Imprimir acórdão
Processo n.º 354/13
Plenário
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. O Presidente da República requereu, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), do n.º 1 do artigo 51.º e n.º 1 do artigo 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação preventiva da constitucionalidade das seguintes normas referentes aos Decreto n.º 132/XII e n.º 136/XII:
I) “a) Das normas previstas no nº 1 do artigo 2º e da alínea c) do nº 1 do artigo 3º do Decreto nº 136/XII, e as normas constantes do artigo 2º, do artigo 3º, dos nºs 1, 2 e 4 do artigo 63º, dos nºs 1 a 3 do artigo 64º, do artigo 65º, dos artigos 89º, 90º, 91º, 92º e 93º do Anexo I ao mesmo decreto e, por conexão material necessária, as disposições normativas constantes dos Anexos II e III, na parte respeitante às comunidades intermunicipais, e de cuja conjugação normativa (…) resulte a interpretação de que as mesmas comunidades constituiriam um novo ente dotado dos elementos fundamentais de qualificação das autarquias locais, com fundamento na violação:
i) Do princípio da tipicidade das autarquias no território continental previsto no nº 1 do artigo 236º da CRP;
ii) Do princípio de eleição por sufrágio universal direto e secreto do órgão deliberativo das autarquias locais contido no nº 2 do artigo 239º da CRP.
b) Da norma resultante da conjugação das disposições normativas impugnadas na alínea precedente, na interpretação alternativa que sustente que as comunidades intermunicipais constituiriam uma forma específica de organização territorial autárquica ou uma associação de municípios, na medida em que essa solução interpretativa violaria os requisitos constitutivos dessas entidades que constam, respetivamente, do nº 3 do artigo 236º e do artigo 253º da CRP.”
II) “a) A título principal, da norma da alínea k) do nº 1 do artigo 25º, da norma do nº 1 e da primeira parte do nº 2 do artigo 100º, conjugada com as normas do artigo 101º, e do artigo 102º e, ainda as normas do nº 1 do artigo 103º e artigo 107º e a título consequencial, das normas dos artigos 104º. 105º, 106º, 108º, 109º e 110º do Decreto nº 132/XII, na interpretação que envolva faculdade de o Governo poder delegar as suas competências constitucionais nos municípios e comunidades intermunicipais, com fundamento na violação do nº 2 do artigo 111º da CRP;
b) Das normas referidas na alínea precedente e em interpretação alternativa à que foi aí formulada, da qual resulte uma habilitação virtualmente “em branco”, concedida a departamentos governamentais, para poderem delegar competências administrativas do Governo, não expressamente previstas na Constituição e respeitantes a um objeto material indefinido de ordem económica e social, da qual resulte que a identificação primária das matérias delegáveis seja operada mediante contrato interadministrativo, violando-se o princípio da legalidade administrativa constante do nº 2 do artigo 112.º, do nº 2 do artigo 3º e do nº 2 do artigo 266º da Constituição da República.”
III) “(…) Finalmente, a fiscalização preventiva das normas constantes do artigo 1º do Decreto nº 136/XII, a título de inconstitucionalidade consequente em relação às normas precedentemente impugnadas e ao restante preceituado onde estas figuram, na medida em que o mesmo preceito revoga legislação vigente no pressuposto da entrada em vigor do regime constante do Decreto nº 132/XII.”
2. Resumidamente, são os seguintes os fundamentos invocados para cada um dos pedidos:
I) De acordo com os fundamentos aduzidos no requerimento, a forma como são gizadas as comunidades intermunicipais – que são, a par das áreas metropolitanas, entidades intermunicipais – corresponde, em boa parte, à definição constitucional de autarquias locais. Desta forma, as normas objeto do pedido de fiscalização procederiam à criação material de um novo tipo de autarquia local, o que resultaria numa violação do princípio da tipicidade constitucional das autarquias locais – pois seriam autarquias não previstas no artigo 236.º, n.º 1, da CRP. Para além disso, se as comunidades intermunicipais forem consideradas autarquias locais atípicas, então as regras relativas à composição e estatuto do seu órgão deliberativo não obedeceriam ao princípio da representação democrática direta estabelecido no artigo 239.º, ns.º 1 e 2, da Lei Fundamental.
Em alternativa, o requerimento admite que da interpretação do regime ora previsto não resulte a qualificação das comunidades intermunicipais como autarquias locais, mas sim como «outra forma de organização territorial autárquica», prevista no artigo 236.º, n.º 3, da CRP, ou como uma associação ou federação de municípios (artigo 253.º da CRP). Ainda assim se manteria a inconstitucionalidade das normas em causa, de acordo com o requerimento. Por um lado, porque a criação de «outra forma de organização territorial autárquica» está reservada para as «grandes áreas urbanas e as ilhas» - enquanto o Decreto n.º 132/XII cria comunidades intermunicipais em todo o território nacional. Existiria, assim, uma violação do artigo 236.º, n.º 3, da CRP. Por outro lado, se as comunidades intermunicipais forem consideradas uma associação ou federação de municípios, também se deveria concluir pela sua inconstitucionalidade, uma vez que se tratam de entidades obrigatórias, criadas pelo Estado por lei, violando o caráter necessariamente voluntário do processo associativo municipal, nos termos do artigo 253.º da CRP.
