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Processo n.º 875/12
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 58/2013:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, em 06 de junho de 2012 (fls. 437 a 445), ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, em 23 de maio de 2012 (fls. 391 a 433), para que seja apreciada a inconstitucionalidade das seguintes interpretações normativas:
i) “(…) das normas legais em causa (arts. 21º e 25º DL 15/93) tendo por base a presunção ilícita de culpabilidade a título de tráfico de estupefacientes sem consideração do destino ao nível [d]a douta acusação pública e com colocação sobre o arguido [de] tal ónus de prova ao arrepio das mais elementares garantias de defesa, desde logo presunção de inocência e princípio «in dubio pro reo»”;
ii) “(…) das mesmas normas legais sempre e quando permita a condenação pelo crime de tráfico de estupefacientes sem que se mostre provado que o destino a dar não é o consumo, havendo dúvida como expressamente decorre da própria decisão, com exigência de necessidade de prova expressa de destino diverso do consumo ao arrepio das mais elementares garantias de defesa, desde logo presunção de inocência e princípio «in dubio pro reo», atenta a relação de mútua exclusão existente entre ambas as normas legais e imposição de absolvição sob pena de violação do princípio da legalidade”;
iii) “(…) de tais normas legais no sentido de ser admissível e necessária a condenação por prática de crime baseada em mero dolo de intenção, com antecipação significativa da tutela penal, que se não mostre acompanhada de qualquer resultado ou benefício colhido pelo agente, defendendo-se a desnecessidade de convocação do Direito Penal por violação dos princípios da proporcionalidade, adequação e igualdade” (fls. 450).
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
3. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido a 21 de novembro de 2012 (cfr. fls. 469), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator verifique que não foram preenchidos os pressupostos de interposição de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
4. Apesar de autonomizadas, as duas primeiras questões confluem no mesmo sentido normativo (alegadamente) extraído dos artigos 21º e 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, nos termos do qual seria admissível condenar o recorrente pelo crime de tráfico privilegiado de estupefacientes, mesmo que não se produzisse prova acerca do destino a dar às substâncias proibidas semeadas e cultivadas pelo recorrente, ou seja, da prova de que as mesmas não se destinavam apenas ao consumo próprio.
Ora, um dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade é que as normas ou interpretações normativas cuja inconstitucionalidade é suscitada tenham sido aplicadas pela decisão recorrida. Não é manifestamente o que se verifica no presente caso. Com efeito, não só a decisão recorrida configura o crime de tráfico de estupefacientes – na senda de toda a doutrina juspenalista – como um crime de perigo abstrato, como a decisão recorrida expressamente dá por provado que as substâncias estupefacientes não se destinavam a consumo próprio e, portanto, visavam a sua comercialização ou partilha com terceiros. Assim se pronunciou, inequivocamente, a decisão recorrida:
“Este tipo de crime é, [em] ambos os casos, um crime de perigo abstrato ou presumido, que tutela a saúde e a integridade física dos cidadãos, concretamente a saúde pública.
Enquanto crime de perigo, consuma-se com a mera criação de perigo ou risco de dano para o bem jurídico protegido, integrando, por isso também a categoria dos chamados crimes exauridos ou de empreendimento, através dos quais se tutela antecipadamente um bem jurídico, recuando-se tal proteção a momentos anteriores a qualquer manifestação danosa” (fls. 409).
E, mais adiante:
“Por outro lado, demonstrou-se que tais plantas tinham um peso líquido de 2.960,846 e capacidade para gerar 676 doses diárias, em função da quantidade média correspondente ao consumo diário individual, concluindo-se ainda que o arguido adotou tais comportamentos de forma livre, voluntária e consciente.
Com base em tais factos e conjugando-os com as regras da experiência comum, já se avançou em sede de motivação dos factos que não é crível que o arguido destinasse tais substâncias unicamente ao seu consumo, o que voltamos aqui a deixar claro.
