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Processo n.º 191/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., agora reclamante, foi condenado por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, em 27 de abril de 2011.
2. Inconformado, recorreu da sentença para o Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando as seguintes conclusões no seu requerimento de interposição de recurso:
“1- Ao instituto de revisão de sentença penal, com consagração constitucional, subjaz o propósito da reposição da verdade e da realização da justiça, verdadeiro fim do processo penal, sacrificando-se a segurança que a intangibilidade do caso julgado confere às decisões judiciais, face à verificação de ocorrências posteriores à condenação, ou que só depois dela foram conhecidas, que justificam a postergação daquele valor jurídico.
2- Na douta sentença, é dado como facto provado que os arguidos, pelo menos entre o período de 2005 a finais de 2006, dedicaram-se à compra e venda de produto estupefaciente, designadamente haxixe, mas também cocaína e heroína, na área da comarca de Guimarães, com o intuito de obter vantagens e proveitos económicos.
3- Da análise das certidões juntas, facilmente se conclui que o primeiro facto dado como provado impunha decisão diversa.
4- Ou seja, nunca pode ser dado como provado que o arguido se dedicou à venda de produto estupefaciente ao longo de 2005 e de 2006. É um longo período, facto que o prejudica gravemente e que se sabe não ser verdadeiro.
5- Não poderá deixar este Tribunal que o arguido cumpra uma pena de prisão, por factos que materialmente se sabe que era fisicamente impossível, pelo menos em grande parte, terem sucedido.
6- Isto porque o arguido esteve em cumprimento de pena, no período compreendido entre os dias 20 de outubro de 2004 e 20 de julho de 2006, pelo que não esteve bem o Tribunal ao dar como provado que os dois arguidos estiveram nesta atividade nos anos de 2005 até finais de 2006.
7- Assente ficará com certeza, por uma questão de lealdade processual e porque nada prova o contrário que o arguido se dedicou a esta atividade de 20 de julho de 2006, data da sua libertação, até finais desse ano.
8- Este novo fator, diminui consideravelmente o tempo atividade delituosa, devendo considerar-se o restante período temporal como não provado, e tendo aquele período menor (esse sim provado) reflexo direto na sua condenação.
9- No caso concreto, o recorrente não prestou declarações no decurso da audiência de julgamento, fator que não o pode prejudicar, tornando muito difícil a sua contribuição para a produção de prova relativa ao período da sua atividade delituosa.
10- Por essa razão, juntou, já em sede de recurso, uma certidão com a liquidação de pena do Processo Comum Coletivo n.º 359/08.3 TACBR, das Varas de Competência Mista de Guimarães, processo à ordem do qual cumpriu pena.
11- Porém, o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães não aceitou a junção da referida certidão, por se tratar de um facto novo, que não pode ser conhecido em sede de recurso.
12- Ora, nunca tendo sido conhecido tal meio de prova (documental), mantém-se como um novo facto que surge nos presentes autos.
13- Deste modo, sendo processualmente relevantes os meios de prova ora apresentados pelo recorrente A., o pedido por si formulado deverá proceder.
14- Termos em que se deverá dar provimento à pedida revisão de sentença.”
O Tribunal da Relação de Guimarães confirmou a condenação, em acórdão proferido a 15 de fevereiro de 2012.
3. De seguida interpôs recurso de revisão do acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça. Este Tribunal rejeitou autorizar a revisão da sentença em acórdão de 30 de janeiro de 2013.
4. Por ainda inconformado, interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alíneas c) e f) da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante designada por LTC) dizendo, no seu requerimento (cfr. fls. 441 e 442 dos autos), o seguinte:
«(…) O douto acórdão violou o princípio do direito ao silêncio do arguido em processo penal, mais precisamente o princípio “nemo tenetur se ipsum accusare”, bem os princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito Democrático, da proporcionalidade, do processo equitativo e das garantias fundamentais do arguido em processo sancionatório, previstos nos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 2, 8 e 10, todos da Lei Fundamental. (…)
A presente violação foi invocada pelo recorrente no seu recurso de revisão.
Porquanto,
1.º
Têm os presentes autos origem num recurso de revisão interposto para o supremo Tribunal de Justiça,
2.º
Em que o Recorrente apresenta factos novos que comprovam a injustiça parcial da sua condenação.
3.º
Para prova do facto por si invocado, o arguido juntou prova documental, por certidão judicial.
4.º
Como, aliás, estava obrigado,
Isto é,
5.º
A lei processual penal exige a prova desses novos factos para que seja autorizada a revisão.
6.º
Em sede de recurso, o recorrente invocou expressamente que, pelo facto de não ter prestado declarações no decurso da audiência de discussão e julgamento, não podia invocar factos constantes daquele documento.
7.º
E que o facto de não ter prestado declarações, não o poderia nunca prejudicar.
Mas,
8.º
Na apreciação do recurso de revisão, o Supremo Tribunal de Justiça, considerou que o arguido violou o princípio da lealdade, princípio fundamental em processo penal.
9.º
Ora, isto não podia ser mais desconforme às regras mais basilares de processo penal, constitucionalmente consagradas, máxime, com o princípio “nemo tenetur se ipsum accusare”.
9.º
O arguido não tinha a obrigação de se autoincriminar.
10.º
Não reconhecendo portanto, aquele alto Tribunal, a existência da violação dos princípios constitucionais invocados. (…)»
5. Pela Decisão Sumária n.º 149/2013 decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto, com a seguinte fundamentação:
«7. Compulsado o requerimento e o respetivo processo, resulta o não cumprimento dos pressupostos constantes das alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Desde logo, não se verifica que o tribunal recorrido tenha recusado «a aplicação de norma constante de ato legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado» no aresto recorrido.
Por outro lado, não se vislumbra – e não foi invocada – qualquer questão de ilegalidade cognoscível pelo Tribunal Constitucional e suscetível de lhe servir de base. Em parte alguma do requerimento ou do respetivo processo se fundamentou a arguição de «ilegalidade» da referida norma em «violação de lei com valor reforçado» ou em «violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República».
Na verdade, a arguição feita é de inconstitucionalidade – de violação direta dos «artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4 e 32.º, n.ºs 2, 8 e 10, todos da Lei Fundamental» (cfr. requerimento de interposição de recurso, fls. 63 dos autos) – e não de «ilegalidade».
8. Tanto basta para se demonstrar que se não mostram preenchidos os requisitos para o conhecimento do recurso previsto no artigo 70.º, n.º 1, alíneas c) e f), da LTC.»
6. Vem agora o recorrente reclamar daquela decisão com os seguintes fundamentos:
“1- O Reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
2- O mesmo foi admitido por despacho de fls. 73.
2- Fê-lo para obter a apreciação da legalidade constitucional da decisão aplicada, nos termos do art.° 71° n.° 1 da LTC.
3- Cumpriu com a exigência prevista no artigo 75.°-A da LTC e não foi objeto de despacho de aperfeiçoamento do requerimento.
4. O presente recurso vem interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.° 1, alíneas c) e f), da LTC, nos termos do qual - e em paralelo com a norma do artigo 280.°, n.º1, alínea d), da CRP - se admite recurso para o Tribunal de decisões que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo, encontrando-se esgotados os recursos ordinários (v., também, artigo 70.°, n.° 2, da LTC).
5- Não obstante, este Tribunal entendeu não ser de apreciar o recurso.
6- Decidiu o Exmo. Juiz Conselheiro não admitir a apreciação da ilegalidade da decisão recorrida.
7- A nosso ver, respeitosamente, sem razão.
8- Primeiro que tudo, não podem existir quaisquer dúvidas que a questão da ilegalidade foi sempre suscitada nos autos.
9- Também, não podem existir dúvidas que o Supremo Tribunal de Justiça, violou princípios basilares da nossa Constituição, essenciais para a decisão a proferir, negando ao arguido o acesso a uma decisão justa e equitativa, tal como prevê a Constituição nas citadas normas.
10. No que se refere ao requerimento de recurso basta que o recorrente sinalize as normas violadoras, as violadas e que faça expressa menção dessa violação e desde a 1ª hora nas instâncias, o que fez e não suscitou o convite a aperfeiçoar ou a complementar!
11- Acresce que a concretização da ilegalidade está o reclamante preparado para a fazer nas suas alegações e após notificação para tanto.
12- Por outro lado, a invocada ilegalidade, desde a primeira hora nas instâncias, foi-o no aspeto funcional, tendente que essas mesmas instâncias não se abstivessem de valorar, em sede de prova, um documento que faz fé pública, com um certificado de registo criminal ou que não pusessem em causa o direito que uma arguido tem de permanecer em silêncio.(…)
14- Como se começou por referir, o recurso interposto ao abrigo das alíneas c) e f) do n.° 1 do artigo 70.°, da LTC, pressupõe que a questão de constitucionalidade que se aporta à jurisdição constitucional tenha sido previamente suscitada durante o processo perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida.
15- Para se aferir do cumprimento desse ónus específico, importa atentar no teor das conclusões do recurso interposto para o Tribunal a quo, pois são estas que delimitam o seu objeto.
16- Ora, o ónus de suscitação de uma questão de constitucionalidade pressupõe que se coloque o tribunal recorrido perante o dever de apreciação da constitucionalidade de uma norma legal individualizada, havendo de concretizar-se o sentido desse preceito de modo a que, em geral de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual é o preceito e com que sentido ele não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição.(…)
19- E basta ver as conclusões citadas para verificar a referência às normas cuja ilegalidade, por omissão, se quer sindicar.
20- O Acórdão de Revisão, do Supremo Tribunal de Justiça, é inconstitucional porque violador de princípios constitucionais.
21- Em conclusão pede que seja a presente reclamação deferida e, em consequência, seja notificado para apresentar as alegações de recurso «..., onde melhor concretizará os fundamentos em que alicerça o seu juízo e pedido de ilegalidade/ inconstitucionalidade, por não aplicação das normas enunciadas.”
7. Notificado, o Ministério Público apresentou resposta, manifestando a sua concordância com a decisão reclamada, pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação, nos seguintes termos:
«(…) 2º
Tal como a lei exige (artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC), no respetivo requerimento indica-se que o recurso é interposto ao abrigo das alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
3º
Esta identificação define o tipo de recurso interposto, pelo que é aceitando-se essa indicação que se deverá indagar da verificação dos pressupostos de admissibilidade.
4º
Só assim não será se do conjunto do requerimento se concluir que a indicação da alínea se deveu a um mero lapso, o que não é o caso dos autos, dizendo-se, designadamente, no requerimento:
“(…) interpor recurso para o Tribunal Constitucional do douto acórdão proferido nos autos de revisão, porquanto aplicou normas cuja ilegalidade fora suscitada durante o processo, por violação da lei de valor reforçado”.
5.º
Ora, como nos parece evidente, não foi recusada a aplicação de qualquer norma com fundamento em ilegalidade, por violação da lei de valor reforçado (alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC).
6.º
Por outro lado, nem no requerimento de interposição do recurso nem “durante o processo” foi suscitado aquele “tipo” de ilegalidade.
7.º
Quanto a este ponto diríamos que, efetivamente, no requerimento de interposição do recurso o recorrente afirma que “a presente violação foi invocada pelo recorrente no seu recurso de revisão”.
8.º
Ora, vendo tal peça processual, constata-se que ali - e mesmo posteriormente – não foi suscitada qualquer questão de ilegalidade.
9.º
Aliás, vendo todas as peças apresentadas pelo recorrente, aí se incluindo a presente reclamação, continua a desconhecer-se qual a norma que seria ilegal e qual a lei de valor reforçado que se entende ter sido ser violada.
10.º
Naturalmente que não radicando o não conhecimento do objeto do recurso em qualquer deficiência formal e suprível de que o requerimento de interposição enfermasse, mas antes na inverificação de requisitos de admissibilidade, notificar o recorrente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6 da LTC, não se revestiria de qualquer utilidade.
11.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
8. Nos presentes autos foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso, por não cumprimento dos pressupostos constantes das alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
A presente reclamação apresenta a seguinte motivação:
A «questão da ilegalidade foi sempre levantada nos autos» (cfr. n.º 8 da reclamação, fls. 109 dos autos);
O recorrente teria «sinaliz[ado] as normas violadoras, as violadas e [feito] expressa menção dessa violação desde a primeira hora nas instâncias» (cfr. n.º 10 da reclamação, fls. 109 dos autos);
A «referência às normas cuja ilegalidade, por omissão, se quer sindicar» pode ser encontrada nas «conclusões do recurso interposto para o Tribunal a quo» (cfr. n.os 15 e 19 da reclamação, fls. 110 e 111 dos autos);
É o que se irá apreciar.
9. O presente recurso foi interposto ao abrigo das alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. A presente reclamação reitera esse facto (cfr. n.os 4 e 14 da reclamação, fls. 108 e 109 dos autos).
Ora, nos termos destes preceitos, é admissível recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais «que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado» ou «que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e)».
É à luz destes preceitos que é necessário verificar o cumprimento dos pressupostos do recurso com fundamento em ilegalidade de norma por violação de lei de valor reforçado, constantes das alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, pelo requerimento de interposição de recurso.
10. A Decisão Sumária n.º 149/2013 decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto pois (fls. 93 dos autos):
Desde logo, não se verifica que o tribunal recorrido tenha recusado «a aplicação de norma constante de ato legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado» no aresto recorrido.
Por outro lado, não se vislumbra – e não foi invocada – qualquer questão de ilegalidade cognoscível pelo Tribunal Constitucional e suscetível de lhe servir de base. Em parte alguma do requerimento ou do respetivo processo se fundamentou a arguição de «ilegalidade» da referida norma em «violação de lei com valor reforçado» ou em «violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República».
11. O reclamante alega que a questão de ilegalidade por violação de lei com valor reforçado foi suscitada nas conclusões de recurso para o Tribunal a quo.
Compulsando a peça processual em causa (cfr. n.º 2 do presente acórdão; cfr. também fls. 2 ss., em especial, fls. 5 e 6, dos autos) não se encontra tal suscitação.
Assim sendo, não se encontra motivo para emitir um juízo de censura relativamente à Decisão sumária n.º 149/2013.
III - Decisão
12. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária proferida.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 21 de maio de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.