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Processo n.º 917/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo Sul recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), do acórdão proferido naquele tribunal e que recusou, com fundamento no princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, a aplicação dos artigos 11.º, n.ºs 4 e 6, e 15.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 42/2012, de 22 de fevereiro.
2. Os recorridos eram todos, no ano letivo de 2011/2012, alunos do ensino recorrente, detentores e não detentores do ensino secundário, inscritos nos termos do Decreto-lei n.º 74/2004, de 26 de março. Face à alteração introduzida nesse mesmo diploma pelo Decreto-lei n.º 42/2012, de 22 de fevereiro, que modificou as regras de avaliação e de certificação dos cursos, intentaram processo urgente de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, nos termos dos artigos 109.º a 111.º, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA). A sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou procedente a ação intentada, concluindo que os (então) autores “porque se inscreveram no ensino secundário recorrente ao abrigo do DL n.º 74/2004 detinham uma confiança legítima, expectativas fundadas de que o regime, no que respeita em concreto às regras de avaliação e de certificação, se mantivessem até que concluíssem o curso e acedessem ao ensino superior. A alteração do regime legal quando já tinham decorrido quatro meses do ano letivo de 2011/2012 torna muito difícil a sua preparação para a frequência de exames nacionais, até então não previstos, e mesmo impossível a alteração das avaliações conseguidas no ensino recorrente em anos letivos anteriores”.
Inconformado com tal desfecho, o Ministério da Educação e do Ensino Superior interpôs recurso para o TCA Sul, o qual, em acórdão com data de 8 de novembro de 2012, confirmou a decisão da primeira instância, pronunciando-se sobre o caso nos seguintes termos:
«(...)
Invoca também o recorrente que, ao contrário do que entendeu a sentença recorrida, as alterações introduzidas pelo DL n.º 42/2012 não operaram retroactivamente, pelo que não se verificava a violação do princípio da confiança.
Vejamos.
O princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art. 2.º da CRP, postula uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da continuidade da ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas, pelo que a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar terá de ser entendida como não consentida pela Constituição (cfr., entre muitos, o Ac. do TC n.º 303/90 in BMJ 401.º-139).
Efetivamente – escreveu-se no Ac. do TC n.º 17/84 (in “Acórdãos do tribunal constitucional”, 2.º vol., p. 375), “o cidadão deve poder prever as intervenções que o Estado poderá levar a cabo sobre ele ou perante ele e preparar-se para se adequar a elas. Ele deve poder confiar em que a sua atuação de acordo com o direito seja reconhecida pela ordem jurídica (...).
Esta confiança é violada sempre que o legislador ligue a situações de facto constituídas e desenvolvidas no passado consequências jurídicas mais desfavoráveis do que aquelas com que o atingido podia e devia contar. Um tal procedimento legislativo afrontará frontalmente o princípio do Estado de direito democrático.”
É inadmissível a afetação das expectativas em sentido desfavorável” quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas constantes não possam contar” e “quando não foi ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão” – cfr. Ac. n.º 302/90, in BMJ 401.º-130.
No caso em apreço, quando os requerentes se inscreveram para o ano letivo de 2011/2012 no ensino recorrente estava em vigor um regime jurídico já relativamente estabilizado (desde 2006), onde não lhes era exigida a realização de exames finais nacionais.
Em 22/2/2012, foi publicado o DL n.º 42/2012 que deu uma nova redação ao art. 11.º, n.º 6, do DL n.º 74/2004, de 26/03, nos termos do qual passou a ser obrigatória a realização de exames finais nacionais para os alunos que pretendessem prosseguir estudos no ensino superior.
Assim, a meio do ano letivo de 2011/2012, passou a exigir-se aos alunos que se haviam inscrito no ensino recorrente a realização de exames finais nacionais cuja classificação seria atendida nos concursos de acesso ao ensino superior.
Ora, a não criação de um regime transitório para os alunos que já tinham iniciado o seu percurso académico ao abrigo do regime anterior e que não tinham gerido o seu tempo na perspetiva da realização dos referidos exames viola o princípio da confiança, ínsito no Estado de Direito democrático, quando não existe qualquer interesse público que justifique a aplicação imediata da nova redação introduzida pelo DL n.º 42/2012 quando o anterior regime vigorava desde 2006 (cfr. além dos vários Acs. Citados na decisão recorrida o do TCAS de 23/11/2011 – Proc. n.º 8139/11 e do STA de 13/7/2011 – Procs. n.ºs 345/11 e 428/11).
Nestes termos, e com fundamento em inconstitucionalidade, teria a sentença recorrida que recusar a aplicação do aludido novo regime aos ora recorridos.
Refira-se, finalmente, que não se vê que a sentença seja de impossível execução, como alega o recorrente, pois a inconstitucionalidade do novo regime, com a consequente sua desaplicação, implicará a aplicação do regime que aquela revogara.
(...)»
Seguiu-se o recurso de constitucionalidade obrigatório por parte do Ministério Público, nos termos do artigo 280.º, n.º 3, da CRP, e do artigo 72.º, n.º 2, da LTC. Notificados para o efeito, os recorridos produziram as seguintes alegações:
«(...)
A. e Outros, recorridos nos autos à margem melhor identificados, notificados da apresentação de recurso pelo Ministério Público, vem apresentar as suas:
ALEGAÇÕES
O que fazem nos termos e com os fundamentos que seguem
As alegações apresentadas pelo digmº magistrado do Ministério Público corroboram a tese evidenciada pelos recorridos, dando assim razão à decisão recorrida.
Não podiam pois os recorridos estar mais de acordo com a melhor posição do recorrente, que reconhece in integrum a razão peticionada e já evidenciada pela douta decisão recorrida.
É pois por demais evidente que as normas constantes dos artigos 11º, nº 4 e 6, e 15º, nº 5 do decreto-lei 74/2004, de 26 de março, na redação introduzida pelo decreto-lei nº 42/2012, de 22 de fevereiro, infringem o “princípio da confiança” inerente à cláusula do “Estado de Direito” consagrado no artigo 2º da Constituição, sendo assim materialmente inconstitucionais.
Isto porquanto não curou o legislador do regime transitório das normas ora postas em crise.
Desta sorte, o recorrido faz suas as doutas alegações produzidas pelo Ministério Público recorrente nos presentes autos e, sem necessidade de mais, formula as seguintes:
CONCLUSÕES
I. As normas dos artigos 11º, nº 4 e 6 e 15º, nº 5 do DL 74/2004, de 26 de março, na redação introduzida pelo DL 42/2012, de 22 de fevereiro, violam o princípio constitucional da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2º da CRP
II. Efetivamente, as normas vindas de referir materializam uma retrospetividade altamente desfavorável aos alunos do ensino recorrente, autores nos presentes autos.
III. Desde logo por terem fixado sujeitos a exames que de outra forma não teriam de fazer, e que não contavam de forma alguma ter de realizar, atento a estabilidade das normas alteradas pelo DL 42/2012 que perdurava há mais de seis anos.
IV. Por outro lado, o percurso académico dos autores foi traçado muito antes de entrada em vigor das alterações introduzidas pelo DL 42/2012, escolhas que hoje se mostram irreversíveis e que não se coadunam com os exames nacionais que o Ministério da Educação pretende estes realizem
V. Por outro lado, mal se entende, à luz dos princípios já enunciados que o diploma legal aqui trazido à liça não tenha curado dum regime transitório que salvaguardasse a posição dos aqui recorridos, que pelo menos de forma sensata curasse da transição coerente, cadenciada entre os regimes em equação.
VI. É pois evidente que as normas constantes dos artigos 11º, nº 4 e 6, e 15º, nº 5 do decreto-lei 74/2004, de 26 de março, na redação introduzida pelo decreto-lei nº 42/2012, de 22 de fevereiro, infringem o “princípio da confiança” inerente à cláusula do “Estado de Direito” consagrado no artigo 2º da Constituição, sendo assim materialmente inconstitucionais.
(...)»
Já o Ministério Público emitiu parecer com o seguinte teor:
«(...)
1.ª) O Ministério Público interpôs recurso, obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do Acórdão de fls. 704 a 712, dos autos de processo n.º 9271/12, 2.º juízo – 1.ª secção, do TCA Sul (Recurso jurisdicional – CPTA), que “negando provimento ao recurso jurisdicional, e confirmando a sentença recorrida, recusou aplicar as normas dos artigos 11.º, n.ºs 4 e 6, e 15.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 42/2012, de 22 de fevereiro, com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação do princípio constitucional da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsito ao princípio de Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição”.
2.ª) Na verdade, os efeitos das normas constantes dos identificados preceitos referidos materializam um tipo de retrospetividade que é de qualificar como “desfavorável”, ao menos para os alunos do ensino recorrente que, no termo do ano letivo de 2011/2012, pretendiam prosseguir estudos no ensino superior, por diversas ordens de razões.
3.ª) Primeiramente, por força da lei nova, os ditos alunos ficaram imediatamente e incondicionalmente sujeitos à realização de exames finais nacionais, a prestar pouco mais de quatro meses depois de ter entrado em vigor a lei nova, um lapso de tempo que, à luz da experiência comum, poderá revelar-se insuficiente para permitir que se apresentem a exame devidamente preparados.
4.ª) Por outra parte, tal exigência resulta de uma substancial inflexão de um regime jurídico que o legislador fez perdurar, continuadamente, durante seis anos, criando, objetivamente, uma estabilização de expectativas nesse domínio.
5.ª) Finalmente, os planos do percurso académico e a opção por algumas das disciplinas que o compõem, resulta, no caso dos AA. na ação administrativa, de escolhas realizadas bem antes da entrada em vigor da lei nova, sendo certo que tais escolhas são irreversíveis, no sentido em que já não podem ser modificadas ou sequer adaptadas, para entrar em linha de conta com o elenco de disciplinas que, nos termos da lei nova, integram o conteúdo dos exames finais nacionais, muito em particular quanto às disciplinas que poderiam ter sido objeto de opção pelos alunos.
6.ª) Finalmente, não parece absolutamente imperativo que o interesse público, prosseguido pela lei nova, tendente a promover a equidade no acesso ao ensino superior, exija a sua aplicação imediata e, mais a mais, sem a edição de uma disciplina transitória, que permitisse uma transição harmoniosa e praticável entre os regimes em causa.
7.ª) Assim, as normas constantes dos artigos 11.º, n.ºs 4 e 6, e 15.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 42/2012, de 22 de fevereiro, infringem o “princípio da confiança” inerente à cláusula do “Estado de direito” consagrado no artigo 2.º da Constituição e, portanto, são materialmente inconstitucionais.
O Ministério da Educação e da Ciência, por seu turno, exerceu o contraditório nos seguintes termos:
«(...)
VI. Conclusões
147.º
No plano do direito constitucional, são várias as objeções do Ministério da Educação e Ciência ao Acórdão que motivou o presente recurso, que assim se sintetizam:
1) A jurisdição administrativa não é competente para o julgamento do presente litígio, por não ser este um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, nos termos do artigo 212.º, n.º 3, d CRP.
2) Este litígio não opõe os Autores à Administração mas ao próprio Legislador, uma vez que a lesão que alegam existir não tem como causa uma atuação, material ou jurídica (concreta ou normativa), ou uma omissão do Ministério da Educação e Ciência, eventualmente lesivas de uma posição jurídica subjetiva, mas um diploma legal - o Decreto-Lei n.º 42/2012 -, a cuja autoridade formal não se sobrepõe a autoria moral do mesmo.
3) Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo procedeu a um controlo da constitucionalidade das normas do Decreto-Lei n.º 42/2012 que só na aparência é concreto, já que o que verdadeiramente é submetido a julgamento é a lei, não sendo, por isso, a inconstitucionalidade que lhe é imputada um incidente no processo, mas o seu próprio objeto.
4) O Tribunal a quo invadiu assim a função legislativa e pôs em causa a liberdade de conformação do legislador e o poder de autorrevisibilidade das leis, decorrentes do princípio democrático.
5) Não está em causa um direito, liberdade ou garantia dos Autores, mas tão-só a expectativa de beneficiarem de um regime de acesso ao ensino superior que lhes confere uma vantagem competitiva, pelo que é desadequada e desproporcional a tutela que reclamam.
6) No pressuposto, que se considera falso, de a jurisdição administrativa ser competente, o Tribunal a quo deixou-se impressionar pela incerteza em que os Autores ficariam caso tivessem optado pela tutela cautelar, atendendo à previsível morosidade na decisão da ação principal, razão por que aliviou a exigência dos pressupostos da ação de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, abrindo-a indevidamente à tutela de expectativas de baixa juridicidade.
7) Tão-pouco pode considerar-se violado o princípio da proteção da confiança, porquanto a expectativa dos Autores não se refere a um bem jurídico, muito menos dotado de dignidade constitucional, mas à possibilidade de se candidatarem ao ensino superior apenas com a nota interna obtida no ensino recorrente, sem a necessidade de realizar exames finais nacionais.
8) Ora, decorre da jurisprudência constitucional que princípio da proteção da confiança não acomoda toda e qualquer expectativa, nem seguramente acolhe a expectativa de quem reclama um tratamento de exceção que implique discriminação negativa de outros sujeitos.
O Ministério da Educação e Ciência considera, assim, que não existe fundamento para a declaração de inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei n.º 42/2012.
(...)».
II. Fundamentação
3. As normas desaplicadas com fundamento em inconstitucionalidade – os artigos 11.º, n.ºs 4 e 6, e 15.º, n.º 5, na versão introduzida pelo Decreto-lei n.º 42/2012, de 22 de fevereiro – têm a seguinte redação:
«(...)
Artigo 11.º
(...)
4 – A avaliação sumativa externa realiza-se no ano terminal da respetiva disciplina e aplica-se aos alunos dos cursos científico-humanísticos, excluindo os do ensino recorrente, nos termos seguintes:
a) Na disciplina de português da componente de formação geral;
b) Na disciplina trienal da componente de formação específica;
c) Em duas disciplinas bienais da componente de formação específica, ou numa das disciplinas bienais da componente de formação específica e na disciplina de filosofia da componente de formação geral, de acordo com a opção do aluno.
5 – (revogado)
6 – Os alunos dos cursos científico-humanísticos de ensino recorrente que pretendam prosseguir estudos no ensino superior ficam igualmente sujeitos à avaliação sumativa externa, nos termos do n.º 4.
(...)
Artigo 15.º
(...)
3 – A certificação da conclusão dos cursos científico-humanísticos, excluindo os de ensino recorrente, está dependente da realização, com caráter obrigatório, de exames finais nacionais sujeitas à modalidade sumativa externa.
4 – Para a certificação da conclusão de um curso profissional, tecnológico e artístico especializado nos domínios das artes visuais e dos audiovisuais, bem como de um curso de ensino recorrente, não é considerada a realização de exames finais nacionais.
5 – No caso de um aluno que, previamente, haja concluído um curso secundário regulado pelas Portarias n.ºs 550-A/2004, 550-B/2004, 550-C/2004 e 550-D/2004, todas de 21 de maio, nas suas redações atuais, ingressando, em ano letivo posterior, em curso científico-humanístico de ensino recorrente, a classificação final do ensino secundário a considerar para efeitos de prosseguimento de estudos resulta da avaliação sumativa externa realizada no ano terminal:
a) Na disciplina de Português da componente de formação geral;
b) Na disciplina trienal da componente de formação específica;
c) Em duas disciplinas bienais da componente de formação específica, ou numa das disciplinas bienais da componente de formação específica e na disciplina de Filosofia da componente de formação geral, de acordo com a opção do aluno.
6 — O aluno que, por via do disposto no número anterior, fique com a classificação final de ensino secundário recorrente indexada às classificações dos exames finais nacionais não perde o direito de usar a classificação final que obteve no curso de origem, nomeadamente para efeitos de prosseguimento de estudos, de acordo com regime de avaliação previsto nas Portarias n.ºs 550-A/2004, 550-B/2004, 550-C/2004 e 550-D/2004, de 21 de maio, nas suas redações atuais.
(...)»
Ora, estando em causa uma situação de possível lesão da confiança dos alunos do ensino recorrente na manutenção do regime jurídico anterior às alterações produzidas em 2012, é mister recuperar tal regime, por forma a apurar o calibre e as repercussões daquelas alterações. Assim sendo, o ensino recorrente era matéria disciplinada no Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março, que enunciava, no n.º 2 do artigo 5.º, que esta modalidade de ensino pretendia proporcionar aos respetivos alunos uma segunda oportunidade de formação, no sentido de lhes permitir conciliar a frequência de estudos com uma atividade profissional. Para o efeito, instituíam-se três tipos de cursos no ensino recorrente: os cursos científico- humanísticos, os cursos tecnológicos e os cursos artísticos especializados. O quadro normativo do ensino recorrente seria alterado pelo Decreto-lei n.º 24/2006, de 6 de fevereiro, que, atendendo às suas especificidades, ditaria “o afastamento da obrigatoriedade da realização de exames nacionais nos cursos tecnológicos e artísticos especializados profissionalmente qualificantes e a alteração do processo de avaliação sumativa externa dos cursos científico-humanísticos, de molde a valorizar a respetiva componente nuclear” (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 24/2006, de 6 de fevereiro).
Destarte, a redação do artigo 11.º, n.ºs 4 e 5, bem como do artigo 15.º, n.º 5, passou a ser a que de seguida se dá conta:
«(...)
Artigo 11.º
1. A avaliação sumativa consiste na formulação de um juízo globalizante, tem como objetivos a classificação e a certificação e inclui:
a) A avaliação sumativa interna, da responsabilidade dos professores e dos órgãos de gestão pedagógica da escola;
b) A avaliação sumativa externa, da responsabilidade dos competentes serviços centrais do Ministério da Educação, concretizada na realização de exames finais nacionais.
4 – A avaliação sumativa externa realiza-se no ano terminal da respetiva disciplina e aplica-se aos alunos dos cursos científico-humanísticos, excluindo os do ensino recorrente, nos termos seguintes:
a) Na disciplina de português da componente de formação geral;
b) Na disciplina trienal e nas duas disciplinas bienais da componente de formação específica;
5 – (Revogado)
(...)
Artigo 15.º
Certificação
1 – A conclusão de um curso do nível secundário de educação é certificada através da emissão dos respetivos diplomas e certificado.
2 – É emitido certificado de qualificação profissional de nível 3 aos alunos que concluam:
a) Curso tecnológico, incluindo de ensino recorrente;
b) Curso artístico especializado, em função da área artística, incluindo de ensino recorrente;
c) Curso profissional;
3 – Para a certificação da conclusão de um curso de um curso tecnológico, artístico especializado profissionalmente qualificante ou do ensino recorrente, não é considerada, em caso algum, a realização de exames nacionais.
(...)
8 – A certificação dos cursos de nível secundário de educação não dispensa o aluno, para efeitos de candidatura ao ensino superior, do cumprimento dos respetivos requisitos a que estiver sujeito.”
(...)»
Daqui decorre, portanto, que desde 2006 até às alterações promovidas pelas normas em crise, um aluno que frequentasse um curso científico-humanístico do ensino recorrente não estava sujeito a avaliação sumativa externa – leia-se, a avaliação realizada através de exames finais nacionais - a nenhuma das disciplinas do seu plano curricular. Vale por dizer que a certificação dos cursos de nível secundário do ensino recorrente não estava sujeita à realização de exames nacionais, o que, como é bom de ver, não dispensava os respetivos alunos, caso estivessem interessados em prosseguir os estudos no ensino superior, do cumprimento dos requisitos a que essa candidatura se achasse sujeita, como, por exemplo, a realização de exames nacionais à ou às provas de ingresso consideradas pertinentes pela instituição de ensino superior visada. É isto que resulta da leitura conjugada dos artigos 11.º, n.º 4 e 15.º, n.ºs 3 e 8, do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março, na redação que lhes deu o Decreto-lei n.º 24/2006, de 6 de fevereiro. Cotejando este quadro normativo com o que emerge das alterações produzidas pelo Decreto-lei n.º 42/2012, concluímos que, ao abrigo do novo regime, um aluno que frequente um curso científico-humanístico do ensino recorrente no ano letivo de 2011/2012 e que pretenda prosseguir os estudos no ensino superior terá de sujeitar-se à realização de exames nacionais, não apenas às provas de ingresso instituídas por cada instituição de ensino superior, mas às disciplinas que constam das alíneas a), b), e c), do n.º 4, do artigo 11.º, na sua atual redação.
Também a fórmula de cálculo da classificação final sofre alterações. Com efeito, a classificação final do ensino secundário de um aluno que haja concluído um curso de ensino secundário regulado pelas Portarias n.ºs 550-A/2004 (cursos tecnológicos), 550-B/2004 (cursos artísticos), 550-C/2004 (cursos profissionais) e 550-D/2004 (cursos científico-humanísticos), e que no ano subsequente ingresse em curso científico-humanístico do ensino recorrente, passa a ser apurada, para efeitos de candidatura ao ensino superior, a partir das classificações obtidas nos exames nacionais realizados no ano terminal, não se levando em conta a avaliação sumativa interna (cfr. o n.º 5, do artigo 15.º, do Decreto-lei n.º 74/2004, na redação dada pelo Decreto-lei n.º 42/2012). O n.º 6 do artigo 15.º prevê que o aluno mencionado supra não perde o direito de usar a classificação final que obteve no curso de origem – leia-se, no curso de ensino secundário não recorrente que já frequentou e concluiu – para efeitos de prosseguimento dos estudos no ensino superior. A leitura do preâmbulo do Decreto-lei n.º 42/2012, de 22 de fevereiro, clarifica, porventura, a intenção subjacente às modificações na fórmula de cálculo:
«(...)
Importa, pois, distinguir, claramente, a situação dos alunos dos cursos científico-humanísticos de ensino recorrente que, não sendo ainda detentores de certificação do ensino secundário, pretendam vir a prosseguir os seus estudos, daqueles que, sendo já detentores de certificação do ensino secundário, se matricularam em cursos científico-humanísticos do ensino recorrente, após a conclusão de um curso de ensino secundário, com o objetivo de garantirem uma melhoria da sua classificação de acesso ao ensino superior.
Para os primeiros, a classificação final do ensino secundário para efeitos de prosseguimento de estudos resulta da avaliação sumativa interna e da classificação dos exames nacionais na disciplina da componente de formação geral e nas disciplinas da componente de formação específica. Para os alunos que se matricularam em cursos científico-humanísticos do ensino recorrente após a conclusão de um curso de ensino secundário, a classificação final do ensino secundário para efeitos de prosseguimento de estudos resulta apenas da classificação dos exames nacionais na disciplina da componente de formação geral e nas disciplinas da componente de formação específica, não se levando em consideração a avaliação sumativa interna.
Não obstante, os alunos que se matricularam em cursos científico-humanísticos do ensino recorrente após a conclusão de um curso de ensino secundário, poderão, no acesso ao ensino superior, optar entre duas possibilidades: a classificação final do ensino secundário obtida em ano anterior e a classificação final do ensino secundário obtida no ano em curso, decorrente dos resultados dos exames nacionais na disciplina da componente de formação geral e nas disciplinas da componente de formação específica.
(...)»
O relevo das alterações legislativas descritas supra não é negligenciável, visto que torna mais exigente o regime de acesso ao ensino superior por parte dos alunos que frequentem um curso científico-humanístico do ensino recorrente e, em particular, para aqueles que, antes da frequência de um tal curso, já houvessem concluído um curso do ensino secundário não recorrente. Aqueles de entre estes alunos que estivessem em condições de se candidatar ao ensino superior no concurso de 2012 veem, em fevereiro – portanto, já no segundo trimestre do ano letivo de 2011/12 - a sua situação substancialmente revista, pois a sua candidatura àquele nível de ensino passa a estar dependente da realização de mais exames nacionais, dependendo a classificação final do ensino secundário, já não apenas da avaliação sumativa interna a uma série de disciplinas, mas também da avaliação sumativa externa apurada a partir daqueles exames.
Porém, tampouco restam dúvidas relativamente à premência do interesse público inerente às normas impugnadas, talqualmente evidenciado pelo preâmbulo do Decreto-lei n.º 42/2012. Aí pode detetar-se, com efeito, um escopo premente no sentido de “restaurar a matriz enformadora dos cursos científico-humanísticos de ensino recorrente”, e de reproduzir no regime jurídico deste a distinção entre aqueles alunos que pretendem uma “mera certificação do ensino secundário” daqueles que “visam o prosseguimento dos estudos” através do acesso ao ensino superior.
As normas em crise – os artigos 11.º, n.ºs 4 e 6 e 15.º, n.º 5 – são, pois, normas retrospetivas, isto é, normas que afetam situações constituídas no passado e que continuam em formação na vigência da lei nova. Isto é assim porque a candidatura ao ensino superior é um processo de formação contínua, pelo que as normas visadas vêm, no fundo, afetar ou condicionar um processo ainda não concluído, cujas bases ou pressupostos se iniciaram em momento anterior à respetiva entrada em vigor (v., entre outros, o Acórdão n.º 399/2010, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, fora dos casos de retroatividade proibida expressamente previstos na Constituição, o juízo-ponderação de que o Tribunal Constitucional vem lançando mão para apreciar as restantes situações potencialmente lesivas do princípio da segurança jurídica assenta no pressuposto de que o princípio do Estado de Direito contido no artigo 2.º da CRP implica “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”. Neste sentido, “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança (...), terá de ser entendida como não consentida pela lei básica” (cfr. Acórdão n.º 556/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Tudo está em saber, portanto, em que circunstâncias a afetação da confiança dos cidadãos deve ser considerada “inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa”, sendo sobejamente conhecidos os critérios que a jurisprudência constitucional estabilizou a este propósito (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 287/90, 303/90 e 399/10, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não pudessem contar (i); e quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes, o que remete para uma ponderação a efetuar nos termos do princípio da proibição do excesso (ii).
Por outras palavras, a conclusão pela inadmissibilidade de uma medida legislativa à luz do princípio da proteção da confiança dependerá, em primeiro lugar, de um juízo sobre a legitimidade das expectativas dos cidadãos visados, que deverão ser fundadas em boas razões, e cuja consistência carece, de acordo com a jurisprudência constitucional, da exteriorização de uma conduta estadual concludente e apta a gerar expectativas de continuidade, por um lado, e da materialização ou tradução em atos (“planos de vida”) da confiança psicológica dos particulares, por outro.