II) De acordo com o invocado no requerimento, a possibilidade de delegação de competências (ou atribuições) por parte do Governo nos municípios e nas entidades intermunicipais está formulada de forma tão abrangente que não exclui a possibilidade de delegação de competências administrativas do Governo previstas na CRP, nomeadamente no artigo 199.º, ou diretamente conexas com estas. Ora, e ainda de acordo com o requerimento, decorre do artigo 111.º, n.º 2, da CRP que uma tal delegação por um órgão de soberania de competências ou atribuições constitucionalmente previstas dependeria de norma constitucional habilitante – que não existe neste caso. Nestes termos, dever-se-ia concluir pela inconstitucionalidade do conjunto das normas em causa, a título principal e consequencial, por violação do artigo 111.º, n.º 2, da CRP.
O Requerente admite, no entanto, que se possa fazer uma interpretação conforme à Constituição das normas em causa, excluindo do âmbito do poder de delegação as matérias de competência administrativa do Governo decorrentes da Lei Fundamental. Neste caso, no entanto, o requerimento defende que as normas em causa continuariam a suscitar dúvidas de constitucionalidade. O argumento utilizado é o de que as normas em causa, que deveriam constituir a lei habilitante para a delegação, não cumprem essa função, na medida em que são tão vagas e indeterminadas que não definem as matérias que podem ser objeto de delegação – constituindo verdadeiras habilitações em branco. Assim, a lei habilitante por falta de densidade normativa, teria renunciado à sua função – cabendo ao próprio ato de delegação (o contrato interadministrativo) a identificação primária dos poderes do delegante objeto de delegação, sem habilitação legal em concreto. Ora, esta falta de densidade normativa da lei habilitante redundaria na violação do princípio da legalidade administrativa, constante dos artigos 3.º, n.º 2, 112.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
III) Finalmente, ainda de acordo com o requerimento, a inconstitucionalidade consequente das normas constantes do artigo 1.º do Decreto n.º 136/XII deriva do facto de este Decreto ter sido aprovado no pressuposto da entrada em vigor do Decreto n.º 132/XII. Assim, pronunciando-se o Tribunal Constitucional pela inconstitucionalidade deste último Decreto, daí resultaria, por considerações lógico-sistemáticas, a inconstitucionalidade do Decreto n.º 136/XII.
3. O requerimento deu entrada, neste Tribunal, no dia 3 de maio de 2013, tendo sido admitido, o pedido, na mesma data.
4. Elaborado o memorando a que alude o artigo 58.º, n.º 2 da LTC, cabe agora decidir de acordo com a orientação que o Tribunal fixou.
5. As normas objeto do pedido de apreciação de conformidade com a Constituição da República Portuguesa constam do Decreto n.º 132/XII e do Decreto n.º 136/XII.
6. São do seguinte teor as disposições referentes ao Decreto n.º 132/XII:
Artigo 1.º
Objeto
1 - A presente lei aprova:
a) O regime jurídico das autarquias locais;
b) O estatuto das entidades intermunicipais;
c) O regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, assim como da delegação de competências do Estado nas autarquias locais e nas entidades intermunicipais e dos municípios nas entidades intermunicipais e nas freguesias.
d) O regime jurídico do associativismo autárquico.
2 - Os regimes jurídicos e o estatuto referidos no número anterior são aprovados no anexo I à presente lei, da qual faz parte integrante.
Artigo 2.º
Sucessão
1 - As entidades intermunicipais constantes no anexo II à presente lei, da qual faz parte integrante, sucedem nos direitos e deveres e nas responsabilidades legais, judiciais e contratuais, assim como integram o património mobiliário e imobiliário e os ativos e passivos das áreas metropolitanas referidas na Lei n.º 46/2008, de 27 de agosto, alterada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e das comunidades intermunicipais reguladas pela Lei n.º 45/2008, de 27 de agosto, nos termos constantes no anexo III, à presente lei, da qual faz parte integrante.
2 - Mantêm-se válidos e em vigor, com as devidas adaptações, e em tudo o que não contrarie o disposto no estatuto das entidades intermunicipais aprovados no anexo I à presente lei, da qual faz parte integrante, os regulamentos com eficácia externa e os regulamentos de organização e funcionamento dos serviços das áreas metropolitanas referidas na Lei n.º 46/2008, de 27 de agosto, alterada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e das comunidades intermunicipais reguladas pela Lei n.º 45/2008, de 27 de agosto.
Artigo 3.º
Norma revogatória
1 - São revogados:
a) O Decreto-Lei n.º 78/84, de 8 de março;
b) A Lei n.º 159/99, de 14 de setembro, alterada pelos Decretos-Leis n.ºs 7/2003, de 15 de janeiro, e 268/2003, de 28 de outubro, e pelas Leis n.ºs 107-B/2003, de 31 de dezembro, 55-B/2004, de 30 de dezembro, 60-A/2005, de 30 de dezembro, 53-A/2006, de 29 de dezembro, 67-A/2007, de 31 de dezembro, 64-A/2008, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, e 55-A/2010, de 31 de dezembro;
c) A Lei n.º 45/2008, de 27 de agosto, sem prejuízo do disposto no número seguinte;
d) A Lei n.º 46/2008, de 27 de agosto, alterada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2- Os artigos 23.º a 30.º da Lei n.º 45/2008, de 27 de agosto e os artigos 23.º a 28-º da Lei n.º 46/2008, de 27 de agosto, alterada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, mantêm-se em vigor até 31 de dezembro de 2013.
Artigo 4.º
Entrada em vigor
Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo anterior, a presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da realização das eleições gerais para os órgãos das autarquias locais imediatamente subsequentes à sua publicação.”
Adiante, em sede de fundamentação e a propósito da apreciação de cada pedido, reproduzir-se-ão os diversos preceitos que integram as normas a apreciar constantes do anexo I do Decreto n.º 132/XII (que aprova, entre outros, o novo regime jurídico das autarquias locais, de ora em diante identificado como NRJAL. Devem ser entendidos por referência ao mesmo os artigos mencionados no texto que se segue, sem menção adicional).
7. As disposições referentes ao Decreto n.º 136/XII têm a seguinte redação:
Artigo 1.º
Revogação
São revogados:
a) Os artigos 1.º a 3.º, 10.º-A, 13.º a 16.º, as alíneas c) a o) e q) a s) do n.º 1 e os n.ºs 2 a 6 do artigo 17.º, os artigos 18.º a 20.º, o n.º 1 do artigo 23.º, 30.º a 41.º, 46.º-A, 49.º a 52.º-A, as alíneas b) a j) e m) a r) do n.º 1 e os n.ºs 2 a 8 do artigo 53.º, os artigos 54.º e 55.º, 62.º a 74.º, 81.º a 95.º, e 98.º e 99.º da Lei n.º 169/99, de 18 de setembro, alterada e republicada pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de janeiro, pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, e pela Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro;
b) O n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 310/2002, de 18 de dezembro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 156/2004, de 30 de junho, 9/2007, de 17 de janeiro, 114/2008, de 1 de julho, 48/2011, de 1 de abril, e 204/2012, de 29 de agosto, na parte em que refere as alíneas b), c) e f) do artigo 1.º do mesmo diploma, bem como as suas subsequentes disposições relativas à titularidade da competência para o licenciamento das atividades de venda ambulante de lotarias, de arrumador de automóveis e atividades ruidosas de caráter temporário que respeitem a festas populares, romarias, feiras, arraiais e bailes;
c) Os artigos 2.º a 7.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 44.º, 103.º, 105.º e 177.º a 187.º do Código Administrativo.
Artigo 2.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da realização das eleições gerais para os órgãos das autarquias locais imediatamente subsequentes à sua publicação.
II - Fundamentação
8. As questões de constitucionalidade colocadas incidem sobre os seguintes conteúdos dos diplomas em referência:
I. O estatuto das comunidades intermunicipais criadas pelo Decreto n.º 132/XII;
II. A delegação de competências do Estado nas autarquias locais, prevista no mesmo diploma; e
III. A revogação, pelo Decreto n.º 136/XII, de legislação vigente no pressuposto da entrada em vigor do Decreto n.º 132/XII.
A. Enquadramento do Decreto n.º 132/XII e do Decreto n.º 136/XII
a) Considerações gerais
9. O objeto do pedido incide sobre normas constantes de dois Decretos: o Decreto n.º 132/XII e o Decreto n.º 136/XII.
O Decreto n.º 132/XII estabelece o regime jurídico das autarquias locais, aprova o estatuto das entidades intermunicipais, estabelece o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais e aprova o regime jurídico do associativismo autárquico. Dispondo sobre um âmbito alargado de matérias (patente na norma revogatória constante do seu artigo 3.º), o diploma reconduz-se à reforma da gestão municipal e intermunicipal.
Por sua vez, o Decreto n.º 136/XII procede à revogação expressa de diversas disposições constantes da Lei n.º 169/99, de 18 de setembro, que estabelece o quadro de competências, assim como o regime de funcionamento, dos órgãos dos municípios e das freguesias, do Decreto-Lei n.º 310/2002, de 18 de dezembro, que regula o regime jurídico do licenciamento e fiscalização pelas câmaras municipais de atividades diversas anteriormente cometidas aos governos civis, bem como do Código Administrativo.
10. O Decreto n.º 132/XII e o Decreto n.º 136/XII, objeto do presente pedido de fiscalização preventiva, enquadram-se num conjunto de alterações legislativas que integram a designada “Reforma da Administração Local”, tal como é explicitado na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 104/XII, que deu origem ao Decreto n.º 132/XII.
Os traços essenciais desta “Reforma” podem ser encontrados na Resolução do Conselho de Ministros n.º 40/2011, de 22 de setembro e no “Documento Verde da Reforma da Administração Local – Uma Reforma de Gestão, uma Reforma do Território e uma Reforma Política”.
Pretende-se, nomeadamente quanto à gestão municipal, intermunicipal e financiamento:
a) Avaliar o impacto decorrente do exercício de competências por parte de estruturas associativas municipais, utilizando como modelo duas das comunidades intermunicipais (CIM) já existentes, uma com características rurais ou predominantemente rurais e uma outra de feição urbana, tendo por objetivo a sua articulação com as atuais competências dos órgãos municipais e a sua consequente redefinição, promovendo-se uma reformatação dos seus poderes e potenciando-se a racionalização dos recursos públicos;
b) Determinar que tal avaliação seja concretizada em articulação com os respetivos municípios e as comissões de coordenação e desenvolvimento regional competentes;
c) Promover a alteração do regime jurídico do associativismo municipal, objetivando a sua regulação, racionalização e aglutinação.
11. Por seu lado, no “sumário executivo” do “Documento Verde da Reforma da Administração Local”, apresentado em 26 de setembro de 2012, lê-se que «A Reforma da Administração Local viu reforçada a sua dimensão política por força do Memorando de Entendimento estabelecido entre o Governo Português, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, no âmbito do qual foi assumido o compromisso político da reorganização da Administração Local até junho de 2012».
Em último lugar, ainda em sede de enquadramento, refere-se que no “Memorando de Entendimento sobre as condicionalidades de política económica”, datado de 17 de maio de 2011 (acessível em https://infoeuropa.eurocid.pt/registo/000046743) consta, no Ponto 3.44 o programa político do Estado português «Reorganizar a estrutura da Administração Local. Existem atualmente 308 municípios e 4.259 freguesias. Até julho 2012, o Governo desenvolverá um plano de consolidação para reorganizar e reduzir significativamente o número destas entidades. O Governo implementará estes planos baseado num acordo com a CE e o FMI. Estas alterações, que deverão entrar em vigor no próximo ciclo eleitoral local, reforçarão a prestação do serviço público, aumentarão a eficiência e reduzirão custos».
b) Enquadramento jurídico-constitucional
12. O conjunto de normas objeto do pedido de fiscalização encontra-se englobado na área das autarquias locais e do poder local.
Importa, por isso, começar por abordar a questão de forma genérica.
Como sintetiza Melo Alexandrino, «a Constituição é relevante para o direito das autarquias locais pelo menos por três ordens de razões. A primeira porque é na Constituição que estão definidos os valores e os princípios estruturantes do direito local (…). A segunda porque a Constituição de 1976 teve uma clara intenção de definir expressamente a organização do poder político ao nível local, elevando por isso os órgãos do poder local a órgãos constitucionais e revestindo-os de um sistema de garantias constitucionais similares às aplicáveis aos órgãos de soberania e aos órgãos das regiões autónomas (…). A terceira porque a constituição regulou exaustivamente inúmeras outras facetas da administração e do regime local, naquilo que podemos qualificar como direito constitucional local» (J. de Melo Alexandrino, «Direito das Autarquias Locais», Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. IV, 2010, p. 29).
De facto, a existência de uma garantia constitucional de autarquias locais, constante no artigo 235.º, n.º 1, da CRP, tem um sentido de garantia institucional, assegurando a existência de administração local autárquica autónoma. A garantia da autonomia local é um limite ao próprio poder de revisão constitucional (artigo 288.º, alínea n), da CRP) e tem um âmbito de proteção amplo.
13. O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 432/93 assinala o primeiro teste da consistência do conceito de autonomia local na jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. Artur Maurício, «A Garantia Constitucional da Autonomia Local à Luz da Jurisprudência do Tribunal Constitucional», in Estudos em Homenagem ao Conselheiro Cardoso da Costa, p. 635). Nessa ocasião, o Tribunal sublinhou que as autarquias locais são justificadas pelos valores da liberdade e da participação e concorrem para a organização democrática do Estado, conformando um «âmbito de democracia». Mais se salientou, então, que a Constituição não traça para as autarquias locais um «figurino de mera administração autónoma do Estado», pois constituem «uma estrutura do poder político», assumindo as normas que organizam o seu poder uma «justificação eminentemente democrática» e fundando-se o poder autárquico numa «ideia de consideração e representação aproximada de interesses».
Em jurisprudência subsequente veio a sublinhar-se que as autarquias locais integram a administração autónoma, existindo entre elas e o Estado uma relação de supraordenação-infraordenação, dirigida à coordenação de interesses distintos (nacionais, por um lado, e locais, por outro), e não uma relação de supremacia-subordinação dirigida à realização de um único interesse, designadamente o interesse nacional. No Acórdão n.º 379/96, teve o Tribunal Constitucional ocasião de expressar o seu entendimento sobre o enquadramento jurídico-constitucional das autarquias locais:
«A Constituição da República, no seu artigo 6.º, n.º 1 - depois de caracterizar o Estado como unitário - acrescenta que ele 'respeita na sua organização os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública'. Este princípio da autonomia das autarquias locais - que as leis de revisão constitucional terão de respeitar [cf. artigo 288º, alínea n)] - é, depois, desenvolvido no título VIII da Lei Fundamental, subordinado à rubrica 'poder local'. As autarquias locais são pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas (cf. artigo 237º, nº 2, da Constituição). Constituem, assim, verdadeira administração autónoma. E mais: são 'estruturas do poder político'. É certo que é a lei que há de regular 'as atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos' (cf. artigo 239º da Constituição). Mas, ao desimcumbir-se dessa tarefa, o legislador não pode pôr em causa o núcleo essencial da autonomia local; tem antes que orientar-se pelo princípio da descentralização administrativa e reconhecer às autarquias locais um conjunto de atribuições próprias (e aos seus órgãos um conjunto de competências) que lhes permitam satisfazer os interesses próprios (privativos) das respetivas comunidades locais. A este propósito, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada , 3ª edição, Coimbra, 1993, página 887), depois de acentuarem que a Constituição não define as matérias de competência autárquica, acrescentam:
Todavia a lei não goza de total liberdade de conformação. A garantia institucional da autonomia local estabelece limites e requisitos. Primeiro, a lei não pode deixar de definir às autarquias um mínimo razoável de atribuições. Depois, essas atribuições não podem ser umas quaisquer, devendo referir-se aos interesses próprios das respetivas comunidades locais [...].
[Cf. também J. BATISTA MACHADO (Participação e Descentralização. Democratização e Neutralidade da Constituição de 1976, Coimbra, 1982, página 17) e J. CASALTA NABAIS (A Autonomia Local, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, II, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, Coimbra, 1993, sp. páginas 161, 162, 171 e 175)]».
