o presente recurso.
III Decisão
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional nega provimento ao recurso, confirmando consequentemente a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 26 de Junho de 2001 Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa