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Processo n.º 472/12
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
(Conselheira Maria José R.Mesquita)
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Família e Menores do Funchal, em que é recorrente A. e recorridos o MINISTÉRIO PÚBLICO e B., a primeira vem interpor recurso, ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º, todos da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão proferida pelo Tribunal de Família e Menores do Funchal (Secção Única), em 5 de março de 2012 e objeto de esclarecimento de 22 de março de 2012, estabelecendo, em aplicação do artigo 4.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, que “o centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal”(cfr. fls. 129 a 132 e 143).
Invoca o acórdão n.º 54/2011, publicado no Diário da República, II série – n.º 38, que julgou inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 69.º, n.º 1, e 63.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição, a norma aplicada pela decisão recorrida – artigo 4.º, n.º 5, do Decreto -Lei n.º 164/99, de 13 de maio – com a interpretação de que: ‘a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as pensões de alimentos a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão’.
2. Notificada para alegações (cfr. fls. 165-167), a recorrente sustenta que «a interpretação da norma em crise se consubstancia na violação do direito fundamental das crianças à proteção do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral – n.º 1 do artigo 69.º, e n.º 1 do artigo 63.º da CRP – Proteção da infância e direito e proteção da Segurança Social, e cujos reflexos se fazem sentir ad substantiam na presente causa, por decisão aplicada com recurso à norma e interpretação da mesma» (cfr. 8.º, fls. 166).
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal formula as seguintes conclusões (XIV. Conclusões, 64º, fls. 256-259):
«1) A Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o direito das crianças à proteção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (artigo 69.º);
2) Ainda que assumindo uma dimensão programática, este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação, a quem deve ser concedida a necessária proteção;
3) Desta conceção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (artigo 24.º);
4) Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna;
5) Decorre, assim, do disposto nos artigos 68.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, da Constituição, que o Estado deverá atuar em apoio das crianças, quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a um menor não os satisfaça e o alimentado não tenha um rendimento líquido suficiente para se autossustentar, nem beneficie, nessa medida, de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre;
6) Na verdade, nestes casos de frustração do cumprimento da obrigação de alimentos no quadro da solidariedade familiar, os menores incorrem numa situação grave de falta ou diminuição de meios de subsistência, que coloca em risco o seu direito a uma vida digna;
7) O legislador dispõe de ampla liberdade na escolha dos meios de intervenção do Estado em apoio das crianças que se encontrem em situação de risco, mas esses meios tem que ser suficientes, sob pena dos referidos direitos constitucionais serem incumpridos, por violação do princípio da proibição do défice de tutela;
8) Não sendo fácil apurar o nível de suficiência exigido, existirá, seguramente, um mínimo social que o Estado deve garantir, tendo em consideração o nível de desenvolvimento civilizacional, os recursos públicos e as condições que, segundo os valores dominantes, são indispensáveis a uma vida digna;
9) Após se terem previsto mecanismos coercivos de cobrança das prestações pecuniárias incumpridas pelo devedor de alimentos (designadamente o artigo 189.º, da O.T.M.), quando se frustram essas diligências, o legislador nacional previu a criação de uma prestação mensal ao menor em causa, a pagar por um Fundo específico estadual, sendo essa quantia entregue à pessoa à guarda do qual o menor se encontra;
10) Ora, para avaliar a suficiência desta medida, são parâmetros fulcrais não só os requisitos estabelecidos para a atribuição das prestações e o montante destas, mas também os momentos em que o Estado passa a ser responsável pelo seu pagamento, ou seja, o da constituição da respetiva obrigação, e o da sua exigibilidade;
11) No âmbito da atribuição de prestações pecuniárias regulares, destinadas a custear as despesas dos menores, a questão temporal da satisfação dessas prestações revela-se, com efeito, essencial;
12) Nessa medida, o sistema de segurança social deve garantir uma adequação temporal da resposta, concedendo oportunamente as prestações legalmente previstas para uma satisfatória promoção das condições dignas de vida das crianças;
13) Este objetivo, porém, só se poderá ter por alcançado, se as prestações sociais, atribuídas aos menores, cobrirem, o mais aproximadamente possível, todo o período em que se verifica o incumprimento de quem tem o dever de prover à sua subsistência;
14) Estando em causa menores privados de meios de subsistência necessários ao seu desenvolvimento, esta é uma situação em que não há razões que possam justificar uma resposta tardia do Estado na defesa de condições dignas de vida destes seus cidadãos;
15) Na interpretação normativa sob fiscalização, apenas está em jogo o momento da constituição da obrigação do Estado pagar uma prestação mensal, que garanta à pessoa, a cuja guarda o menor se encontre, os meios suficientes para esta prover a um saudável crescimento do menor;
16) Ao fixar o momento de constituição da obrigação do Estado pagar essa prestação mensal na data em que é proferida a decisão que apura a verificação dos requisitos para a sua atribuição, a solução normativa em apreciação compromete a eficácia jurídica da satisfação das necessidades básicas do menor alimentando, na medida em que a mesma se traduz na aceitação de sucessivos períodos, de duração incerta, de carência continuada de recebimento de qualquer prestação, depois de se ter revelado a frustração da solidariedade familiar;
17) O Estado não pode satisfazer-se com a garantia da mera sobrevivência fisiológica das crianças a quem faltou a solidariedade familiar, exigindo-se-lhe que garanta o desenvolvimento integral em condições dignas dessas crianças, proporcionando-lhe atempadamente as condições para um crescimento saudável;
18) Está em causa, com efeito, a satisfação de necessidades vitais, objeto do direito a um mínimo de existência condigna. Ora, este direito goza de um estatuto especial dentro dos direitos sociais, sendo dotado de um grau de fundamentalidade praticamente equivalente ao dos direitos pessoais;
19) Para além das disposições constitucionais referidas, também a Convenção da ONU dos Direitos da Criança, bem como a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, impõem que se tenha particularmente em conta, no caso dos presentes autos, “o superior interesse da criança”.».
O recorrido B., notificado para o efeito, não contra-alegou (cfr. fls. 287).
4. Discutido o 'Memorando' apresentado e tendo ocorrido mudança de relator, cumpre formular a decisão em conformidade com o entendimento que prevaleceu.
II - FUNDAMENTAÇÃO
5. A norma em causa foi julgada inconstitucional, em fiscalização concreta da constitucionalidade, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 54/2011 e nas Decisões Sumárias n.ºs 97/2011, 98/2011 e 101/2011. Porém, submetida a questão a Plenário, a requerimento do Ministério Público ao abrigo do artigo 82.º da LTC, veio a ser proferido o Acórdão n.º 400/2011, que decidiu «não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, na interpretação de que a obrigação de o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as prestações a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor de alimentos, só se constitui com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão», assim divergindo do sentido da jurisprudência produzida anteriormente.
6. São os seguintes os pontos essenciais da fundamentação do entendimento que prevaleceu no citado Acórdão n.º 400/2011 e que agora se reafirma:
“5. A Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, atribuiu ao Estado, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, o encargo de assegurar a satisfação dos alimentos a menores residentes em território nacional, quando a pessoa judicialmente obrigada a prestá-los não satisfaça as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º da Organização Tutelar de Menores (O.T.M.) e o alimentado não disponha de rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional, nem beneficie, na mesma medida, de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre (artigo 1.º). O Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio de 1999, procedeu à regulamentação desta Lei (foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de junho, mas somente quando ao modo de determinar o conceito de agregado familiar, os rendimentos a considerar e a capitação de rendimentos, aspetos irrelevantes para o que no presente processo se discute). Completa o regime jurídico da prestação instituída pela Lei n.º 75/98, constituindo o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, gerido em conta especial pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, e regulando outros aspetos do regime previsto naquele primeiro diploma legal, designadamente, os relativos à competência e ao processo de atribuição e de pagamento das prestações, ao direito do Fundo de reembolso sobre o devedor de alimentos e à cessação das prestações.
As prestações a pagar pelo Fundo são fixadas pelo tribunal, no incidente de incumprimento regulado na O.T.M. e após verificada a impossibilidade de obter da pessoa judicialmente obrigada a satisfação das prestações alimentares, não podendo exceder mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC (artigo 2.º da Lei e artigo 3.º do Decreto-Lei). Na fixação do montante da prestação a satisfazer pelo Fundo deve atender-se à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos e às necessidades específicas do menor (artigo 2.º da Lei e artigo 3.º do Decreto-Lei). O Fundo fica sub-rogado em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas prestações, com vista ao respetivo reembolso, podendo promover a respetiva execução judicial, salvo se o devedor fizer prova de manifesta e objetiva incapacidade de pagamento (artigo 6.º, n.º3 da Lei e artigo 5.º do Decreto-Lei).
Compete ao Ministério Público ou àqueles a quem a prestação de alimentos deveria ter sido entregue requerer, nos próprios autos de incumprimento, que o tribunal fixe o montante que o Estado deve prestar em substituição do devedor (artigo 3º, n.º 1, da Lei). A decisão definitiva será proferida após realização das restantes diligências que o Tribunal entenda indispensáveis e a inquérito sobre as necessidades do menor, perdurando o montante fixado pelo tribunal enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está vinculado (artigo 3.º, n.º 3, da Lei e artigo 4.º do Decreto-Lei). A quem receber a prestação incumbe a renovação anual da prova de que se mantêm os pressupostos subjacentes à sua atribuição (artigo 3.º, n.º 5, da Lei e artigo 9.º do Decreto-Lei).
Finalmente importa destacar, pela relevância que assume na compreensão do sistema e pelos seus reflexos na questão de constitucionalidade em apreciação, a possibilidade, prevista no n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 75/98, de o juiz proferir decisão provisória de fixação da prestação, após diligências de prova, se for considerada justificada e urgente a pretensão do requerente.
Estes são, no essencial, os traços caracterizadores desta prestação social. A prestação a cargo do Fundo é independente e autónoma, embora subsidiária, da prestação do obrigado a alimentos. Esta é fundada na solidariedade familiar. A prestação pública funda?se no direito de todos à segurança social e, mais imediatamente, na incumbência de proteção da infância a cargo da sociedade e do Estado. A intervenção ou possibilidade de intervenção do Fundo não exonera o devedor de alimentos, designadamente os progenitores que são quem mais avulta neste elenco, dos deveres de prestação decorrentes da responsabilidade parental.
6. Deste regime, interessa à questão a decidir no presente processo o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, em que se insere a norma questionada, cujo teor é o seguinte:
“Artigo 4.º
Atribuição das prestações de alimentos
1 – A decisão da fixação das prestações a pagar pelo Fundo é precedida da realização das diligências de prova que o tribunal considere indispensáveis e de inquérito sobre as necessidades do menor, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público.
2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, o tribunal pode solicitar a colaboração dos centros regionais de segurança social e informações de outros serviços e de entidades públicas ou privadas que conheçam as necessidades e a situação sócio-económica do alimentado e da sua família.
3 – A decisão a que se refere o n.º 1 é notificada ao Ministério Público, ao representante legal do menor ou à pessoa a cuja guarda se encontre e respetivos advogados e ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
4 – O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social deve de imediato, após a notificação, comunicar a decisão do tribunal competente ao centro regional de segurança social da área de residência do alimentado.
5 – O centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal.”
A norma objeto do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, é a constante deste transcrito n.º 5 do artigo 4.º do diploma complementar, na interpretação segundo a qual a obrigação do Fundo, consistente em assegurar as pensões de alimentos a menor, judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do Tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão.
No essencial, esta norma corresponde o sentido para que, na interpretação do direito infraconstitucional, se inclinou o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 12/2009, do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de julho de 2009, publicado no Diário da República, I Série, de 5 de agosto de 2009 (publicado também em Cadernos de Direito Privado, n.º 34, abril/junho de 2011, pag. 20 e segs., com anotação de J.P. Remédio Marques). Efetivamente, nesse aresto foi entendido, perante decisão divergente das instâncias e do próprio Supremo, que a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, em substituição do devedor, nos termos previstos nos artigos 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, e 2.º e 4.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respetiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo as prestações anteriores.