14. Importa igualmente referir que as linhas gerais que condensam o estatuto constitucional das autarquias locais são completadas pela Carta Europeia da Autonomia Local, de 1985, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 28/90, de 23 de outubro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 58/90, de 23 de outubro – e por isso vigente na nossa ordem jurídica por força do artigo 8.º, n.º 2, da CRP. Segundo o artigo 3.º, n.º 1, da referida Carta, o princípio da autonomia local pressupõe e exige, entre outros, o direito e a capacidade de as autarquias regulamentarem e gerirem, nos termos da lei, sob a sua responsabilidade e no interesse das respetivas populações, uma parte importante dos assuntos públicos. Por seu lado, o artigo 4.º da Carta estabelece a necessidade de as atribuições fundamentais das autarquias locais serem fixadas pela Constituição ou por lei e delas distingue os casos de delegação de poderes por uma autoridade central ou regional.
Aqui chegados importa abordar o pedido de constitucionalidade formulado.
B. As questões de constitucionalidade colocadas
I. O estatuto das comunidades intermunicipais criadas pelo Decreto n.º 132/XII
a) O pedido de fiscalização
15. A primeira questão de constitucionalidade colocada incide sobre as «normas previstas no n.º 1 do artigo 2.º e da alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto n.º 132/XII, e as normas constantes do artigo 2.º, do artigo 3.º, dos n.os 1, 2 e 4 do artigo 63.º, dos n.os 1 a 3 do artigo 64.º, do artigo 65.º, dos artigos 89.º, 90.º, 91.º, 92.º e 93.º do Anexo I ao mesmo decreto e, por conexão material necessária, as disposições normativas constantes dos Anexos II e III, na parte respeitante às comunidades intermunicipais, e de cuja conjugação normativa, feita nos termos da fundamentação deste requerimento, resulte a interpretação de que as mesmas comunidades constituiriam um novo ente dotado dos elementos fundamentais de qualificação das autarquias locais».
Apesar da referência, no artigo 50.º do requerimento, ao Decreto n.º 136/XII, deve entender-se que se trata de um lapso manifesto e que o pedido diz respeito a normas constantes do Decreto n.º 132/XII, tendo em conta a fundamentação do requerimento (desde logo, é essa a referência que consta no início do requerimento).
16. As disposições do NRJAL convocadas para esta apreciação são, pois, as seguintes:
Artigo 2.º
Atribuições
Constituem atribuições das autarquias locais e das entidades intermunicipais a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações.
Artigo 3.º
Competências
As autarquias locais e as entidades intermunicipais prosseguem as respetivas atribuições através do exercício pelos respetivos órgãos das competências legalmente previstas, designadamente:
a) De consulta;
b) De planeamento;
c) De investimento;
d) De gestão;
e) De licenciamento e controlo prévio;
f) De fiscalização.
Artigo 63.º
Natureza e regime
1 - As entidades intermunicipais são pessoas coletivas de direito público de âmbito territorial autárquico que integram a administração autónoma municipal.
2 - São entidades intermunicipais a área metropolitana e a comunidade intermunicipal.
3 - (…).
4 - O estatuto das entidades intermunicipais é o constante dos artigos seguinte a 98.º.
Artigo 64.º
Criação
1 - As entidades intermunicipais são criadas por lei e constituem unidades administrativas, também para os efeitos previstos no Regulamento (CE) n.º 1059/2003, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de maio, relativo à instituição de uma nomenclatura comum às unidades territoriais estatísticas (NUTS).
2 - Não podem ser criadas entidades intermunicipais com um número de municípios inferior a cinco nem com população inferir a 85 000 habitantes.
3 - São criadas as entidades intermunicipais constantes no anexo II.
Artigo 65.º
Atribuições
Constituem atribuições das entidades intermunicipais a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das populações abrangidas pelas circunscrições territoriais respetivas, em articulação com os municípios.
Artigo 89.º
Órgãos
São órgãos da comunidade intermunicipal o conselho intermunicipal, a comissão executiva intermunicipal e o conselho estratégico para o desenvolvimento intermunicipal.
Artigo 90.º
Conselho intermunicipal
1 - É aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 67.º a 71.º.
2 - O conselho intermunicipal é constituído por um presidente e dois vice-presidentes.
Artigo 91.º
Comissão executiva intermunicipal
1 - É aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 72.º a 82.º.
2 - A comissão executiva intermunicipal tem um primeiro-secretário e dois secretários intermunicipais.
3 - O primeiro-secretário é obrigatoriamente remunerado.
4 - O conselho intermunicipal delibera, por unanimidade, sobre o número de secretários intermunicipais remunerados, o qual é, no mínimo, um.
Artigo 92.º
Conselho estratégico para o desenvolvimento intermunicipal
É aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 83.º e 84.º.
Artigo 93.º
Funcionamento
É aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 85.º a 88.º.
b) Antecedentes legais do estatuto das entidades intermunicipais previsto no anexo I do Decreto n.º 132/XII
17. O conjunto de normas em apreciação incide sobre a natureza e estatuto da “Comunidade Intermunicipal”, enquanto figura criada pelo NRJAL.
O regime ali definido para as comunidades intermunicipais representa uma alteração da natureza e estatuto das pessoas coletivas designadas por “Comunidades Intermunicipais” previstas na Lei n.º 45/2008, de 27 de agosto, atualmente em vigor. Por sua vez, o regime das áreas metropolitanas consta da Lei n.º 46/2008, de 27 de agosto.
Importa, assim, começar por recordar os traços gerais do regime vigente das referidas entidades.
18. Nos termos do regime definido na Lei n.º 45/2008, que aprovou o regime do associativismo municipal, as comunidades intermunicipais constituem associações de municípios de fins múltiplos, sendo pessoas coletivas de direito público constituídas por municípios que correspondam a uma ou mais unidades territoriais definidas com base nas Nomenclaturas das Unidades Territoriais Estatísticas de nível III (NUTS III), adotando o nome destas (artigo 2.º, n.º 2).
Ainda de acordo com o regime em vigor, as comunidades intermunicipais são entidades criadas pela livre vontade dos municípios, sendo instituídas em concreto, mediante a aprovação dos seus estatutos pelas assembleias municipais da maioria absoluta dos municípios que as integrem (artigo 4.º, n.º 1). São, portanto, entidades estruturalmente associativas quanto à sua constituição, sendo pessoas coletivas constituídas por outras pessoas coletivas, no caso, os municípios.
São titulares de património e finanças próprias, sendo beneficiárias de transferências do Orçamento do Estado e podendo contrair empréstimos sujeitos ao limite e à capacidade de endividamento dos municípios associados (artigos 26.º e 27.º).
Pertencendo ao setor da administração autónoma, enquanto expressão, no plano formal, do conjunto de entidades públicas que são criadas e existem para a prossecução de interesses próprios, as comunidades intermunicipais são titulares de atribuições que envolvem, essencialmente: fins de planeamento e gestão de desenvolvimento económico, social e ambiental; articulação de investimentos municipais de interesse supramunicipal; participação na gestão de programas de apoio ao desenvolvimento regional, designadamente no âmbito do Quadro de Referência Estratégico Nacional; planeamento das atuações de entidades públicas, de caráter supramunicipal; articulação dos municípios e administração central em áreas sociais, sanitárias, de equipamentos, educativas e culturais; e exercício de atribuições sobre competências transferidas pela administração central ou delegadas pelos municípios (artigo 5.º).
Este regime é substancialmente alterado pelo NRJAL aprovado pelo Decreto n.º 132/XII.
c) O estatuto das comunidades intermunicipais previsto no NRJAL
19. O regime constante do NRJAL prevê, entre outros, “O estatuto das entidades intermunicipais” (artigo 1.º, n.º 1, alínea a), do Decreto n.º 132/XII), onde se inclui o estatuto das comunidades intermunicipais. De facto, as comunidades intermunicipais são configuradas pelo NRJAL como um tipo de entidades intermunicipais, paralelo às áreas metropolitanas (artigo 63.º, n.º 2).
O regime jurídico das comunidades intermunicipais encontra-se especificamente previsto no título III do NRJAL (artigos 63.º e ss.), integrando o seu capítulo III, e é, no essencial, composto por normas remissivas para o regime previsto para a “Área Metropolitana”, a outra entidade intermunicipal prevista no diploma (designadamente no capítulo II do mesmo título).
As comunidades intermunicipais são configuradas pelo NRJAL como «pessoas coletivas de direito público de âmbito territorial autárquico que integram a administração autónoma municipal» (artigo 63.º, n.º 1) e unidades administrativas (artigo 64.º, n.º 1).
Outro traço caracterizador do novo regime das comunidades intermunicipais consiste na sua instituição resultante diretamente da lei. Nos termos do artigo 64.º, n.º 1, a criação destas pessoas coletivas dá-se por via legal, com respeito pelo limite estabelecido no n.º 2 do mesmo artigo, i. e., não podendo ser criadas entidades intermunicipais com um número de municípios inferior a cinco nem com população inferior a 85 000 habitantes.
As suas atribuições são definidas logo no artigo 2.º da parte geral do NRJAL, expressamente a par das atribuições das autarquias locais, através de uma cláusula geral («a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações»). Esta cláusula é reiterada pelo artigo 65.º, que retoma a técnica da cláusula geral («constituem atribuições das entidades intermunicipais a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das populações abrangidas pelas circunscrições territoriais respetivas»), adicionando a exigência de «articulação com os municípios».
Retomando o paralelismo com as autarquias locais, o artigo 3.º indica as competências das entidades intermunicipais (consulta, planeamento, investimento, gestão, licenciamento, controlo prévio e fiscalização) e o artigo 4.º identifica os princípios gerais a respeitar na prossecução das respetivas atribuições e exercício de competências (“a prossecução das atribuições e o exercício das competências das autarquias locais e das entidades intermunicipais devem respeitar os princípios da descentralização administrativa, da subsidiariedade, da complementaridade, da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos e a intangibilidade das atribuições do Estado”).
Nos termos do artigo 63.º, n.º 3, as comunidades intermunicipais, tal como as autarquias (artigo 242.º da CRP), estão sujeitas ao regime da tutela administrativa.
Finalmente, ao nível orgânico, depois de enunciar que os órgãos das comunidades intermunicipais são o conselho intermunicipal, a comissão executiva intermunicipal e o conselho estratégico para o desenvolvimento intermunicipal (artigo 89.º), o legislador define o respetivo regime por remissão para a estrutura orgânica prevista para as «áreas metropolitanas» (cfr. artigos 90.º a 93.º), entidades intermunicipais que constituem «formas de organização territorial autárquica» constitucionalmente previstas (cfr. o n.º 3 do artigo 236.º da CRP).
