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Processo n.º 96/13
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, A., S.A., veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No requerimento de interposição de recurso, a recorrente delimitou o respetivo objeto, nos seguintes termos:
“(…) inconstitucionalidade da interpretação (…) do artigo 25.º, n.º 2, al. a), do Código das Expropriações (aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de setembro, com as alterações posteriores), (…) no sentido de “classificar como solo apto para construção um solo abrangido em plano diretor municipal por áreas agrícolas complementares com total desconsideração desta vinculação administrativa.
(…) inconstitucionalidade da interpretação do artigo 26.º, n.º 12 do Código Expropriações, (…) uma vez que beneficia arbitrariamente os expropriados ao lhes conceder uma indemnização por expropriação do plano, quando está vedada aos demais proprietários de prédios em espaço agrícola complementar nos termos gerais do direito.”
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária, com a seguinte fundamentação:
“(…) Não obstante a recorrente não identificar, de forma clara e inequívoca, a decisão recorrida, depreende-se - da circunstância de o requerimento de interposição de recurso ser dirigido ao Tribunal da Relação de Guimarães e do conteúdo de tal requerimento - que tal decisão corresponde ao acórdão datado de 29 de maio de 2012.
Será nesta perspetiva que serão apreciados os pressupostos de admissibilidade do recurso.
O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Impõe-se, assim, analisar se tais requisitos se mostram preenchidos, in casu.
(…) Relativamente à primeira questão – referenciada como sentido interpretativo do artigo 25.º, n.º 2, alínea a), do Código das Expropriações - verifica-se que a mesma não corresponde à ratio decidendi da decisão recorrida.
De facto, na construção do enunciado desta primeira questão, a recorrente insere a sua subjetiva valoração dos factos relevantes - enfatizando a existência de solo classificado pelo plano diretor municipal como “áreas agrícolas complementares” – que não coincide com o juízo de relevância feito pela decisão recorrida, nem se projeta no fundamento jurídico decisivo para a solução dada ao caso concreto, pela referida decisão.
Corroborando tal asserção, pode ler-se, no acórdão recorrido, o seguinte:
“(…) Considerando que ficou provado que as parcelas expropriadas confinam e são atravessadas por Estrada Municipal, que é uma via pública, pavimentada a betuminoso, dotada de rede de distribuição de energia elétrica e telefone, que entronca a cerca de 250 metros com outra via que, além destas infraestruturas, dispõe, também, de rede pública de abastecimento de água, que, a cerca de 150 metros das parcelas expropriadas, ao longo da EM que as ladeia, se desenvolve na área habitacional composta por moradias unifamiliares de boa qualidade e dimensão, bem como pequena indústria, sendo que, a uma distância de cerca de 200 metros, para Nascente, se encontra o aglomerado urbano de Rande e a 250 metros, para Poente, se desenvolve uma grande mancha de área classificada em “Espaços de Equipamento”, e que, entre o prédio expropriado e estas áreas se localizam diversos pequenos núcleos de construção dispersa, sendo que, no PDM, as parcelas estão inseridas em “Espaço Canal para construção de vias de comunicação” (…) não se nos oferecem dúvidas de que a melhor classificação para o solo das parcelas expropriadas é aquela que foi efetuada pelos Senhores peritos que procederam à avaliação, podendo concluir –se que se verificam os requisitos enunciados no artigo 25.º, n.º 2, alínea a) do CE. (…)
Consideramos aqui a interpretação, que vem sendo defendida maioritariamente, no sentido de que “a classificação do solo como apto para construção não depende da existência de todas as infraestruturas referidas na alínea a) do nº 2 do artigo 24° do CE de 91 – acesso rodoviário, rede de abastecimento de água, de energia elétrica e de saneamento” vide Osvaldo Gomes, Expropriações por Utilidade Pública, Texto Editora, Lisboa, 1997, 1ª edição, p. 187, salientando-se que o preceito é equivalente ao art. 25°, nº 2, alínea a) do CE de 99. (…) No sentido de que para a classificação de um terreno como solo apto para construção não é necessário que coexistam todas as infraestruturas a que alude a alínea a) do art. 25º, nº 2 cfr., entre outros, o Ac. RC de 22/06/2004, CJ Ano XXXIX, T.III, 2004, pp. 30-34, o Ac. da Relação do Porto de 05/05/2009, in www.dgsi.pt e o Ac. da Relação de Guimarães de 21/09/2010, in www.dgsi.pt que trata da expropriação de uma parcela próxima da destes autos e com vista à realização da mesma obra pública.”