Cumpre agora ao Tribunal decidir se, no âmbito da modelação do regime jurídico desta prestação pública, o legislador pode determinar que a intervenção do Fundo só cobre o período posterior à decisão judicial que fixe o respetivo montante, não lhe impondo o pagamento das prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão, designadamente o que decorre desde a formulação do pedido até à decisão. Não está, obviamente, em causa a coerência sistémica de uma tal solução, designadamente por comparação com outras prestações públicas que são devidas desde que são requeridas, ainda que precedidas por um procedimento de verificação dos pressupostos, ou com a própria conceção da prestação em causa como subsidiária ou de “garantia” da obrigação alimentar (cfr. artigo 2006.º do Código Civil), mas apenas se a Constituição, designadamente no n.º 1 do artigo 69.º (proteção da infância) e nos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º (direito à segurança social) veda ao legislador que assim configure esta prestação social pública.
7.O dever de prover ao sustento das crianças incumbe, numa primeira linha, aos pais, que têm o “direito e o dever de educação e manutenção dos filhos” (artigo 36.º, n.º 5, da Constituição). Este dever de manutenção compreende o dever de prover ao sustento dos filhos, dentro das capacidades económicas dos pais, até que eles estejam em condições, ou tenham o dever de procurar por si, meios de subsistência. Constitui, aliás, um dos poucos deveres fundamentais consagrados de modo expresso pela Constituição.
Contudo, como se disse no referido Acórdão n.º 54/11, a natural necessidade de proteção das crianças, não podia deixar um Estado que visa a realização da democracia económica e social (artigo 2.º, da Constituição) à margem da tarefa de assegurar o seu crescimento saudável, reconhecendo-se expressamente não só que “as crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono” (artigo 69.º, n.º 1, da Constituição), como também que os pais e as mães devem gozar de proteção “na realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos” (artigo 68.º, n.º 1, da Constituição).
Deste direito de proteção e dos correlativos deveres de prestação e de atividade legislativa não resulta que o Estado tenha de assumir, por imposição constitucional, uma posição jurídica de garante da prestação alimentar dos progenitores. A prestação pública realiza um típico direito social derivado do n.º 1 do artigo 69.º da CRP, um direito especial no campo do direito à segurança social (artigo 63.º, n.ºs 1 e 3, da CRP), num domínio em que se entrecruzam dois tipos de responsabilidade ou deveres de proteção, cada um com a sua lógica própria.
Como típico direito social, na dimensão em que se traduz na pretensão de prestações materiais a cargo do Estado, este direito das crianças é um “direito sob reserva do possível”, não sendo diretamente determinável no seu quantum e no seu modo de realização a nível da Constituição. O limite de conformação em que o direito de proteção das crianças mediante prestações fácticas ou pecuniárias a cargo do Estado é resistente ao legislador só pode (judicialmente) alcançar-se a partir de outros referentes constitucionais, de natureza principial, em que avulta o princípio da dignidade da pessoa humana. Com efeito, salvo quando a solução afete o núcleo já realizado de concretização legislativa radicado na consciência jurídica geral como núcleo essencial do direito considerado, ao legislador democrático tem de ser preservada uma larga margem na realização ou conformação dos direitos sociais, só acessível à censura por parte da justiça constitucional – na sua dimensão de “direitos positivos”,entenda-se – quando e na medida em que puser em causa os princípios estruturantes do Estado de Direito. Como diz Vieira de Andrade (in Justiça Constitucional, n.º 1, Jan./Mar. 2004, pág. 27)«…[a] avaliação do nível de desenvolvimento social do país, as conceções estruturais de organização da sociedade política, em especial do papel reconhecido às famílias, associações e instituições, a articulação entre os diversos modos ou formas de organização da segurança social e da solidariedade, as opções entre instrumentos alternativos – prestações diretas, créditos, bonificações, ajuda na busca de emprego, bolsas de formação, etc. –, e, apesar de tudo, em certa medida, as inevitáveis opções orçamentais e de afetação de recursos escassos – todas estas considerações tornam a tarefa do legislador muito mais que uma mera concretização jurídica da Constituição “furtada à disponibilidade do poder político”».
É certo que neste domínio particular da proteção da infância, pela insuperável debilidade do titular, pela sua incapacidade natural de encontrar por si alternativas para satisfazer necessidades vitais comprometidas pelo incumprimento da obrigação alimentar, pela urgência e pelas consequências, no plano social e pessoal, da insatisfação imediata das necessidades de uma personalidade em formação, o grau de proteção constitucional é mais intenso e o correlativo dever de prestação por parte do Estado mais determinável no seu conteúdo mínimo. Designadamente, no aspeto que agora interessa e que consiste na exigência de que a prestação pública seja idónea a proporcionar resposta temporalmente adequada à necessidade ou situação de carência que a justifica. Acompanha-se o Acórdão n.º 54/11 quando diz:
“Independentemente do quantum da prestação estatal de alimentos que vier concretamente a ser fixada pelo tribunal –matéria que extravasa o objeto do presente recurso de constitucionalidade –,coloca-se a questão da necessidade de assegurar um mínimo de eficácia jurídica na garantia de satisfação desta obrigação de alimentos, sob pena de violação do direito fundamental à segurança social (Vide, neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 509/2002, em ATC, 54.º vol., pág. 19).
Para assegurar a satisfação deste direito fundamental nestas situações não basta criar um qualquer mecanismo de apoio aos menores em relação aos quais o dever parental de prover à sua subsistência é incumprido, é também necessário que esse mecanismo esteja construído de modo a poder dar uma resposta eficaz a essas situações.
Estando nós perante a atribuição de prestações pecuniárias regulares, destinadas a custear as despesas dos menores, a questão temporal da satisfação dessas prestações é essencial. O sistema de segurança social deve garantir uma adequação temporal da resposta, concedendo oportunamente as prestações legalmente previstas para uma satisfatória promoção das condições dignas de vida das crianças (vide, enunciando este princípio da segurança social, João Carlos Loureiro, em “Proteger é preciso, viver também: a jurisprudência constitucional portuguesa e o Direito da Segurança Social”, in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, pág. 383, da ed. de 2009, da Coimbra Editora). E este objetivo só se mostra alcançado, por um lado, se as prestações sociais atribuídas aos menores cobrirem, o mais aproximadamente possível, todo o período em que se verifica o incumprimento por parte dos pais do dever de proverem à subsistência dos seus filhos, e por outro lado, se existir um mecanismo que permita acorrer, num curtíssimo espaço de tempo, aos casos de necessidade urgente”.
E também se subscreve o ponto de partida desse acórdão quando afirma que “sendo os beneficiários desta prestação social menores privados de meios de subsistência, estamos num universo em relação ao qual os imperativos de proteção social constitucionalmente previstos se verificam na sua máxima expressão”. Efetivamente, como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/05, “ (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) a insatisfação do direito a alimentos atinge diretamente as condições de vida do alimentando e, ao menos no caso das crianças, comporta o risco de pôr em causa, sem que o titular possa autonomamente procurar remédio, se não o próprio direito à vida, pelo menos o direito a uma vida digna” (em ATC, 62.º vol., pág. 649).
8. Porém, não pode retirar-se daqui que o conteúdo mínimo do direito social em causa ou, na sua dimensão objetiva, o especial mandamento constitucional de proteção das crianças com vista “ao seu desenvolvimento integral”, só se cumpra se existir uma prestação pecuniária pública com esta natureza e se ela for devida (pelo menos) desde o momento em que o pedido é formulado. Com efeito, na concretização dos direitos sociais enquanto direitos positivos, mesmo onde haja maior vinculação do legislador, dificilmente deixa de subsistir um espaço de conformação legislativa porque, geralmente, não há uma medida certa, nem uma forma única, de cumprimento do imperativo constitucional, ficando a sua realização positiva, além da reserva do financeiramente possível, sujeita a uma margem de escolha dos meios, formas e prioridades por parte dos titulares do poder político. Deste modo, não se tratando de conteúdo diretamente determinado pela Constituição, importa ver se, no conjunto do regime instituído pelo legislador, há mecanismos capazes de proporcionar aquele grau de proteção para a situação de carência gerada pelo incumprimento da obrigação alimentar sem o qual poderia discutir-se se é preservado o princípio da dignidade da pessoa humana.
Ora, este dever de proteção, que pode extrair-se do n.º 1 do artigo 69.º e do n.º 3 do artigo 63.º da Constituição relativamente a situações de incumprimento por parte do obrigado a alimentos, não é, no que respeita às prestações públicas pecuniárias ou de tradução pecuniária a favor do menor – note-se que o dever de proteção também exige do legislador medidas eficazes para que os progenitores cumpram o dever fundamental manutenção dos filhos (prestações legislativas; cfr. artigos 4.º e 27.º da Convenção sobre os Direitos da Criança) –, que o Estado se substitua na obrigação do progenitor, ainda que a título subsidiário e apenas numa certa medida, mas o de que proveja à situação de carência impeditiva de uma existência condigna ameaçada por esse incumprimento ou de que essa negligência ou impossibilidade de cumprimento das responsabilidades parentais é um dos factos geradores. Existência condigna, é bem certo, que não se refere à simples sobrevivência fisiológica ou psíquica, mas que deve levar em consideração que se trata de proteger o desenvolvimento de uma personalidade em formação (“direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral”).Todavia, esta elevação do padrão de exigência não afasta o reconhecimento do amplo poder de conformação do legislador perante a indeterminação típica das normas constitucionais relativas ao direito social em causa e o caráter multímodo das suas vias de concretização. Face a tal amplitude da discricionariedade legislativa, o Tribunal só poderia concluir pela violação do mandado de proteção perante a demonstração inequívoca da insuficiência ou inadequação manifesta das opções legislativas face ao fim ou ao sentido das normas constitucionais consideradas. Juízo que tem sempre de estar atento à existência no sistema de instrumentos flanqueadores da aparente inadequação de cada aspeto, isoladamente considerado, da intervenção prestacional pública em análise.
9. Efetivamente, contra a solução normativa em apreciação tem-se argumentado que ela acaba por comprometer a eficácia da satisfação das necessidades básicas do menor alimentando, na medida em que “se traduz na aceitação de um novo período, de duração incerta, de carência continuada de recebimento de qualquer prestação social de alimentos, a cumular a um anterior período – mais ou menos longo – em que já se revelou a frustração total da solidariedade familiar”. Juízo este que não seria afastado pela possibilidade de fixação provisória da prestação pública “uma vez que esta decisão provisória, não só não abrange todas as situações em que o menor não tem assegurada a sua subsistência pelos obrigados principais, apenas podendo ser utilizada nos casos de excecional urgência, como também o momento da exigibilidade das prestações sociais assim decretadas não deixa de se revelar incerto e sempre tardio, uma vez que essa decisão provisória também só é decretada já no decurso do processo de apuramento da necessidade da intervenção subsidiária do Estado, podendo igualmente ser precedida de diligências de prova de execução temporal incerta”.
Não parece que esta crítica proceda.
Em primeiro lugar, deve notar-se que a retroação da condenação, impondo ao Fundo o pagamento das prestações correspondentes ao período decorrido entre a formulação do pedido e a decisão final, não seria meio idóneo para satisfazer, por si mesma, as necessidades de manutenção do menor no momento a que tais prestações se referem (nemo alitur in praeteritum). Isto é, embora vantajosa para os interesses do menor, não satisfaz a exigência de proteção temporalmente adequada, que é o aspeto que pode elevar-se a parâmetro judicialmente atendível face ao problema que está em consideração. As necessidades vitais do menor tiveram de ser satisfeitas com outros recursos, normalmente mediante esforço acrescido do progenitor (ou da pessoa) que o tem à sua guarda, porventura com privações na satisfação das necessidades próprias. Mas, a cobertura, mediante as prestações do Fundo, do tempo entretanto passado só pode servir como mecanismo jurídico de compensação, não como meio efetivo de acorrer àquelas necessidades próprias do menor no período a que respeitam cuja insatisfação pode tornar-se incompatível com a dignidade da pessoa humana. Se o menor, em consequência do incumprimento do dever de alimentos por parte do progenitor, sofreu privações dessa natureza já não será a retroação das prestações a cargo do Fundo que pode remediá-las. Assim sendo, não constituindo sequer meio que possa reivindicar-se inteiramente idóneo para obstar à colocação do menor em situação incompatível com a dignidade da pessoa humana, não pode afirmar-se com segurança – com o grau de evidência exigida para a censura judicial das opções legislativas na concretização dos direitos sociais, na sua dimensão positiva –que esse efeito retroativo da decisão seja imposto por essa “última barreira” contra a discricionariedade legislativa no âmbito dos direitos sociais que constitui o limite mínimo do dever de proteção imposto ao Estado, designadamente no domínio das prestações de segurança social não contributiva.