Com efeito, é certo que não existe nenhum limite que trace neste campo quantitativo a fronteira entre o consumo e o tráfico, mas a experiência comum, baseada nas circunstâncias a que já aludimos, e a indicação fornecida pelas tabelas dos quantitativos máximos diários normais de consumo (cf. Portaria n.º 94/96, de 26 de março) são fatores preponderantes aos quais não podemos deixar de lançar mão para chegar à referida conclusão.” (fls. 410)
Em suma, resulta da decisão recorrida – sem qualquer margem para dúvidas – que a mesma não aplicou, enquanto critério determinante do seu juízo condenatório, qualquer das interpretações normativas identificadas pelo recorrente nas alíneas i) e ii) do seu requerimento de interposição de recurso, pelo que, por força do artigo 79º-C da LTC, fica vedada a possibilidade de conhecimento do objeto do recurso, quanto esta parte.
5. Já quanto à terceira interpretação, segundo a qual seria “admissível e necessária a condenação por prática de crime baseada em mero dolo de intenção, com antecipação significativa da tutela penal, que se não mostre acompanhada de qualquer resultado ou benefício colhido pelo agente”, o que o recorrente contesta é, no fundo, a própria configuração do crime de tráfico de estupefacientes como um “crime de perigo abstrato”, por considerar – e bem – que ele prescinde da verificação de determinado resultado típico.
No que diz respeito a esta questão deve notar-se que o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade da interpretação normativa acolhida pela decisão recorrida, ou seja, da interpretação que configurou o crime de tráfico de estupefacientes como um mero “crime de perigo abstrato” de forma expressa e adequada, o que deveria ter feito, atenta a centralidade da distinção entre “crimes de perigo” e “crimes de resultado”, no âmbito da dogmática juspenalista. Ou seja, deveria ter confrontado o tribunal recorrido com a inconstitucionalidade de tal interpretação.
Ora, o recorrente apenas esboça, no § X das suas conclusões (fls. 278), uma tímida alusão à – por si defendida – impossibilidade de condenação “sem que se mostre o mesmo concretizado em qualquer resultado para o qual a conduta do arguido tenha contribuído decisivamente”. Sucede, porém, que esta referência genérica aparenta pressupor que todos os ilícitos típicos penais descrevem “crimes de resultado”, o que, manifestamente, não se adequa ao atual estádio de desenvolvimento do Direito Penal. Impunha-se antes que o recorrente tivesse identificado o referido crime de tráfico de estupefacientes como um “crime de perigo abstrato” – ou seja, que dispensa a verificação de um resultado concreto – e que, assim qualificado, tivesse então suscitado a inconstitucionalidade dessa mesma interpretação normativa, que pressupõe a necessidade de intervenção penal para evitar o risco de lesão de determinado bem jurídico, mesmo que não se verifique a produção de um resultado típico.
Não tendo logrado antecipar essa interpretação normativa – que era, ademais, a interpretação normativa mais previsível, atenta a unanimidade doutrinária e jurisprudencial quanto à qualificação do crime de tráfico de estupefacientes como um “crime de perigo” –, mais não resta que concluir pela impossibilidade legal de conhecimento do objeto do presente recurso, por manifesta falta de suscitação processualmente adequada da terceira questão que constitui objeto do presente recurso, conforme lhe era imposto pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC.
Mas ainda que assim se não entendesse – o que por mera exaustão de fundamentação se pondera – importa notar que este Tribunal já conclui pela não inconstitucionalidade da conceção dos crimes de tráfico de estupefaciente como mero “crimes de perigo”, por exemplo, no Acórdão n.º 295/2003:
“Significa isto que é bem possível sustentar-se que o legislador, após a vigência da Lei 30/2000, por um lado, intentou despenalizar a detenção, para consumo, de substâncias estupefacientes, entendendo que, para esse efeito, se haveria de considerar tão somente a detenção de uma quantidade que não fosse superior à necessária para o consumo individual durante dez dias; e, por outro, que a detenção, não permitida, de quantidade superior àquela, por si só, haveria de ser sancionada como um ilícito criminal (seja por via do artº 21º, seja por via do artº 25º, seja, se estiver reunido o cabido condicionalismo, por via do artº 26º, todos do Decreto-Lei nº 15/93).
