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Processo n.º 92/13
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é reclamante A. e reclamado o Ministério Público, o primeiro reclamou, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho de 19 de dezembro de 2012, que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional.
2. O reclamante interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto da sentença condenatória proferida pelo tribunal de 1.ª instância. Através de acórdão de 27 de junho de 2012, o Tribunal da Relação do Porto decidiu «julgar totalmente improcedente o recurso». Foi, então, requerido o esclarecimento desta decisão e arguida a nulidade da mesma, mediante requerimento com o seguinte teor:
«1 – No Acórdão proferido, a fls. 1442, os Senhores Desembargadores, na análise que fazem do texto da decisão, «O Julgador- baseou a sua convicção, nas declarações dos arguidos que “confessaram ou admitiram”, o “enquadramento fiscal, o conhecimento das questões fiscais, o incumprimento das declarações fiscais pelos 3º 4º e 5º arguidos, a emissão e utilização das faturas em causa nos autos para efeitos fiscais por parte dos arguidos respetivos, os valores relevantes”, conjugadas com a prova documental constituída pelo:
(…)
E acrescentam,
2- «Quanto ao facto de as faturas emitidas não corresponderem a compras e vendas efetivamente realizadas, o Julgador explicita de forma desenvolvida e lógica o processo raciocinativo a que procedeu para, com base na prova produzida, chegar a tal conclusão.».
3 – Salvo o devido respeito e melhor opinião, não se vislumbra da decisão o substrato da conclusão a que Vossas Excelências chegaram, uma vez que o que estava em causa no recurso interposto era precisamente a forma como o raciocínio desenvolvido pelo Tribunal “a quo” apresentava vícios de contradição insanável de fundamentação e erro notório na apreciação da prova.
4 – Ora, não se percebe o teor da decisão quanto a esta matéria, uma vez que Vossas Excelências argumentam que o raciocino lógico-dedutivo a que o Tribunal “a quo” procedeu se mostra suficientemente fundamentado na prova produzida e correto, mas não se alcança qual a prova produzida que validou tal raciocínio nem porque razão os argumentos do recorrente, onde são ressaltados os erros notórios e as contradições, não foram tidos em conta.
5 – Vossas Excelências, argumentam que «…a apreciação da prova, em julgamento, é - pela natureza das “ações humanas” e porque se pretende reconstituir acontecimentos do passado – necessariamente composta, também por raciocínios lógico-dedutivos [processo raciocinativo pelo qual se passa de proposições conhecidas (premissas) a outra proposição que se apresenta como consequência lógica, em termos de conclusão]», negrito e sublinhado nosso.
6 – Mas não se alcança da decisão a validação de tal raciocínio, que precisamente foi posto em causa pelo recorrente.
7 – Vossas Excelências esgrimem o argumento abstrato, mas não o explicitam no caso concreto.
8 – É inteligível a necessidade de recorrer a raciocínios lógico-dedutivos, mas impõe-se a este Venerando Tribunal sindicar a validade desses raciocínios e explicitar, uma vez que foram postos em causa, porque o recurso aos mesmos se encontra validado e em que medida.
9 – É ininteligível da decisão o porquê da validação do raciocínio lógico dedutivo do Tribunal a quo.
10 – Não se alcança do Acórdão se Vossas Excelências entendem que os raciocínios lógico-dedutivos não estão também eles vinculados à prova produzida, ao principio “in dúbio pro reo” e ao principio da presunção de inocência, ou se por seu lado estão na discricionariedade da livre apreciação do julgador.
11 – Pelo que se impõe, que esse Venerando Tribunal, esclareça porque razão os argumentos que sustentam o raciocínio lógico dedutivo do Tribunal “a quo” são de tal forma fortes que afastem os vícios apontados pelo recorrente a esse raciocínio, com a segurança exigível em processo penal que leve à condenação dos arguidos em processo penal pelo crime de que vêm acusados.
12 – Salvo o devido respeito, Vossas Excelências, preocuparam-se mais com a forma do que com o conteúdo do recurso, que é a razão essencial porque estamos aqui.
13 – Se a escolha da forma de estruturação do recurso não mereceu a aprovação de Vossas Excelências, opção definida pelo aqui subscritor e pela qual se penitencia, não pode a mesma influir no conhecimento do conteúdo do mesmo.