O que não significa que esse seja o único princípio operante no controlo judicial da observância dos deveres estatais de promoção positiva dos direitos sociais. Como diz Jorge Reis Novais, Direitos Sociais. Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais, Coimbra, 2010, pag. 306 “(…) ainda que de forma lateral, a margem de decisão política dos poderes públicos pode ser significativamente reduzida através da intervenção dos frequentemente chamados guardas de flanco dos direitos sociais, como sejam o princípio da proibição do excesso, o princípio da proteção da confiança e, sobretudo, o princípio da igualdade (…)”. Mas nenhum destes princípios pode ser utilmente invocado a propósito da solução normativa submetida a apreciação.
E, ao invés, afigura-se que a possibilidade de fixação provisória de uma prestação pública é um meio adequado – um dos meios adequados, não competindo ao Tribunal ir mais além – para ocorrer em tempo real a necessidades imperiosas, àquelas necessidades cuja não satisfação pelo incumprimento do progenitor do dever de alimentos pode pôr em risco ou, pelo menos, comprometer o seu desenvolvimento integral. Mais do que uma medida que cubra a posteriori todo o tempo de carência, a adoção de medidas provisórias, contemporâneas da necessidade de sustento permitirá ocorrer num curto espaço de tempo a situações de especial urgência, proporcionando-lhes remédio ou alívio à medida que elas surgem.
É certo que uma medida dessa natureza não cobre todo o tempo do incumprimento por parte do progenitor, nem se aplica a todas as situações de incumprimento do obrigado a alimentos. Aliás, mesmo com a retroação das prestações ao momento da formulação do pedido de condenação do Fundo também haveria um período que, em regra, ficaria a descoberto, por não haver coincidência entre o vencimento da prestação não satisfeita e a dedução do incidente de condenação do Fundo. Mas não é possível conferir à incumbência constitucional de proteção da infância por parte do Estado uma tal extensão de cobertura temporal, cuja exigência parece pressupor uma lógica de intervenção substitutiva das responsabilidades parentais que se não retira por interpretação do artigo 69.º, n.º 1 e 68.º, nº 1 da Constituição. A Constituição não investe o Estado na posição jurídica de garante das concretas obrigações alimentares dos progenitores. Os deveres dos poderes públicos correlativos ao direito à proteção infantil impõe a adoção das medidas legislativas e administrativas, inclusivamente mediante prestações de segurança social (artigo 63.º, n.º3) com vista a prosseguir, conjuntamente com a “sociedade”, o objetivo do integral desenvolvimento das crianças. Desenvolvimento integral que, “assenta em dois pressupostos: por um lado, a garantia de dignidade da pessoa humana (cfr. artigo 1.º), elemento “estático” mas fundamental para o alicerçamento do direito ao desenvolvimento; por outro lado, a consideração da criança como pessoa em formação, elemento dinâmico, cujo desenvolvimento exige o aproveitamento de todas as suas virtualidades” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, IV edição revista, Coimbra, 2007, pag 869). O Estado não intervém como prestador por causa do incumprimento da obrigação alimentar judicialmente fixada, mas por causa da situação de carência para que esse incumprimento contribui. Daí a “condição de recursos” de que a prestação social em causa está dependente.
Em segundo lugar, a circunstância de a fixação provisória da prestação pública poder ser precedida de diligências de prova não é de molde a comprometer-lhe intoleravelmente a aptidão para, em termos de razoável praticabilidade e normal atuação dos diversos protagonistas, permitir resposta pública temporalmente adequada às situações carecidas de providências urgentes. As diligências de prova devem ser reduzidas ao mínimo compatível com um juízo prima facie acerca dos pressupostos da decretação provisória da prestação, devendo o n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 75/98 ser aplicado com a flexibilidade inerente ao facto de prover a uma situação de urgência qualificada num processo que já tem natureza urgente (princípio da adequação formal). É certo que há sempre uma demora mínima, praticamente ineliminável, inerente à circunstância de o reconhecimento do direito ser dependente de um procedimento. Mas que, em termos de formalidades processuais ou de exigências probatórias – que, além do grau de demonstração de primeira aparência inerente à natureza cautelar da decisão provisória e das exigências gerais de probidade processual, devem ainda levar em conta que a omissão de factos relevantes para a concessão da prestação sujeita o requerente a procedimento penal por crime de burla (artigo 5.º, n.º2, da Lei n.º 75/98) – não impede as entidades com legitimidade de recorrer em tempo útil aos meios que assegurem a efetividade do direito social em causa. Aliás, uma das entidades legitimadas para pedir a atribuição da prestação pública a favor do menor é o Ministério Público, magistratura sobre a qual impende o dever funcional de impulsionar a decisão provisória quando tal se justifique, por essa via cumprindo também o Estado (por instrumentos legislativos e organizacionais) os deveres de proteção que lhe incumbem. O eventual não uso ou a aplicação prática deficiente dos meios processuais existentes não justifica o recurso sucedâneo ao juízo de inconstitucionalidade da norma agora em causa.
Tanto basta para julgar improcedente a crítica de que o diferimento da prestação (definitiva) a cargo do Fundo para o momento em que é proferida a decisão judicial, não sendo devidas prestações correspondentes ao período decorrido entre o momento da formulação do pedido e essa decisão, priva o menor de proteção temporalmente adequada por parte do Estado, violando o disposto no n.º 1 do artigo 69.º e nos n.ºs1 e 3 do artigo 63.º da Constituição.
10.Embora não tenha sido parâmetro invocado nas decisões do Tribunal que justificam o pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, mas porque se trata de fundamento de que se socorreram algumas decisões judiciais que recusaram aplicação ao critério normativo em causa, importa referir que a norma em apreciação também não viola o princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição.
Estamos perante uma prestação social que é atribuída mediante a verificação de pressupostos, designadamente quanto à intervenção do Fundo e à chamada “condição de recursos”, objetivamente fixados e iguais para todos os que se encontrem nessas condições. É certo que as vicissitudes processuais podem conduzir a que menores em situação de necessidade substancialmente semelhante venham a receber tratamento diferenciado. Mas, como diz Remédio Marques (loc. cit. p.36),“...pelo seu caráter de subsidiariedade, o seu nascimento e a sua exigibilidade está necessariamente dependente de um conjunto de fatores verificáveis a montante: v.g. a inação dos representantes legais dos menores (ou do próprio Ministério Público) em fazer condenar o obrigado legal a prestar alimentos ao menor; a tentativa de cobrança coerciva dos montantes em que este tiver sido condenado; a dedução do incidente de incumprimento; o chamamento do Fundo de Garantia ao processo. As situações de desigualdade decorrem da própria situação da vida concretamente considerada e não de um critério normativo fixado legislativamente ou extraído por via interpretativa com base em tais situações da vida”.