Nestes termos, não tendo a recorrente logrado erigir, como objeto do recurso, no respetivo requerimento de interposição, o concreto critério normativo, extraído do artigo 25.º, n.º 2, alínea a), do Código das Expropriações, que integra a ratio decidendi do acórdão recorrido, ficou prejudicada a admissibilidade do presente recurso.
Sempre se dirá que impendia sobre a recorrente o ónus de enunciar, previamente, a questão de constitucionalidade, que pretende ver dirimida, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
No presente caso, refere a recorrente que suscitou, previamente, a questão de constitucionalidade, nas alegações do recurso de apelação interposto pela expropriada.
Porém, analisada tal peça processual, conclui-se que em nenhum momento a recorrente enunciou a específica questão de constitucionalidade que vem, posteriormente, indicar no requerimento de interposição do presente recurso e que reporta ao artigo 25.º, n.º 2, alínea a), do Código das Expropriações. Assim, por incumprimento de tal ónus de suscitação prévia, sempre se concluiria pela inadmissibilidade do presente recurso, nesta parte.
(…) Relativamente à segunda questão, constata-se que a recorrente não enuncia, no requerimento de interposição do recurso, a concreta interpretação normativa, cuja constitucionalidade pretende ver sindicada, limitando-se a indicar o preceito em que a mesma presumivelmente assentará.
Porém, não estando em causa qualquer interpretação normativa insólita ou surpreendente que, sendo adotada de forma imprevisível pelo tribunal a quo, poderia legitimar uma não suscitação prévia da mesma – note-se que, desde logo, fica afastada essa possibilidade, face à circunstância de a recorrente identificar a peça processual em que suscita previamente a questão - conclui-se que o critério normativo, cuja constitucionalidade a recorrente pretende ver sindicada, deverá ter sido problematizado junto do tribunal a quo, antes de esgotado o seu poder jurisdicional.
Refere a recorrente que suscitou esta segunda questão de constitucionalidade, nas alegações do recurso de apelação interposto pela expropriada.
Porém, analisada tal peça processual, conclui-se que a recorrente não enunciou, de forma clara e adequada, uma específica questão de constitucionalidade referente a uma interpretação normativa, extraída do artigo 26.º, n.º 12, do Código das Expropriações, que tenha integrado a ratio decidendi da decisão recorrida e que, por isso, fosse suscetível de ser erigida como objeto de ulterior recurso de constitucionalidade.
Na verdade, impendia sobre a recorrente o ónus de enunciar a questão, que pretendia ver apreciada, previamente, perante o tribunal a quo, em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela inconstitucionalidade, pudesse reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral ficassem cientes do concreto sentido normativo, extraível da disposição legal indicada, julgado desconforme com a Lei Fundamental.
Não tendo a recorrente cumprido tal ónus, ficou definitivamente prejudicada a admissibilidade do presente recurso, igualmente quanto a esta segunda questão.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
4. A reclamante refere discordar da decisão sumária proferida, porquanto, na sua perspetiva, o recurso apresentado reúne todos os pressupostos de admissibilidade.
Quanto à primeira questão colocada, diz a reclamante que “o problema jurídico está tanto na classificação do solo apto para construção, quanto no facto do Tribunal da Relação ter interpretado o artigo 25.º, n.º 2, al. a) ignorando que o solo estava em zona condicionada pelo Plano Diretor Municipal de Felgueiras (…) ainda que dotado de infraestruturas.”
Mais refere que tal questão foi apreciada pelos Acórdãos n.os 37/2011 e 896/11 do Tribunal Constitucional, cuja fundamentação é aplicável, embora estivessem em causa, na situação visada por tais arestos, solos em zona florestal.
Acrescenta a reclamante que o Tribunal da Relação utilizou o argumento da existência de infraestruturas para justificar a classificação do solo apto para construção, independentemente da vinculação administrativa que o onerava, invocando o artigo 26.º, n.º 12, do Código das Expropriações, para justificar um destino económico não permitido.
Diz ainda que o tribunal aplicou o artigo 25.º, n.º 2, alínea a) do Código das Expropriações para justificar uma aptidão construtiva desconsiderando em absoluto o prescrito no Plano Diretor Municipal (PDM), violando assim os acórdãos citados, que, de acordo com o reclamante, determinam que se atenda ao regime jurídico da vinculação administrativa aplicável no local.
Afirma a reclamante que a questão de constitucionalidade foi suscitada previamente e de forma adequada, em sede de alegações que juntou como apelada, “por analogia ao decidido” no Acórdão n.º 37/2011, devendo a interpretação de tal peça processual ser feita em conformidade com o critério de um destinatário normal, que levará a concluir pelo efetivo cumprimento de tal ónus.
No tocante à segunda questão, refere a reclamante que a mesma se prende com a “interpretação do artigo 26.º, n.º 12, do Código das Expropriações e a determinação de uma indemnização por uma capacidade construtiva proibida pelo PDM e que não permite apurar o valor real da parcela, violando assim o princípio da igualdade na sua dimensão externa.”
Especifica a reclamante que “[n]ão se provando uma classificação do solo em zona agrícola como meio de depreciação fundiária, o artigo 26.º, n.º 12 CE não pode ser chamado à liça sob pena de permitir a fixação de uma indemnização não correspondente com o valor real do solo.”
Acrescenta que tal questão foi suscitada nas alegações.
Conclui, nestes termos, peticionando o deferimento da reclamação e a admissão do recurso.
A reclamada, regularmente notificada, não apresentou resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. A argumentação apresentada, na reclamação, não infirma a correção do juízo plasmado na decisão sumária proferida.
Na verdade, uma parte substancial dos argumentos esgrimidos pela reclamante parece assentar no pressuposto de que o Tribunal Constitucional pode sindicar o ato de julgamento ou a bondade da solução encontrada pelo tribunal a quo, quando, de facto, a competência deste Tribunal se cinge à sindicância de constitucionalidade de normas ou interpretações normativas.
Como se refere no Acórdão n.º 633/08 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo)”.
Assim, no caso concreto, impunha-se que a recorrente tivesse escolhido, como objeto do recurso, o critério normativo que foi adotado como ratio decidendi pelo acórdão recorrido e que tivesse suscitado previamente a problemática da sua constitucionalidade.
Porém, a recorrente não cumpriu tais exigências.
A primeira questão enunciada, no requerimento de interposição de recurso, reportada à interpretação do artigo 25.º, n.º 2, alínea a), do Código das Expropriações, não corresponde ao fundamento jurídico da solução a que chegou o tribunal a quo.
Na verdade, a recorrente constrói a enunciação de tal questão com base no pressuposto da inclusão do solo em zona abrangida, “em plano diretor municipal, por áreas agrícolas complementares”.
A decisão recorrida enfatiza, por sua vez, que as parcelas estão inseridas em “Espaço Canal para construção de vias de comunicação”, explicitando os factos relevantes e o critério interpretativo utilizado para concluir pela classificação do solo como apto para construção, como resulta do excerto transcrito na decisão sumária reclamada, que é esclarecedor quanto à não correspondência entre a ratio decidendi do acórdão recorrido e a primeira questão enunciada como objeto do recurso.
Igualmente se conclui - corroborando o sentido da decisão reclamada - que a recorrente não cumpriu o ónus de suscitação prévia de nenhuma das duas questões de constitucionalidade que apresenta, como se depreende do excerto das alegações que a reclamante transcreve.
De facto, o cumprimento de tal ónus de suscitação é particularmente exigente, pressupondo que a questão de constitucionalidade seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Exige-se, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objeto de recurso e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis no sítio da internet já aludido).
Acresce que o cumprimento do presente pressuposto de admissibilidade do recurso implica que a questão de constitucionalidade normativa seja enunciada, junto do tribunal a quo, em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
Ora, tendo em conta as exigências expostas, teremos de concluir que a recorrente, não obstante invocar parâmetros constitucionais para argumentar no sentido da correção da tese que defende, nas alegações, em nenhum momento, autonomiza e enuncia a primeira questão que expõe, no requerimento de interposição de recurso, ou qualquer critério normativo extraível do número 12 do artigo 26.º do Código das Expropriações - preceito a que reporta o conteúdo da segunda questão apresentada na mesma peça processual – que tenha sido convocado pelo acórdão recorrido.
Pelo exposto e sendo certo que a decisão sumária proferida merece a nossa concordância, damos por reproduzida a sua fundamentação e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da presente reclamação.
III - Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 7 de junho de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 23 de outubro de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.