14 – A opção da análise da prova, caso a caso, dividindo a análise dos negócios com cada um dos intervenientes não nos parece desadequada uma vez que os negócios tiveram, com cada um dos intervenientes, especificidades próprias.
15 – E, não se alcança o que Vossas Excelências pretendem dizer «…em parte alguma da peça de recurso se procede a uma efetiva e credível valoração e conjugação de toda a prova oral e documental, produzida ou analisada em Audiência (e acima sintetizada).».
16 – As “extensas transcrições” limitaram-se quase exclusivamente às transcrições dos depoimentos das testemunhas de defesa e das declarações dos arguidos.
17 – Das testemunhas de acusação, os Senhores Inspetores Tributários, salvo o devido respeito e melhor opinião, não valia a pena transcrever uma vez que se limitaram a confirmar o que resulta dos relatórios de inspeção.
18 – E o que resulta dos relatórios de inspeção é, como todos sabemos no âmbito dos processos tributários e, no caso concreto deles resulta, a compilação de “factos índice” que permitem à Autoridade Tributária proceder à desconsideração das faturas e fazer a inversão do ónus da prova, passando a caber aos sujeitos passivos a obrigação de demonstrar a veracidade das transações.
19 – Mas, como Vossas Excelências sabem melhor do que ninguém, isso passa-se nos Tribunais Tributários.
20 – O mesmo já não é admissível nos Tribunais Criminais, onde o ônus é da acusação.
21 – E o que se pretendeu demonstrar, com as transcrições efetuadas, foi precisamente a falta de prova, para além dos indícios circunstanciais recolhidos nos relatórios de inspeção, que legitimassem os raciocínios logico-dedutíveis que o Tribunal “a quo” expendeu e que esse Venerando Tribunal parece ter sindicado sem se pronunciar concretamente sobre os argumentos do recorrente, nem do Meritíssimo Juiz “a quo”, e que cumpre explicitar para que o recorrente possa aferir os juízos formulados.
22 – E, também, não se percebe porque é que Vossas Excelências consideram as conclusões extraídas dos factos provados pelo recorrente são falaciosas e as do Tribunal “a quo” não são, sendo que, salvo o devido respeito e melhor opinião e sem conceder, ambas se apresentam abstratamente como perfeitamente lógicas do ponto de vista da organização do processo raciocinativo.
23 – Exemplificando com um dos exemplos a que Vossas Excelências recorreram: «A propósito dos pretensos “negócios” com o B.: se o Tribunal chega à conclusão que existe sucata (quer pelo depoimento dos arguidos A. e B., quer pelo depoimento das testemunhas C. e D., quer pela prova documental junta que a sucata até pode ter sido vendida à sociedade arguida “E., Lda” impunha-se ao Tribunal decidir “in dúbio pro reo»”.
24 – Com o devido respeito, não descortinamos onde está a falácia de raciocínio. Pelo contrário, parece-nos que o Tribunal “a quo” seguiu um caminho bem mais tortuoso:
a) deu uma relevância grande ao facto do arguido ter cessado a atividade em 2001 e as faturas em causa serem de 2003 (quando dá como provado que o arguido B. desde os anos 80 que exercia a atividade de compra e venda de sucata e só em 13-03-2001 se coletou – vide alínea o) dos factos provados);
b) admite a existência de uma quantidade de sucata em 2003 na posse do B. (vide o doc. de fls. 579);
c) admite que as testemunhas C. e D. não mentiram mas podiam estar confundidas relativamente a datas (quando das transcrições não se extrai tal facto);
d) admite que essa sucata poderá ter sido vendida à sociedade E., Lda (portanto. pelo menos uma parte da venda teria correspondência efetiva com a transação);
e, ainda assim, todos estes factos soçobram porque a forma comprometida como o arguido B. fez o seu depoimento não convenceu o tribunal “a quo” do contrário.
25 – Perante estes dois raciocínios, que teriam que ter assaltado a mente do julgador, não estava aquele obrigado a respeitar os princípios “in dúbio pro reo” e da presunção de inocência dos arguidos? Vossas Excelências parecem entender que não, que essa dúvida no assaltou o espirito do legislador, quando o próprio julgador sente necessidade de “desconsiderar” todas aquelas evidências.
26 – Salvo o devido respeito e melhor opinião, o recorrente não descortina do Acórdão o que Vossas Excelências entendem pelo princípio “in dúbio pro reo” e da presunção de inocência, uma vez que pela mesma lógica invocada, nunca haverá violação daqueles princípios desde que o julgador justifique o afastamento das suas dúvidas... e não importa o quão longe terá que levar o seu raciocínio lógico-dedutivo.
27 – A ser assim, afigura-se que tal interpretação será claramente inconstitucional e viola o art. 32º da Constituição, violação que se invoca com as legais consequências.
28 – Vossas Excelências, a fls. 1446 expendem «Valendo-se da clandestinidade no exercício da atividade dos aqui recorrentes, A. e “E., Lda” («viveu durante anos à margem da Administração Fiscal, comprando e vendendo sucata»), na peça de recurso – e é esse o essencial da sua confusa e ilógica argumentação– pretende impor-se ao Julgador dúvidas que este manifestamente não teve, pois procedeu a uma correta e adequada valoração e conjugação da prova produzida».
29 – Só podemos entender tal argumentação como um lapso manifesto de Vossas Excelências, que certamente se ficou a dever à falta de clareza na exposição do aqui subscritor, que do facto se penitencia, mas que se Vossas Excelências fizerem um esforço de análise sobre o que está expendido nas alegações de recurso e respectivas conclusões, certamente não terão dificuldade em perceber que o que está alegado é precisamente o contrário.
30 – A E., Lda nunca viveu na “clandestinidade” no exercício da sua atividade, pelo contrário sempre foi um sujeito passivo declarante (a prova documental é profícua a comprovar tal facto)
31 – Os outros três coarguidos é que sempre viveram à margem da Administração
Fiscal, não porque no tivessem ligados ao ramo (facto que a própria sentença do
Tribunal “a quo” reconhece), mas porque eram sujeitos passivos não declarantes.
32 – E daí a afirmação do recorrente «é “fácil” perceber que os intervenientes nestes negócios, que toda a vida negociaram em sucata numa economia informal que efetuam todas das suas compras, para não dizer a grande maioria, a particulares e empresas que vendiam a sua sucata de uma forma informal, ao liquidarem o IVA nas suas vendas se sintam tentados a não entregar o IVA ao Estado, uma vez que independentemente do preço de compra e posterior venda da sucata tinham assegurado nas vendas uma margem de 19%».
33 – O que está aqui em causa é um crime de abuso de confiança fiscal e não um crime de fraude fiscal. Crime de abuso de confiança que os arguidos B., Daniel Cláudio e Francisco Ribeiro confessaram ter praticado.
34 – Senhores Desembargadores, o Recorrente não tem nada a ver com a prática desse crime, nem lhe pode ser assacada nenhuma responsabilidade pela prática do mesmo pelos restantes coarguidos.
35 – Esta foi sempre a luta do recorrente. Talvez agora, esclarecidos estes factos, Vossas Excelências poderão aclarar o Acórdão em crise de forma ao recorrente poder perceber o “iter” decisório e corrigi-lo em conformidade fazendo uma correta aplicação das normas jurídicas violadas.
Ainda, sem prescindir,
36 – Vossas Excelências, não se pronunciaram sobre todas as questões de facto que o recorrente levantou no seu recurso.
37 – Nomeadamente, aquelas que concretamente impunham decisão diferente sobre a matéria de facto.
38 – Limitando-se a fazer uma análise “en passant” das questões levantadas o que constitui nulidade do Acórdão, nos termos da alínea c) do nº 1 do art. 379º do CPP, nulidade que se invoca com as legais consequências.
39 – Tal facto reveste, ainda, a violação do princípio constitucional da garantia de defesa consagrado no art. 32º da Constituição Portuguesa, inconstitucionalidade que se invoca com as legais consequências».
3. O Tribunal da Relação acordou, em 17 de outubro de 2012, em indeferir o requerido e em determinar a extração de traslado (artigo 720.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável). Notificado desta decisão, o reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, através de requerimento onde se pode ler o seguinte:
«b) pretende-se que o tribunal aprecie a inconstitucionalidade da interpretação do principio “in dúbio pro reo” e da presunção de inocência do arguido no sentido de o limitar às dúvidas expressas na sentença pelo Julgador.
c) pretende-se que o tribunal aprecie a inconstitucionalidade da interpretação do art. 379º nº l al. c), no sentido que a falta de pronuncia sobre questões suscitadas não constitui nulidade do Acórdão.
d) pretende que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade da aplicação subsidiária do art. 720º do CPC, quando o Recorrente esgota os graus de jurisdição, relativamente às nulidades dos Acórdãos».