E também não viola o princípio da igualdade a circunstância de, em outras prestações sociais, com diferentes pressupostos e diverso procedimento de atribuição (v. gr., o rendimento social de inserção – n.º 6 do artigo 15.º da Lei n.º 13/2003, de 21 de maio), a prestação pública cobrir, em regra, todo o tempo posterior ao pedido. Trata-se de situações não comparáveis. A igualdade não implica a simetria de soluções normativas adotadas para questões diversas, ainda que isso pudesse conferir maior harmonia ao sistema jurídico no seu conjunto.»
7. É este entendimento que se mantém.
Com efeito, embora seja exato que a proteção acrescida das crianças tem também por fonte importantes instrumentos de Direito Internacional e de Direito da União Europeia a que Portugal se mostra vinculado – designadamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (n.º 2 do artigo 25.º), o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 24.º), o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (n.º 3 do artigo 10.º), a Convenção (da ONU) sobre os Direitos da Criança e, mais recentemente, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 24.º) - e que essa intervenção do Estado tem ocorrer em momento compatível com a satisfação da necessidade a que se provê, de nenhum desses instrumentos resulta que a Constituição deva ser interpretada como impondo ao legislador ordinário, como única via ou como mínimo constitucionalmente determinado de realização do direito social em causa, a retroação de efeitos da sentença ao momento da propositura da ação contra o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores. Reafirma-se que para a proteção temporalmente adequada o sistema jurídico oferece um meio idóneo, traduzido na possibilidade de adoção de medidas provisórias, e que essa opção cabe na discricionariedade do legislador em matéria de concretização de direitos sociais.
Assim, não pode julgar-se inconstitucional a norma contida no artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, quando interpretada no sentido de a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as pensões de alimentos a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constituir com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão e, em consequência, tem de negar provimento ao recurso.
8. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, em 20 (vinte) Ucs de taxa de justica, sem prejuízo do regime de apoio judiciário.
Lx., 23/5/2013. – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Catarina Sarmento e Castro (vencida, pelas razões constantes da declaração de voto junta ao Acórdão n.º 400/2011, e subscrevendo os novos argumentos da Srª Conselheira Maria José Rangel de Mesquita) - Maria José Rangel de Mesquita (vencida, nos termos da declaração de voto que se anexa) – Maria Lúcia Amaral.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Relativamente à decisão proferida no presente aresto, divergi da posição maioritária por entender que deveria ter sido julgada a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação sindicada, por violação do direito das crianças à proteção do Estado com vista ao seu integral desenvolvimento, previsto no artigo 69.º, n.º 1, e do direito à segurança social previsto no artigo 63.º, n.º 1, da Constituição, pelas razões que se expõem de seguida.
Quanto à decisão sobre a questão da constitucionalidade da norma em causa (na dimensão normativa que resulta da interpretação formulada, no sentido de que a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as pensões de alimentos a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão), adere-se à posição vencida (e minoritária) no Acórdão do Plenário n.º 400/2001, por se entender que deveria julgar-se a norma materialmente inconstitucional, por ofensa do disposto, nos artigos 63.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, da Constituição. Do mesmo passo, e quanto aos fundamentos, acompanha-se a argumentação expendida pelos Senhores Conselheiros João Cura Mariano, Joaquim de Sousa Ribeiro e Catarina Sarmento e Castro, para a qual se remete.
Cumpre, porém, acrescer a essa fundamentação algumas considerações que, do mesmo modo, justificam a posição assumida quanto ao juízo de inconstitucionalidade que se entende recair sobre a norma sindicada. Com efeito, o que está em causa é a dimensão temporal da prestação estadual destinada ao pagamento das prestações de alimentos a menores em substituição da pessoa judicialmente obrigada a fazê-lo, sendo particularmente relevante o momento em que se constitui o dever do Estado de, por conta de um fundo constituído para o efeito (Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores) e através dos centros regionais da segurança social territorialmente competentes, se substituir àquele que estava legal e judicialmente obrigado a pagar alimentos a criança ou jovem menor de idade, nos termos de decisão judicial que estabelece o montante das prestações de alimentos devidas em cada caso, atendendo à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.
Dispõe a lei que o centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal (artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99).
Sendo claro que o início do pagamento das prestações ocorra após a decisão judicial que estabelece os respectivos montantes, entende-se que a obrigação do pagamento por parte do Estado deve ocorrer em momento anterior ao da decisão judicial, considerando-se que a outra leitura daquela disposição legal – que constitui o dever do Estado no momento da decisão judicial, diferindo a obrigação do seu pagamento para o mês seguinte ao da respectiva notificação – é ferida de inconstitucionalidade. Assim,
O momento determinante para a constituição do dever do Estado de pagamento das prestações de alimentos – devidas e não pagas por quem estava obrigado a fazê-lo – é necessariamente anterior à decisão judicial que as estabelece, pois o momento da constituição da necessidade do menor é também anterior à sentença e mesmo, dir-se-á, ao próprio pedido de intervenção judicial.
Isto não significa que não se possa considerar este último como um momento particularmente relevante, pois corresponde à fase em que se esgotaram ou se mostraram inviáveis todas as possíveis vias legais que pudessem preencher o mesmo fim (seja pelo pagamento voluntário, seja pelo pagamento coercivo das prestações de alimentos devidos a menor). Com efeito, ele ocorre após se frustrarem as diligências de ativação dos mecanismos coercivos de cobrança das prestações pecuniárias incumpridas pelo devedor de alimentos (como previsto, designadamente, no artigo 189.º, do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de outubro - O.T.M.), ao que a lei responde com a criação de uma prestação mensal ao menor em causa, a pagar por um Fundo específico estadual, sendo essa quantia entregue à pessoa à guarda do qual o menor se encontra.
O pedido é igualmente relevante para o conhecimento da situação de carência que o justifica, já que se trata de despoletar uma intervenção pública necessariamente subsidiária face à omissão de cumprimento dos deveres de assistência financeira (pagamento da prestação de alimentos) por parte do progenitor a tanto judicialmente obrigado.