As entidades intermunicipais têm património próprio e autonomia financeira (artigo 70.º, n.º 1, alíneas c), n), p), w) e x), e artigo 81.º, n.º 1, alíneas h), i), m), n), t), x), aplicáveis às comunidades intermunicipais por força dos artigos 90.º e 91.º) e podem criar serviços próprios de apoio técnico e administrativo (artigo 87.º, n.º 1, por força do artigo 93.º), dispondo de pessoal próprio que se rege pelo regime jurídico do contrato de trabalho em funções públicas (artigo 88.º por força do artigo 93.º).
20. As entidades intermunicipais criadas pelo NRJAL (elencadas no seu anexo II) sucedem integralmente às áreas metropolitanas previstas na Lei n.º 46/2008, de 27 de agosto, alterada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e às comunidades intermunicipais reguladas pela Lei n.º 45/2008, de 27 de agosto, nos termos constantes no anexo III.
d) A violação do princípio da tipicidade constitucional das autarquias locais
21. O primeiro fundamento de inconstitucionalidade invocado no requerimento consiste na violação do princípio da tipicidade das autarquias no território continental previsto no n.º 1 do artigo 236.º da CRP.
De acordo com o entendimento expresso no requerimento, a figura da comunidade intermunicipal criada pelo NRJAL integra «elementos de qualificação que também compõem a caracterização constitucional do conceito de autarquia local, neles avultando o fato de serem pessoas coletivas públicas territoriais da administração autónoma, dotadas de órgãos representativos e que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas», sendo que a referida «assimilação ou equiparação institutiva, funcional, orgânica e competencial das comunidades intermunicipais às autarquias locais, permite concluir que o diploma impugnado instituiu, materialmente, um novo tipo de autarquia, sem prejuízo de, no plano literal e sistemático, o Decreto n.º 132/XII impugnado não denominar as mesmas comunidades como autarquias».
22. O pedido incide sobre o regime das comunidades intermunicipais. Nos termos do NRJAL, estas integram, a par das áreas metropolitanas, o conceito de entidades intermunicipais. Importa, pois, analisar este regime de forma a descortinar se o NRJAL regula as comunidades intermunicipais como se de autarquias locais atípicas se tratasse.
Neste propósito, importa sublinhar que a leitura do diploma evidencia, desde logo, a intenção de equiparação entre o regime estabelecido para as comunidades intermunicipais e o aplicável a formas de organização autárquica e, mais concretamente ainda, à forma de organização autárquica consistente nas autarquias locais constitucionalmente tipificadas (municípios, freguesias e regiões administrativas).
23. Recuperando o acima referido em sede de descrição dos traços gerais caracterizadores do regime jurídico previsto para as comunidades intermunicipais no NRJAL, estas são «pessoas coletivas de direito público de âmbito territorial autárquico que integram a administração autónoma municipal» (artigo 63.º, n.º 1), tendo portanto, natureza de pessoas coletivas territoriais – tal como as autarquias locais.
A criação das comunidades intermunicipais, bem como as suas eventuais modificações supervenientes e sua extinção, dá-se por via legal e não por via de associativismo municipal, ou seja, pela vontade dos municípios integrantes (artigo 64.º, n.º 1), o que revela, mais uma vez, equivalência com o regime constitucionalmente previsto para as categorias de autarquias locais expressamente identificadas na Constituição, também criadas, modificadas e extintas por lei (artigo 164.º, alínea n), da CRP).
Podem ser encontrados vários outros exemplos dessa equiparação entre os regimes aplicáveis às comunidades intermunicipais e às autarquias locais nas normas do NRJAL em apreciação. Como foi referido, no que respeita ao quadro de definição das atribuições, as comunidades intermunicipais gozam, tal como as autarquias, de uma cláusula geral de atribuições genéricas. O artigo 2.º prevê as atribuições de autarquias e de comunidades com a mesma cláusula geral e os artigos 7.º, 23.º e 65.º, aplicáveis, respetivamente, a freguesias, municípios e comunidades têm uma redação em tudo equivalente. O mesmo se pode dizer relativamente ao artigo 3.º, que tem como epígrafe «Competências», e aos princípios gerais a respeitar na prossecução das respetivas atribuições e exercício de competências (artigo 4.º) – sempre definidos em paralelismo com as das autarquias locais. Neste âmbito verifica-se, pois, uma equiparação funcional ou material às autarquias locais. Um outro aspeto em que se verifica a referida equiparação às autarquias locais é o da definição das relações entre o Estado e as comunidades intermunicipais, já que estas, tal como as autarquias (artigo 242.º da CRP), estão sujeitas ao regime da tutela administrativa (n.º 3 do artigo 63.º).
Quando não equipara o regime destas novas entidades intermunicipais diretamente ao regime jurídico estabelecido para as autarquias locais, o legislador equipara-o ao de outras formas de organização territorial autárquica, como acontece ao nível orgânico, com a definição dos respetivos órgãos e regime por remissão expressa e quase integral para a estrutura orgânica das áreas metropolitanas. Também na indicação das competências das comunidades intermunicipais, por força da utilização da técnica remissiva, mais uma vez vigora o princípio de equiparação a formas de organização territorial autárquica, no caso, os órgãos das áreas metropolitanas (artigos 89.º a 93.º).