4. Foi então proferido o despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade, com a seguinte fundamentação:
«Nos termos do art. 76º da Lei do Tribunal Constitucional (Decisão sobre a admissibilidade), compete a este Tribunal apreciar a admissão do referenciado recurso, recaindo sobre o mesmo o dever de o indeferir liminarmente quando for manifestamente infundado.
*
Parece-nos ser este um desses casos, bastando uma avaliação sumária dos seus fundamentos para se concluir, inequivocamente, pela sua inatendibilidade e pelo evidente intuito meramente dilatório.
Concretizando, na medida do considerado necessário:
Estamos no âmbito da fiscalização concreta da Constitucionalidade, especificamente das decisões dos Tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada no decurso do processo – art. 280º, na 1, al. a) da CRP e pelo recorrente invocado art. 70º, nº 1, al. b) da LOFPTC (as denominadas decisões negativas de inconstitucionalidade).
Sendo óbvio que se não está perante um recurso ordinário, que tenha por objetivo rever ou reformar a Sentença quanto ao seu fundo.
Nestes termos, não incumbe ao Tribunal Constitucional controlar ou sindicar as decisões judiciais a que for atribuída a violação de princípios constitucionais, em matéria penal, como o pretende o recorrente ao invocar «a inconstitucionalidade da interpretação do princípio “in dubio pro reo” e da presunção de inocência do arguido», a que se procedeu no Acórdão proferido por este Tribunal.
De igual modo, não incumbe ao Tribunal Constitucional controlar ou sindicar o indeferimento da nulidade prevista no art. 379º, nº 1, al. c), do CPP, decidida no segundo dos Acórdãos proferidos, por não ter qualquer fundamento.
Tal como se afirma no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 184/2008 – a título de exemplo, uma vez que se trata de um entendimento generalizado e pacífico – “não vigora entre nós um sistema de recurso de amparo ou de queixa constitucional, existindo, sim, um sistema de fiscalização normativa da constitucionalidade que não permite que o Tribunal conheça do mérito constitucional do ato casuístico de subsunção de um pormenorizado conjunto de factos concretos na revisão abstrata de uma certa norma legal”.
Também nesse Acórdão se refere que um «tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico- constitucional» não pode, evidentemente, transformar-se em instância revisora do modo como os demais tribunais interpretam e aplicam o direito infraconstitucional, substituindo-se-lhes na tarefa (que exclusivamente lhes pertence) de subsunção de certos factos a certo tipo de determinação legal, sendo que na primeira das questões suscitadas nem sequer é objeto de apreciação uma norma (ou dimensão normativa da mesma), mas sim a decisão de não violação pela 1ª Instância de determinados princípios do processo penal.
Quanto à terceira das questões invocadas, «a inconstitucionalidade da aplicação subsidiária do art. 720º do CPC”, para além de manter inteira validade o já referido, no que respeita ao âmbito de intervenção do Tribunal Constitucional e ao objeto do recurso, cita-se o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 376/2012, de 26 de setembro de 2012, a propósito dessa invocação: o regime previsto no artigo 720º do Código de Processo Civil insere-se no âmbito do poder-dever do juiz de providenciar pelo andamento regular e célere do processo, obviando a expedientes impertinentes e dilatórios.
Assim, não é logicamente compreensível a alegação de inconstitucionalidade do entendimento que preconiza a aplicabilidade do artigo 720º do Código de Processo Civil, no âmbito do processo penal, por força do artigo 4º do Código de Processo Penal.
Por outro lado, e em paralelo, nenhuma das questões suscitadas o foi de modo direto e percetível (e com a necessária densificação argumentativa, no âmbito constitucional) no decurso do processo, nomeadamente na peça de recurso para este Tribunal, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, antes de esgotado o poder Jurisdicional, tal como o impõe o art. 72º, nº 2, da LTC.
A esse respeito, e tal como resulta do exposto, é por completo descabido o argumento de que foi «feito um uso novo e totalmente imprevisto da dimensão interpretativa das normas em causa».
Acrescente-se que mesmo que tais questões tivessem sido validamente suscitadas no Acórdão que indeferiu a requerida “aclaração” e a invocada “nulidade” (que o não foram), as mesmas continuariam a mostrar-se intempestivas, pois, tal como referem no “Breviário de Direito Processual Constitucional”, Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, Coimbra Editora, 2ª Ed. P. 48, “os incidentes pós decisórios não são, em princípio, meios idóneos e atempados de levantar a questão de constitucionalidade, como o não são logicamente um requerimento autónomo apresentado após a decisão ou um requerimento-complemento de pedido de aclaração em que a questão seja colocada. De igual modo o não são o requerimento de interposição de recurso e as alegações para o TC”.
*
Pelo exposto, e nos termos do art. 76º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, não se admite o recurso supra referenciado, interposto pelo A., por se mostrar manifestamente infundado».
5. A presente reclamação tem como objeto este despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade. O reclamante aduz os seguintes fundamentos:
«O arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, recurso que não foi admitido:
“Pelo exposto, e nos termos do art. 76º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, não se admite o recurso supra referenciado, interposto pelo A., por se mostrar manifestamente infundado.”
Entende o Senhor Desembargador que numa avaliação sumária dos fundamentos do recurso se conclui pela sua inatendibilidade e pelo evidente intuito meramente dilatório.
Salvo o devido respeito e melhor opinião não vemos onde está o intuito meramente dilatório do recurso interposto quando essa questão foi ultrapassada pela aplicação do art. 720º do C.P.C..
Quanto à inatendibilidade dos fundamentos, a questão já é controvertida, respeitamos o entendimento do Senhor Desembargador, mas não podemos concordar com a sua interpretação.
É pacífico na jurisprudência do Tribunal Constitucional que no sistema português de fiscalização de constitucionalidade não existe possibilidade de sindicar a inconstitucionalidade de decisões jurisdicionais. Não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar o modo como os tribunais comuns apreciam a prova e dela extraem juízos de subsunção dos factos provados aos conceitos jurídicos;
Ao Tribunal Constitucional cabe-lhe, apenas, sindicar se os tribunais recorridos aplicaram normas jurídicas e princípios constitucionais em conformidade com a Lei Fundamental.
E, Senhores Juízes Conselheiros, é precisamente isso que se pretende com o presente recurso.
Não se pretende saber se o Tribunal nas decisões que proferiu fez uma correta apreciação da prova, matéria que não pode ser sindicada pelo Tribunal Constitucional por estar fora do seu âmbito de atuação.
O que se pretende é que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a interpretação do princípio constitucional “in dúbio pro reo” e da presunção de inocência do arguido quando aplicado no sentido de o limitar às dúvidas expressas na sentença pelo julgador e sobre a inconstitucionalidade da interpretação do art. 379º nº 1 al. c) do CPP no sentido que a falta de pronúncia sobre questões suscitadas não constitui nulidade do Acórdão.
Ou seja, não se pretende que o Tribunal se pronuncie sobre o mérito da decisão do ponto de vista da sua constitucionalidade, mas da interpretação concreta do princípio constitucional e da norma em causa.
Analisemos a primeira questão suscitada.
Senhores Conselheiros, de uma forma pragmática e simplista resume-se ao seguinte:
1 – O recorrente invocou a violação do princípio in dúbio pro reo e da presunção da inocência do arguido no seu recurso para o Tribunal da Relação do Porto com base no entendimento que face à prova produzida em audiência de julgamento se impunha decisão em sentido contrário e, na dúvida, teria que ter decidido “in dúbio pro reo” e em respeito do princípio da presunção de inocência;
2 – O Venerando Tribunal da Relação do Porto veio dizer relativamente a esta matéria “Ora da decisão sob reexame não resulta que o Julgador em 1ª Instância tenha ficado na dúvida em relação a algum facto e que, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o recorrente.”;
3 – Deste Acórdão foi pedida aclaração no sentido de esclarecer se realmente era esse o entendimento da Relação, se entendia que esse princípio só estava em causa quando resultasse da própria sentença essa dúvida.
Ora, Reverendíssimos Senhores Conselheiros é precisamente deste entendimento que se pretende que o Tribunal Constitucional se pronuncie, uma vez que é convicção do recorrente que tal interpretação é manifestamente inconstitucional.