Uma vez verificada a falência das vias disponíveis para o cumprimento da obrigação de alimentos por parte do devedor, ao Estado é cometida, por via do Fundo, uma responsabilidade pelo pagamento em substituição do devedor - sempre existindo direito ao reembolso pelo devedor, já que o Estado fica sub-rogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações (artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio).
Atendendo também aos critérios estabelecidos na lei para um recurso bem sucedido a este mecanismo, verifica-se que o mesmo se dirige a um conjunto de situações de manifesta precariedade, determinada pela carência de meios financeiros suficientes para a satisfação condigna das necessidades essenciais do menor, inerentes à sua subsistência e ao seu desenvolvimento como pessoa – alimentação, vestuário, educação, habitação. A lei estabelece como requisito de atribuição das prestações de alimentos um apertado limite de rendimentos, assegurando o pagamento das prestações pelo Estado, através do Fundo, apenas aos menores que não tenham rendimentos líquidos superiores ao salário mínimo nacional nem beneficiem nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontrem (artigo 3.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio).
Ora a interpretação da norma contida no artigo 4.º, n.º 5 no sentido do diferimento do pagamento de prestações de alimentos a menor (em substituição do devedor) para momento posterior ao da decisão judicial que determina o respectivo montante, só aí se constituindo a obrigação do Estado, ainda que em substituição do devedor, determina o prolongamento no tempo da situação de carência que justifica o direito à prestação estadual, ignorando as opções inviabilizadas e as consequências que poderão ter ocorrido nesse lapso temporal, com projecção na esfera pessoal do menor, tal como o empobrecimento do progenitor, as mais das vezes a mãe, ou da pessoa com a guarda do menor (logo, do próprio menor), o abaixamento da satisfação das suas necessidades ao nível mais básico da subsistência ou o endividamento do progenitor ou da pessoa com a guarda do menor e responsável por essa satisfação, o que necessariamente se repercutirá na situação futura da criança e do seu agregado familiar (que poderá até incluir outras crianças).
E, como defendido acima, a responsabilidade do Estado não se deve considerar constituída apenas com a decisão judicial, mas em momento anterior, que sempre cumpre ao legislador fixar, de modo a assegurar a maior eficácia na protecção dos direitos da criança face a um incumprimento comprovado do dever de prestação de alimentos por parte do progenitor ao mesmo obrigado e ao qual o Estado se substitui.
A responsabilidade do Estado perante as situações abrangidas pelo regime normativo em causa corresponde, pois, a uma forma de responsabilidade, ‘subsidiária’ em relação ao devedor, derivando a responsabilidade de ambos de imperativos constitucionais. Com efeito, o universo dos beneficiários das prestações de alimentos integra uma categoria particular de pessoas, qualificada pela menoridade, a que a Constituição confere uma protecção acrescida.
Essa protecção acrescida das crianças tem por fonte não apenas a Constituição portuguesa, mas também importantes instrumentos de Direito Internacional e de Direito da União Europeia a que Portugal se mostra vinculado, tutelando valores que não deixam de informar a própria Constituição. Desde logo, dispõe o n.º 2 do artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem que «a maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma protecção social», o que é reafirmado e concretizado no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 24.º: «Toda a criança tem direito, sem discriminação alguma por motivos de raça, cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, posição económica ou nascimento, às medidas de protecção que a sua condição de menor exige, tanto por parte da sua família como da sociedade e do Estado») e no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966 (em particular, no n.º 3 do artigo 10.º: «Medidas especiais de protecção e de assistência devem ser tomadas em benefício de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação alguma derivada de razões de paternidade ou outras»), ganhando dimensão especial na Convenção (da ONU) sobre os Direitos da Criança, de 1989. Por seu turno, e mais recentemente, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia estabelece, no seu artigo 24.º, que «as crianças têm direito à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar» (n.º 1), vinculando os atos relativos às crianças praticados por entidades públicas ao interesse superior da criança (n.º 2).
Por outro lado, não pode deixar de relevar o facto de o regime legal português da garantia de prestação de alimentos pelo Estado em substituição do devedor inandimplente corresponder, em grande medida, ao acatamento da Recomendação n.º R (82) 2 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, adotada em 4 de Fevereiro de 1982, dirigida aos governos dos Estados membros com vista à adoção de um sistema de pagamento em avanço dos alimentos a crianças quando o seu devedor falhar no cumprimento dessa obrigação.
A obrigação de alimentos é, em primeira linha, uma obrigação do progenitor que não viva com os filhos, integrando-se no dever de os pais proverem ao seu sustento. A Constituição consagra, no n.º 5 do artigo 36.º, o direito e o dever dos pais de educação e de manutenção dos filhos, os quais, para Gomes Canotilho e Vital Moreira, «são um verdadeiro direito-dever subjectivo e não uma simples garantia institucional ou uma simples norma programática, integrando o chamado poder paternal (que é uma constelação de direitos e deveres, dos pais e dos filhos, e não um simples direito subjectivo dos pais perante o Estado e os filhos). A natureza do direito-dever subjectivo dos pais traduz-se, na linguagem actual, na compreensão do poder paternal como obrigação de cuidado parental.» (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, p. 565). Especificamente «quanto ao direito e dever de manutenção, ele envolve especialmente o dever de prover ao sustento dos filhos, dentro das capacidades económicas dos pais, até que eles estejam em condições (ou tenham obrigação) de o fazer. Daí o fundamento da obrigação de alimentos por parte do progenitor que não viva com os filhos» (Cfr. idem). Este entendimento é reforçado na leitura desta disposição constitucional feita por Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., 2010, p. 832), ao escreverem que «a Constituição, no artigo 36.º, n.º 5, refere-se, não apenas à educação, mas também à manutenção dos filhos. Assim, dentro das suas possibilidades económicas, cabe aos pais, durante a menoridade dos filhos ou enquanto não for exigível a estes que se auto-sustentem, velar pela sua segurança e saúde e prover ao seu sustento. E, não convivendo os pais maritalmente, o progenitor que não tem a guarda do filho deve, desde logo por imperativo constitucional (em face do dever fundamental de manutenção dos filhos, ainda que nascidos fora do casamento), prestar-lhe alimentos».