Numa certa perspetiva, uma tal intenção poderia repousar, aliás, no «perigo» que representa a detenção (ilícita) de uma quantidade de estupefaciente superior à considerada necessária para o consumo individual durante dez dias, já que é plausível o risco de a detenção de uma tal quantidade poder, ainda que por meios alheios à vontade do detentor, levar à introdução da «droga» num «circuito social» ou de acessibilidade a outrem, situação que, tendo em conta o autêntico «flagelo» que constitui para o sociedade o problema da droga, levou o legislador a penalizar um tal circunstancialismo (recte, a penalizar o agente detentor, não autorizado, daquela quantidade).
7.1. Neste contexto, pergunta-se: é manifestamente excessivo, arbitrário ou desproporcionado punir (designadamente em termos tais como os constantes artº 25º do Decreto-Lei nº 15/93) um agente que detenha, sem para tanto estar autorizado, uma quantidade de substâncias estupefacientes que seja superior à necessária para um consumo médio individual durante dez dias, ainda que destinada a seu exclusivo consumo?
A resposta a uma tal pergunta não pode deixar de ser negativa.
Na verdade, independentemente da admissibilidade de outros fundamentos para a punição da conduta em causa, mesmo atentos os riscos que essa detenção pode acarretar e a que acima se fez referência, não se afigura que o legislador, ao definir como ilícita a conduta de detenção, esteja a agir arbitrária ou desproporcionadamente. A posse, por alguém que para tanto não está licitamente autorizado, de uma quantidade de substâncias que excede aquela que serviria para, pelo mesmo, ser consumida durante um determinado período de tempo (que, note-se nem sequer se afigura como demasiado escasso - um terço de um mês), constitui (ou, ao menos, potencia) - por si e independentemente da falta de intenção do detentor de, ao detê-la, a oferecer, proporcionar, ceder, distribuir ou vender a terceiros, de a pôr à venda, distribuir, transportar ou transitar - um risco de essas mesmas substâncias assumirem a acessibilidade para algumas daquelas situações que se não incluíam ou incluem na vontade do agente.
E, justamente por isso, não se crê que a norma que preveja e puna a detenção nessas condições seja reveladora de um manifesto excesso relativamente ao perigo de lesão dos bens jurídicos que se querem proteger e que não justificariam a criminalização, o que vale por dizer que se não descortinam razões que possam levar a efetuar um juízo de censura do legislador penal fundado na desadequação ou desproporcionalidade.”
Daqui resulta que sempre se concluiria pela não inconstitucionalidade da terceira interpretação normativa a apreciar nos presentes autos, caso dela se pudesse conhecer, o que se reitera não é legalmente possível.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Notificado da decisão, o recorrente apresentou reclamação, nos termos que ora se resumem:
«Com o devido respeito não se concorda com tal douta decisão, razão pela qual se exerce o direito de reclamação para a conferência.
Cumpre desde logo referir que, parece resultar o cometimento de um lapso de centralizar a questão de análise do recurso pela delimitação levada a cabo pelo recorrente nos pontos I) a III) como se nada mais existisse e constituíssem tais questões o cerne único das questões de constitucionalidade a analisar.
Ora, tal não é correto e afigura-se redutor, uma vez que, como bem decorre de todo o corpo do requerimento de interposição de recurso, globalmente considerado, as concretas questões a decidir em termos de dimensão normativa aparecem de seguida, sendo tal introito unicamente a linha demarcativa em termos de generalização temática.
(…)
Da opção pela decisão sumária e (des)proporcionalidade
Primeiramente, e antes de mais, tecer unicamente umas singelas palavras sobre a decisão em sede de decisão sumária, prévia ao oferecimento de alegações.
Em modesto entender do signatário, trata-se de uma restrição desproporcionada dos direitos do recorrente, uma vez que, no presente processo, como é patente, não se mostra qualquer intuito dilatório nem se vislumbra qualquer interesse num retardar do processo.
Basta ver que a condenação se mostra em pena suspensa na sua execução, presidindo ao recurso apresentado unicamente o sentimento de injustiça e de disformidade face a um Direito penal justo e processualmente conforme.