O que se pretende ver sindicada é a interpretação que é feita pela Relação do princípio “in dúbio pro reo” e da presunção de inocência do arguido no sentido de só estar em causa quando o julgador expressa as suas dúvidas.
Esta interpretação esvazia por completo um princípio que dada a sua importância tem previsão expressa na nossa Lei Fundamental.
Salvo o devido respeito, entende o recorrente que se impõe a um tribunal superior que face à matéria constante dos autos faça uma análise independente dos factos e conclua, face aos factos, se o homem normal, o “bonnus pater família” teria que ficar na dúvida quanto ao acontecido, ou não. O que não se pode é reduzir a análise dessa dúvida às dúvidas expressas pelo julgador na sua própria sentença, entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação do Porto nos presentes autos.
E, Senhores Conselheiros, não se diga que “…nenhuma das questões suscitadas o foi de modo direto e percetível (e com a necessária densificação argumentativa, no âmbito constitucional) no decurso do processo, nomeadamente na peça de recurso para este Tribunal, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, antes de esgotado o poder Jurisdicional, tal como o impõe o art. 72º, nº 2, da LTC.”.
O Recorrente suscitou a questão no seu recurso nas conclusões 16ª, 17ª, 18ª, 29ª e 44ª de uma forma geral e, na expectativa, de que o Tribunal da Relação analisasse os argumentos aduzidos e, de acordo com a sua convicção decidisse se o Juiz da primeira Instância, face á prova produzida, deveria ou não ter decidido “in dúbio pro reo” em respeito do princípio da presunção da inocência do arguido.
Mas, o Tribunal da Relação assim não fez, entendeu que o princípio só estaria em causa quando o julgador “a quo” tivesse manifestado as suas dúvidas na sentença, e foi esta interpretação que fez um uso novo e totalmente imprevisto da dimensão interpretativa das normas em causa.
Uma vez que o processo não admite recurso ordinário não dispunha o recorrente de outro meio que não o usado para suscitar concretamente a questão.
E, Senhores Conselheiros, é precisamente esta, também, a situação da segunda questão levantada.
Entenderam os Senhores Desembargadores que não tinham que se pronunciar sobre todas as questões levantadas na peça de recurso, entendimento que no entender do recorrente consubstancia a prevista na alínea c) do nº 1 do art. 379º.
Tal entendimento foi expresso no Acórdão da Relação do Porto, donde, teria que ser em requerimento posterior invocada.
E, Senhores Conselheiros, ao contrário do que se diz no requerimento de indeferimento do recurso para este Tribunal, não se pretende que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre o indeferimento da nulidade invocada, o que se pretende é que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre o entendimento de que o Tribunal de Recurso não tem que se pronunciar sobre todas as questões suscitadas.
Quanto à terceira questão levantada, não se prende com a aplicação subsidiária do art. 720º do C.P.C ao processo penal, prende-se com a interpretação da aplicação subsidiária, quando o Recorrente esgota os graus de jurisdição, relativamente às nulidades dos Acórdãos.
Efetivamente, Senhores Conselheiros, entende o recorrente que nestas situações tal interpretação constitui flagrante violação do art. 3º e nº 1 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
O direito de arguir nulidades está consignado na Lei e não está nos poderes discricionários dos magistrados não permitir tal arguição ou condicionar a arguição das mesmas ao receio de serem consideradas dilatórias».
6. Neste Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação, nos seguintes termos:
«5. Quanto à primeira das questões, parece-nos evidente que a mesma não traduz a enunciação de uma questão de natureza normativa.
6. Aliás, o recorrente não indica qualquer norma de direito ordinário onde ancore a “interpretação”.
7. Efetivamente, vendo a motivação do recurso para a Relação, o que se constata é que o recorrente discorda da valoração da prova que foi feita pelo Tribunal de 1.ª instância.
8. Nunca foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade suscetível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
9. Quanto à segunda questão “c)”, parece-nos evidente que a Relação, no Acórdão de 17 de outubro de 2012 (vd. n.º 2 e 3), não entendeu que a falta de pronúncia sobre questões suscitadas não constituía nulidade do acórdão.
10. O que a Relação considerou foi que não tinha qualquer fundamento a invocação prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do C.P.P., justificando porquê.