Assinalado o dever, merece, do mesmo passo, referência o direito de manutenção dos filhos, merecendo as mães e os pais que têm a guarda da criança a protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos (artigo 68.º, n.º 1, CRP), o que beneficia da interpretação que se retira, por força do disposto no artigo 16.º, n.º 2, da CRP, da norma contida no artigo 25.º, n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: «Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários» (sublinhado acrescentado).
A intervenção do Estado, substituindo-se ao devedor da prestação de alimentos, e necessariamente subsidiária em face dos deveres que estão (constitucional e legalmente) cometidos a este, é justificada perante a omissão do cumprimento do dever assinalado, dada a particular situação de desprotecção daqueles que, sendo menores, não possam (e que, por serem menores, não podem) garantir o próprio sustento, na falta ou insuficiência de condições económicas dos próprios ou de quem tem a sua guarda.
Deste modo o Estado actua para a realização de um direito fundamental: o direito das crianças à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, consagrado no artigo 69.º, n.º 1, da Constituição.
É certo que este direito «não tem por sujeitos passivos apenas o Estado e os poderes públicos, em geral, mas também a ‘sociedade’ (n.º 1), a começar pela própria família (incluindo os progenitores) e pelas demais instituições (creches, escolas, igrejas, instituições de tutela de menores, etc.) (n.º 1, in fine), o que configura uma clara expressão de «direitos fundamentais nas relações entre particulares» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 869). Contudo, não se pode colocar no mesmo plano a intervenção do Estado e da sociedade, pois sendo ambas subsidiárias relativamente à acção insubstituível dos pais (artigo 36.º, n.º 5, e 69.º, n.º 1), CRP), não é exigível que a «sociedade», difusamente considerada (cfr. a análise do artigo 67.º quanto ao papel da sociedade, feita por Rui Medeiros in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª ed., Coimbra, 2010, pp. 1371-1372), deva suprir uma situação de carência financeira de uma criança, determinada pelo incumprimento do dever de sustento que caberia, em primeira linha, ao progenitor judicialmente obrigado a prestar alimentos. Isto é, a densificação do dever de protecção a cargo da sociedade (que não cumpre aqui desenvolver) não pode compreender a dimensão prestacional que decorre do pagamento (periódico) de alimentos. Deste modo, dificilmente bastará considerar a possibilidade de, durante o período de carência, poder o progenitor (ou outrem) com a guarda da criança contar com a solidariedade familiar ou institucional para afastar a responsabilidade do Estado no período anterior ao da decisão judicial que determina o montante a pagar, esgotadas as soluções com vista ao seu pagamento pelo devedor.
Poderá enquadrar-se a prestação estadual de alimentos – garantida pelo Fundo e efectivada pelos centros regionais de segurança social – no direito à segurança social, previsto no artigo 63.º, n.º 1, CRP e traduzido na prestação pelo Estado de um apoio financeiro que procura responder a uma situação de carência económica não suprível pelos meios e recursos do seu beneficiário, mas é necessariamente mais do que isso.
A prestação social em causa – prestação estadual de alimentos – assegura a efectivação de um direito a uma existência condigna, particularmente, um direito a um crescimento condigno das crianças (artigo 69.º. n.º 1, da CRP), o que acarreta uma particular exigência na promoção das condições essenciais (incluindo as condições económicas) ao desenvolvimento integral das crianças. Assim, por um lado, o dever de protecção do Estado comporta uma importante dimensão positiva (prestacional), permitindo relacionar aquele direito com o direito de descoberta jurisprudencial a «exigir do Estado esse mínimo de existência condigna, designadamente através de prestações» (Acórdão n.º 509/02) e que se faz derivar do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º, CRP) e do próprio direito à vida e da integridade física (artigos 24.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1, CRP); por outro lado, a satisfação daquele direito fundamental não pode ficar-se apenas pela garantia de sobrevivência – de um mínimo de sobrevivência – das crianças, antes se destina a assegurar uma existência condigna das crianças que permita o seu pleno desenvolvimento como pessoas (e, nesse sentido, derivando também do direito ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º, n.º 1 da Constituição).
Chegámos pois ao núcleo basilar dos direitos pessoais que enquadram e necessariamente informam as opções do legislador no domínio da protecção das crianças e que, por isso mesmo, assumem uma particular exigência quanto àquelas opções. Esse núcleo integra a satisfação de um feixe de direitos subjetivados na criança, operando como síntese das condições necessárias para o seu exercício.
Do outro lado, a responsabilidade do Estado de proceder à sua efetivação, cometendo-lhe a Constituição uma função subsidiária mas indispensável. Subsidiária relativamente aos deveres dos pais (em concreto, de quem estava judicialmente obrigado a prestar alimentos), substituindo-os no cumprimento desse dever uma vez esgotados os meios adequados para assegurar o seu cumprimento); indispensável, no quadro de um Estado social de direito para a efectivação de um direito fundamental das crianças por à sociedade, pese embora a relevância (até constitucional) do seu papel, apenas caber um dever difuso de protecção das crianças.
Em suma, e nas oportunas palavras de Jorge Miranda/Rui Medeiros, «o Estado, vinculado positivamente pelos direitos fundamentais, tem o dever de proteger a vida, a integridade pessoal, o desenvolvimento da personalidade e outros direitos fundamentais» das crianças» (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 1381).
Assim entendido o direito das crianças à proteção e assim configurado o dever do Estado na sua realização, cuja obrigação de intervenção é suscitada pelo incumprimento do progenitor devedor, o diferimento desta intervenção para momento posterior à decisão judicial implica um défice de protecção dos direitos do menor tendo em conta os requisitos de acesso ao Fundo e à prestação estadual que, por se reportarem ao salário mínimo nacional, por si já evidenciam um limiar susceptível de comprometer o pleno desenvolvimento da criança por falta ou insuficiência de meios financeiros.
Pelo exposto não restaria senão concluir pela inconstitucionalidade da norma contida no artigo 4.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, quando interpretada no sentido de a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as pensões de alimentos a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constituir com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão, por violação do direito das crianças à protecção do Estado com vista ao seu integral desenvolvimento, previsto no artigo 69.º, n.º 1, e do direito à segurança social previsto no artigo 63.º, n.º 1, ambos da Constituição.
Maria José Rangel de Mesquita