Comprovada essa legitimidade, segue-se, em segundo lugar, um juízo quanto à prevalência do interesse público subjacente à medida sobre o interesse individual (a expectativa legítima) sacrificado pela mesma (cfr. Acórdão n.º 556/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Mesmo quando as alterações legislativas evidenciem aquela prevalência, é ainda necessário apurar se a afetação da confiança assim implicada não é desrazoável ou excessiva, ou seja, “se o fim do legislador podia ser alcançado por via menos agressiva da confiança e dos interesses dos particulares – por exemplo, através da previsão de disposições transitórias ou indemnizatórias” (Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2011, p. 269).
4. Cumpre transpor as considerações excogitadas para o caso vertente. Ora, é certo que, como aliás é sublinhado pelo tribunal recorrido, o legislador vinha dotando a normação aplicável ao ensino recorrente de alguma estabilidade, para isso contribuindo a não promoção de alterações legislativas num período compreendido entre 2006 e 2012. No entanto, os alunos agora afetados – e neste grupo incluem-se todos aqueles que não perspetivem o ensino recorrente com um desiderato de “mera certificação do ensino secundário”, sejam ou não já detentores dessa certificação – vinham beneficiando de um regime de privilégio injustificado relativamente aos alunos dos cursos científico-humanísticos ministrados em regime diurno e que pretendessem, igualmente, aceder ao ensino superior. As normas em crise são, na verdade, meramente declarativas da convicção – aliás, de conhecimento geral – de que o ensino recorrente estava a ser instrumentalizado para finalidades contrárias à sua “matriz enformadora”, e de que a prolongada inércia legislativa na correção desta matéria urgia ser invertida.
Admitir, atento este quadro, que expectativas legítimas e fundadas em boas razões possam ter medrado nos alunos em causa é no mínimo questionável. De facto, talqualmente se alertou supra, a legitimidade das expectativas dos cidadãos não está dependente do apuramento de uma mera convicção psicológica destes na estabilidade de um dado regime jurídico, antes carece de ser escrutinada à luz de um filtro objetivo, que teste a repercussão que a conduta estadual possa razoavelmente ter produzido nos cidadãos afetados, e à luz de um filtro normativo, o qual, mais do a que licitude das expectativas, deve determinar a validade-legitimidade (as “boas razões”) destas tendo em conta os princípios jurídico-constitucionais vigentes. Posto isto, se o período de tempo transcorrido desde a última alteração legislativa ao regime jurídico do ensino recorrente pode ter dado alguma consistência às expectativas dos indivíduos abrangidos, certo é que a legitimidade destas surge inelutavelmente afetada, não só porque a reação estadual se afigurava objetivamente expectável, como porque tais expectativas não se acham fundadas em boas razões, isto é, em razões compatíveis com a teleologia normativa do ordenamento jurídico-constitucional.
Esta conclusão, sublinhe-se, não briga com a decisão adotada por este Tribunal na jurisprudência constante dos Acórdãos n.ºs 176/2012, 275/2012 e 277/2012 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Aí, com efeito, o Tribunal, instado a apreciar a validade das alterações produzidas no regime especial de acesso ao ensino superior de que são beneficiários os atletas de alta competição (cfr. artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 393-A/99, de 2 de outubro, na redação dada pelo artigo 46.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro) concluiu pela legitimidade das expectativas daqueles, mas apenas em virtude de tal alteração legislativa tomar em consideração factos já parcialmente realizados (classificações obtidas em provas realizadas antes da entrada em vigor das referidas normas), o que não sucede in casu.
No caso vertente, o juízo quanto à prevalência do interesse público torna-se, por conseguinte, dispensável, pelo que há que concluir, atento o exposto, que as normas em crise não importam qualquer violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima dos cidadãos.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, dedutível do artigo 2.º da CRP, as normas dos artigos 11.º, n.ºs 4 e 6, e 15.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 42/2012, de 22 de fevereiro, na interpretação segundo a qual as alterações normativas consagradas se aplicam, sem previsão de regime transitório, a todos os alunos matriculados no ensino secundário recorrente.
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 27 de junho de 2013. – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Joaquim de Sousa Ribeiro.