Houvesse oportunidade de se ter oferecido alegações, como expressamente se manifestou tal intenção na penúltima página do requerimento de recurso, para efeitos de melhor corporalização dos fundamentos e razões inerentes ao mesmo, muito provavelmente teriam sido dissipadas as dúvidas e lapsos sobre as quais navega a douta decisão sumária…
Em alternativa ao uso de tal meio desproporcionado sempre poderia o Tribunal fazer uso da prerrogativa plasmada no nº. 5 do art. 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional por forma a que o recorrente suprisse qualquer eventual lacuna ou aperfeiçoasse o teor do requerimento.
Aquilo que se mostra sem mais vedado é a proferição de decisão sumária que constitui, in casu, verdadeira bomba atómica…
Em concreto, do mérito recursório
Pontos I) e II)
Seguindo a ordem pela qual foram suscitadas as questões em sede de recurso e pela qual foram analisadas, temos que relativamente à primeira delas encerra a douta decisão sumária proferida desde logo num lapso: desconsidera a expressa e precisa referência à douta acusação particular.
Na verdade, se é certo que ao nível da fundamentação e douta sentença proferida acabou por estar consagrado o destino (por exclusão e nunca expressamente!) a dar a tais plantas, onde ver tal referência ou alegação na douta acusação pública?!
E apenas em relação a esta se suscitou a questão, pois é a mesma totalmente omissa face a tal destino, fosse ele eventual ou concretizável, sendo certo que, tal como é notório e sobejamente conhecido, nada há de maior dificuldade que o combate ao inexistente.
A douta acusação pública não tece uma palavra ou frase sobre qual seria o intuito de tal cultivo e não se mostra admissível em Direito penal presunções de destino e ausência de consumo próprio.
Ou seja, não está em causa a questão da prova realizada ou do efetivo destino considerado pelo Tribunal, o que será tema da questão II), mas sim um estádio processual anterior.
(…)
Relativamente à questão II) o que importa agora é constatar que, à imagem da não alegação de tal factualidade em sede de douta acusação pública, igualmente o teor dos factos provados não consagra qual o destino a dar a tal produto estupefaciente.
Ou seja, se é certo que ao nível de fundamentação se tecem as considerações alvo de transcrição na douta decisão sumária proferida, não deixa de ser menos verdade que tal destino se não mostra alvo de qualquer dos factos ao nível da matéria de facto provada, constante das letras A a M da douta decisão condenatória proferida.
E não se pode confundir factos provados com fundamentação dos mesmos, pois em sede de acusação pública o arguido é unicamente confrontado com factualidade e não fundamentação, não se podendo defender desta em sede de contestação.
É a douta acusação pública que constitui objeto do processo e vincula o Tribunal em razão do princípio da vinculação temática a tal objeto.
O destino (necessariamente a não dedicação a consumo próprio!) sempre se mostrará elemento do tipo (ou quando muito uma condição objetiva de punibilidade em razão da descriminalização operada!) pelo que não sendo tal factualidade alegada existiria aquilo que se designa por ausência de preenchimento integral do mesmo!
Temos assim que aquilo que está em causa é o salto lógico dado pelo Tribunal, a radicar numa ausência de prova de uma factualidade que depois tem por assente, ainda que com dúvidas, como decorre expressamente do quinto parágrafo de fls. 9 e penúltimo parágrafo de fls. 11 de tal douta decisão de primeira instância.
(…)
Ponto III)
Acaba a douta decisão sumária por se centrar unicamente nos pontos delimitados pelo recorrente sem valorar depois as explicitações e concretas interpretações que se mostram no requerimento de recurso e que do mesmo fazem parte integrante, em termos que já motivaram a discordância supra.
Tal restrição/recorte, além de ilícita/o por ser contra o que ressalta do que se mostra escrito e vertido em tal peça processual, origina ainda que não sejam totalmente apreendidas as dimensões normativas, verdadeiro sangue recursório.
Em termos gerais o que se pretende ver analisado é a conformidade à Lei fundamental da antecipação significativa da tutela penal do crime de tráfico de estupefacientes, ainda que de menor gravidade, a suportar a condenação do arguido, atenta a inexistência de qualquer resultado concreto violador dos bens jurídicos.
(…)
De facto, basta vislumbrar que a fls. 6 in fine e 7 supra aparece consagrada uma expressa alegação de inconstitucionalidade de dimensão normativa, expressamente alegada perante o Tribunal recorrido, não se percebendo a douta decisão ao referir a não suscitação da questão…
A fls. 7 penúltimo parágrafo aparece uma expressa dimensão normativa com invocação de disformidade face à Lei fundamental e que igualmente radica unicamente na ideia de punibilidade por um suposto dolo de intenção e antecipação significativa da tutela penal.
Por forma a que V/ Exas. possam vislumbrar o alcance das mesmas e aquilatar do mérito da presente reclamação, deixa-se transcrito as passagens a que se refere o exponente, por referência ao requerimento de recurso de constitucionalidade:
“Tem-se assim por inconstitucional a interpretação segundo a qual nos termos e para os efeitos dos arts. 21º e 25º DL 15/93, poderá haver condenação por tráfico de estupefacientes, seja ele a título de crime base ou de menor gravidade, sem que resulte provada a prática de qualquer das ações aí tipificadas e, cumulativamente, o facto das substâncias se não destinarem ao consumo do arguido.
E sempre se terá por contrária à lei Fundamental a presunção, ao arrepio do princípio in dubio pro reo, de que a mera semeadura de plantas estupefacientes, acompanhada do abandono à sua sorte da mesma, que venha a produzir, sem qualquer intervenção do agente, quantidade substancialmente superior à correspondente a 10 doses diárias faça incorrer o autor do ato de semear, de forma automática e sem qualquer outra prova cabal e sustentada, de modo a suprir a dúvida razoável, na prática de um crime de tráfico de estupefacientes, ainda que de menor gravidade.
Sendo essa a essência do princípio da igualdade que não consiste em tratar tudo por igual sob pena de, por paradoxal que pareça, gerar manifesta e clara desigualdade, mas sim em tratar de forma igual o igual e de forma diferenciada o desigual, temos assim por violado tal princípio bem como os da dignidade humana, proporcionalidade, adequação e caráter de ultima ratio do Direito penal que assim ,in casu, se vê convocado quando a litigiosidade e danosidade material se mostra inexistente e a “justiça restauradora” uma realidade ao alcance do direito contraordenacional ou apenas confisco e posterior destruição de tais substâncias, sendo assim inconstitucional a punibilidade penal acrescida, pois tivesse-se o arguido resolvido dedicar à agricultura para consumo próprio, em virtude do cada vez maior aumento do preço de tais bens no mercado, teria merecido os maiores louvores públicos.
Tal qual se mostram descritos na douta acusação pública, desacompanhados do destino das substâncias, os factos não têm dignidade jurídica suficiente a colocar nos carris e em circulação as pesadas, custosas e morosas locomotivas do Direito penal, sendo inconstitucional tal norma sempre e quando interpretada no sentido de não se ter de avaliar e ponderar em conjunto todo o circunstancialismo de prática dos factos e personalidade do agente, trabalho a cargo do Tribunal no âmbito do princípio do inquisitório e poderes que lhe assistem, para efeito de avaliação de especial censurabilidade que justifique punição a título de crime, atenta a esterilidade que efetivamente se veio a verificar (como o sempre seria pois nunca sairia da esfera do agente) em termos de resultado, havendo zero de conduta ilícita: nenhuma parte foi vendida, doada, cedida, consumida, etc etc etc uma vez que foi tudo apreendido pelas autoridades quando o arguido se não mostrava sequer em Portugal e tinha abandonado tal semeadura.
Tem-se por inconstitucional a presunção de culpabilidade, ao arrepio do princípio in dubeo pro reo, de que a mera posse ou qualquer outro facto tipificado na lei como crime, de qualquer quantidade de droga superior à correspondente a 10 doses diárias faça incorrer o agente, de forma automática e sem qualquer outra prova cabal e sustentada, de modo a suprir a dúvida razoável, na prática de tal crime de tráfico, o qual atenta a moldura penal não admite dispensa de pena, convocando-se o exemplo do trabalhador em plataforma petrolífera, que seja consumidor, para se ver a perniciosidade de tal entendimento.”
E dúvidas inexistem que tais questões correspondem, se não expressis verbis pelo menos, em termos adequadamente similares, ao que foi expressamente consagrado no recurso interposto perante o Venerando Tribunal da relação de Coimbra, quer em sede de motivação quer de conclusões apresentadas, como ressalta inequívoca e cristalinamente, da confrontação com o mesmo.
Não se percebe assim como ter por não suscitadas adequadamente tais questões perante o Venerando Tribunal de recurso…
Por outro lado, tem-se dificuldades em percecionar a justeza de pretender ver na conclusão X do recurso apresentado da douta decisão de primeira instância, conforme fls. 4, 3º parágrafo, da douta decisão sumária proferida, a pressuposição de que todos os ilícitos típicos penais descrevem “crimes de resultado”.
É o teor de tal conclusão preciso ao apontar expressamente para a “condenação por tráfico de estupefacientes” e não qualquer outro tipo legal de crime ou todos os demais.
A antecipação de tal interpretação normativa, no tocante à configuração do crime como de perigo abstrato, mostra-se levada a cabo, pelo que se entende que nada obsta ao conhecimento do recurso.
Ademais, a “mera exaustação de fundamentação” vertida em seguida, não se mostra aplicável aos presentes autos por aí se tratar de efetiva detenção de produto estupefaciente e no presente caso estar em causa o cultivo de plantas que nunca foram sequer colhidas, muito em virtude pela ausência e emigração do arguido…
Sob pena de violação do princípio da igualdade, não se podem ter por válidas a respeito do cultivo de plantas considerações sobre a posse concreta de produto estupefaciente.
Assim, sem ofensa da Constituição da República Portuguesa e direitos e garantias por ela tutelados, onde ver a prática de um crime de tráfico de estupefacientes?!
(…)
Destarte,
requer-se, mui humilde e respeitosamente a V/ Exas., a procedência da presente reclamação e o consequente conhecimento do objeto do recurso interposto, assim se revogando a douta decisão sumária proferida, sendo a mesma substituída pelo convite a apresentar alegações uma vez que nada impõe (nem permite formular juízo pré-decisório!) que se não possa conhecer do objeto do recurso.»
3. Devidamente notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou a seguinte resposta à reclamação:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 58/2013, não se conheceu do objeto do recurso no respeitante às três questões de constitucionalidade que o recorrente identificava no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional.
2º
Quanto às duas primeiras questões, que na decisão se considerou – e bem – que confluíam no mesmo sentido normativo, parece-nos claro que a decisão recorrida – o Acórdão da Relação de Coimbra que negou provimento ao recurso – não aplicou “enquanto critério determinante do seu juízo condenatório, qualquer dessas interpretações normativas”.
3º
Efetivamente, tendo-se considerado provado que as substâncias estupefacientes não se destinavam ao consumo, o comportamento do arguido era subsumível à previsão constante dos artigos 21.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, não sendo necessária qualquer outra prova quanto ao destino do produto, dado tratar-se de um crime de “perigo abstrato”, que é a questão essencial que vem colocada e que o recorrente refere na terceira questão de inconstitucionalidade que identificou.
4º
No entanto, quanto a tratar-se de um crime de “perigo abstrato”, na verdade, o recorrente, na motivação do recurso para a Relação, não suscita a questão da inconstitucionalidade de forma clara e adequada, enredando-se em considerações que desvirtuam essa enunciação.
5.º
Na reclamação da Decisão Sumária, o recorrente, para demonstrar que suscitou a questão, transcreve parte do que afirmou no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional.
6.º
Ora, tendo-se concluído pela falta de suscitação prévia e adequada da questão, ao recorrente cabia demonstrar que no momento processual próprio e adequado – a motivação do recurso para a Relação – procedera a essa suscitação, o que não fez, como se viu.
7.º
Por outro lado, quanto a tratar-se de uma questão simples porque já decidida pelo Tribunal Constitucional, o recorrente nada disse.
8.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Tudo visto, importa apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Ao contrário do que o reclamante aparenta sugerir, não lhe cabe a si – nem a nenhum outro recorrente – um qualquer direito subjetivo à exposição de alegações escritas perante este Tribunal. Pelo contrário, em escrupuloso respeito pelo “direito fundamental de acesso à Justiça Constitucional” – de que gozam todos os outros potenciais interessados em recorrer ao Tribunal Constitucional – e do“princípio da celeridade processual” – que poderia ficar comprometido, caso todos os recursos interpostos perante ele viessem a dar lugar à apreciação de alegações escritas –, o legislador determinou, na lei processual que rege a tramitação dos recursos de constitucionalidade, a possibilidade de prolação de decisões sumárias, quando haja preterição de requisitos legalmente fixados ou quando a questão a decidir se revista de simplicidade (cfr. artigo 78º-A, da LTC).
A jurisprudência consolidada neste Tribunal já teve oportunidade de apreciar e decidir acerca da alegada inconstitucionalidade de tal mecanismo processual, designadamente por alegada violação do “princípio da proporcionalidade” (cfr. Acórdãos n.º 80/99, n.º 550/99, n.º 223/2001, n.º 456/2002, n.º 402/2005, n.º 283/2006 e n.º 530/2007, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), tendo sempre concluído em sentido negativo, na medida em que não só se acautelam outros bens jurídicos constitucionalmente protegidos, como tais decisões sumárias são passíveis de reclamação para a conferência, como, aliás, sucede precisamente nos presentes autos.
5. Passemos, então, às razões de fundo da reclamação deduzida.
Conforme já demonstrado pela decisão recorrida, quanto aos §§ I) e II) do objeto do presente recurso, ao contrário do sustentado pelo ora reclamante, a decisão recorrida, mediante confirmação do juízo da primeira instância, deu por provado, com base nas regras de experiência comum, que a elevadíssima quantidade apreendida de plantas contendo substâncias proibidas não permita qualificá-las como destinadas a consumo próprio:
“Por outro lado, demonstrou-se que tais plantas tinham um peso líquido de 2.960,846 e capacidade para gerar 676 doses diárias, em função da quantidade média correspondente ao consumo diário individual, concluindo-se ainda que o arguido adotou tais comportamentos de forma livre, voluntária e consciente.
Com base em tais factos e conjugando-os com as regras da experiência comum, já se avançou em sede de motivação dos factos que não é crível que o arguido destinasse tais substâncias unicamente ao seu consumo, o que voltamos aqui a deixar claro”.
Ora, tratando-se de um crime de perigo abstrato, mais não restaria por provar, salvo a detenção das substâncias geradores desse mesmo perigo. Portanto, nenhuma das interpretações normativas identificadas nos §§ I) e II) corresponde às interpretações normativas efetivamente aplicadas pela decisão recorrida.
Quanto à interpretação normativa constante do § III), corrobora-se o entendimento da decisão reclamada, no sentido de que não houve suscitação processualmente adequada da questão que se pretende ver agora apreciada por este Tribunal. Aliás, é disso sintomático o facto de o ora reclamante ter vindo, em sede de reclamação, transcrever excertos do requerimento de interposição de recurso para justificar uma alegada suscitação adequada de tal questão. Ora, como é por demais evidente, essa suscitação adequada deveria ter ocorrido perante o Tribunal da Relação de Coimbra, o que, manifestamente, não sucedeu. Pelo contrário, o ora reclamante limitou-se a esboçar uma invocação genérica e relativamente desconexa de princípios constitucionais (cfr. § X das conclusões, a fls. 278), sem que os tivesse relacionado com a específica interpretação normativa que pretende agora ver sindicada.
Por fim, quanto à pré-existência de jurisprudência consolidada neste Tribunal a propósito da não inconstitucionalidade de normas que preveem “crimes de perigo abstrato” – e, em especial, o crime de tráfico de estupefacientes –, não releva a circunstância de o Acórdão n.º 295/2003, ter incidido sobre um caso de detenção de produto estupefaciente e de, no presente caso, se tratar – de acordo com a perspetiva do reclamante – de um mero caso de “cultivo de plantas que nunca foram sequer colhidas”. Com efeito, o tipo de crime “tráfico de estupefacientes”, previsto e punido pelo artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, inclui enquanto seus elementos típicos tanto a detenção ilícita, como o mero cultivo – e isto, ainda que estas não tenham sido colhidas. Por conseguinte, as conclusões extraídas daquele acórdão, que pressupõe a qualificação do crime como “crime de perigo abstrato” são, obvia e integralmente, transponíveis para o caso ora em apreço.
III – DECISÃO
Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 20 de março de 2013. – Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.