11. A interpretação que o recorrente adianta não tem, pois, qualquer correspondência com o que a Relação, sobre a matéria, disse.
12. Quanto à terceira questão (“d”), a mesma já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, pelo Acórdão n.º 376/2012, que a julgou manifestamente infundada.
13. Resta-nos, pois, remeter para esse aresto, salientando que, tal como nestes autos, o mesmo foi proferido num processo de reclamação.
14. Recorde-se que, o recurso para o Tribunal Constitucional pode ser rejeitado quando for considerado manifestamente infundado (artigo 76.º, n.º 2, in fine, da LTC)».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. De acordo com o requerimento de interposição de recurso, o reclamante pretende que este Tribunal aprecie a inconstitucionalidade da interpretação do princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência do arguido no sentido de o limitar às dúvidas expressas na sentença pelo julgador. O recurso não foi admitido, entre o mais, por não ter sido suscitada previamente e de forma adequada a questão de constitucionalidade em causa.
Com efeito, é de concluir que não foi suscitada, de acordo com o disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa por referência àqueles dois princípios quando foi pedido o esclarecimento do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de junho de 2012 e arguida a nulidade do mesmo (cf. supra ponto 2. do Relatório). Desta peça processual decorre apenas que o recorrente discorda do decidido face à prova produzida, concluindo pela violação dos princípios do in dubio pro reo e da presunção de inocência, não chegando sequer a reportar a interpretação que considera claramente inconstitucional a um qualquer preceito legal. E só a suscitação nesta peça processual abriria a via do recurso de constitucionalidade, já que o mesmo foi interposto do acórdão de 17 de outubro de 2012. Não procede, portanto, a argumentação do reclamante na parte em que sustenta que suscitou a questão de inconstitucionalidade nas conclusões da motivação do recurso interposto da decisão de 1.ª instância.
Na presente reclamação, o recorrente reitera a sua discordância quanto ao decidido em matéria de facto, afirmando que «invocou a violação do princípio in dúbio pro reo e da presunção da inocência do arguido no seu recurso para o Tribunal da Relação do Porto com base no entendimento que face à prova produzida em audiência de julgamento se impunha decisão em sentido contrário e, na dúvida, teria que ter decidido “in dúbio pro reo” e em respeito do princípio da presunção de inocência». Confirma-se, pois, como bem se decidiu no despacho reclamado, que o recorrente pretende afinal a apreciação de uma decisão judicial e não de uma norma, o que não é constitucional e legalmente admissível (artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC).
2. O reclamante pretende também a apreciação da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 379.º n.º l, alínea c), do Código de Processo Penal, no sentido de que a falta de pronúncia sobre questões suscitadas não constitui nulidade do acórdão. O recurso não foi admitido, entre o mais, por não ter sido suscitada previamente e de forma adequada a questão de constitucionalidade em causa. Fundamento que o reclamante não contradiz.
Com efeito, é de concluir que não foi suscitada, de acordo com o disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa por referência àquela disposição do Código de Processo Penal quando foi pedido o esclarecimento do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de junho de 2012 e arguida a nulidade do mesmo (cf. supra ponto 2. do Relatório). E só a suscitação nesta peça processual abriria a via do recurso de constitucionalidade, já que o mesmo foi interposto do acórdão de 17 de outubro de 2012.
3. O reclamante pretende, ainda, a apreciação da inconstitucionalidade da aplicação subsidiária do artigo 720.º do Código de Processo Civil, quando o recorrente esgota os graus de jurisdição, relativamente às nulidades dos acórdãos. O recurso não foi admitido, entre o mais, por não ter sido suscitada previamente e de forma adequada a questão de constitucionalidade em causa. Fundamento que o reclamante não contradiz.
Com efeito, é de concluir que não foi suscitada, de acordo com o disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa por referência àquela disposição do Código de Processo Civil quando foi pedido o esclarecimento do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de junho de 2012 e arguida a nulidade do mesmo (cf. supra ponto 2. do Relatório). E só a suscitação nesta peça processual abriria a via do recurso de constitucionalidade, já que o mesmo foi interposto do acórdão de 17 de outubro de 2012.
É de concluir, pois, pelo indeferimento da presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão de não admissão do recurso de constitucionalidade interposto.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 9 de abril de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.