24. São atribuídos às comunidades intermunicipais poderes públicos em tudo equiparáveis (e equiparados) aos das autarquias locais. Aí se incluem poderes regulamentares próprios e genéricos, para a emissão de regulamentos com eficácia externa. Esta competência regulamentar genérica, que pode ter por objeto quaisquer matérias da competência dos respetivos órgãos, revela mais um aspeto de equiparação das comunidades às autarquias (cfr. o artigo 70.º, n.º 1, alínea m), aplicável às comunidades por força do artigo 90.º, com o artigo 9.º, n.º 1, alínea f), e com o artigo 25.º, n.º 1, alínea g)), sendo que, relativamente a estas, o poder regulamentar encontra sede constitucional (artigo 241.º da CRP).
Os interesses prosseguidos por estas entidades não coincidem necessariamente com os interesses particulares de cada um dos municípios que as integram. As respetivas atribuições podem surgir como justapostas ou mesmo sobrepostas às dos municípios. Esse é o resultado expresso da lei que se refere a interesses próprios das populações destas entidades, a propósito da definição das suas atribuições (artigos 2.º, 7.º, 23.º e 65.º).
Além disso, as comunidades intermunicipais funcionam como uma estrutura organizativa com poderes supramunicipais, o que sugere um grau superior às autarquias locais existentes (municípios e freguesias). De facto, no diploma em apreciação, estabelecem-se várias competências daquelas entidades que implicam poderes relativos aos municípios, como o de emitir pareceres sobre o exercício de competências das assembleias municipais, mas também o poder de deliberar sobre «a forma de imputação material aos municípios integrantes da [comunidade intermunicipal] das despesas não cobertas por receitas próprias» (artigo 70.º, n.º 1, alíneas n) e bb), por força do artigo 90.º). A previsão de poderes públicos próprios no âmbito municipal vai ao ponto de se estabelecer a possibilidade do «exercício da competência de cobrança dos impostos municipais» pelos seus serviços (artigo 70.º, n.º 1, alínea o), por força do artigo 90.º). Para além disso, os conselhos intermunicipais das comunidades têm também competências de planeamento e programação, em áreas tão distintas como o ordenamento do território ou do ambiente, proteção civil ou redes de equipamentos de saúde, educação, cultura e desporto (artigo 70.º, n.º 1, alínea d), por força do artigo 90.º). Repare-se, aliás, que se prevê que as assembleias municipais (e não o conselho intermunicipal) possam aprovar moções de censura à comissão executiva intermunicipal, que podem determinar a demissão da comissão executiva, se corresponderem a pelo menos dois terços das assembleias municipais dos municípios que integram a respetiva comunidade. Este poder das assembleias municipais não está previsto relativamente às respetivas câmaras. Daqui se retira a importância supramunicipal destas entidades.
25. Assim, de acordo com o regime previsto, as comunidades intermunicipais caracterizam-se como pessoas coletivas públicas de população e território, de tipo supramunicipal, que são criadas pela lei, dotadas de atribuições genéricas e de fins múltiplos. As comunidades intermunicipais possuem competências alargadas ao nível da administração autónoma, aí se incluindo poderes genéricos de emissão de regulamentos administrativos com eficácia externa, serviços administrativos próprios e pessoal próprio, património próprio e autonomia financeira, prosseguindo interesses próprios – tudo em paralelo com o regime das autarquias locais.
Ora, como este Tribunal já assinalou, designadamente no Acórdão n.º 379/96, estes são elementos inerentes ao conceito constitucional de autarquia local (artigo 235.º, n.º 2, e 241.º da CRP). E, assim sendo, inevitável será concluir que as comunidades intermunicipais criadas pelo NRJAL constituem uma nova forma de organização administrativa territorial local: uma autarquia local atípica, que é imposta pelo Estado e reveste um grau superior.
Para esta conclusão, não se afigura determinante o NRJAL distinguir, ao longo do seu texto, entidades intermunicipais de autarquias locais (artigo 2.º ou 3.º, por exemplo). Relevante é, sim, a análise do regime legal aplicável a estas figuras. E, na verdade, do regime indicado resulta que o conceito legal de comunidade intermunicipal reúne, no essencial, os elementos estruturalmente caracterizadores e integrantes do conceito jurídico-constitucional de autarquias locais fornecido pelo n.º 2 do artigo 235.º da CRP, uma vez que se apresentam como «pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas», bem como do conceito, também jurídico-constitucional, de «outras formas de organização territorial autárquica», constante do n.º 3 do artigo 236.º da CRP.
Conclui-se, assim, que na conceção e regime propostos, as comunidades intermunicipais constituem, a par com as autarquias locais e as áreas metropolitanas, uma nova forma de organização administrativa territorial local, subsumível, perante os elementos fornecidos pelo NRJAL, no conceito de autarquia local do artigo 235.º da CRP ou no de «outras formas de organização territorial autárquica» contido no n.º 3 do artigo 236.º da CRP.
Todavia, no que respeita ao Continente, a Lei Fundamental prevê, no artigo 236.º, n.º 1, expressa e imperativamente, como autarquias locais, apenas as freguesias, os municípios e as regiões administrativas, não deixando ao legislador margem de liberdade para criar, por lei, outras categorias de autarquias locais equiparadas às ali previstas.
Sendo matéria reservada à Constituição, o legislador ordinário não dispõe de habilitação jurídico-constitucional para construir outros formatos de organização territorial do poder local, que possam afirmar-se como sucedâneos dos autorizados pela Lei Fundamental. Neste domínio, vigora um princípio constitucional da tipicidade das autarquias locais constitucionalmente admissíveis. Autarquias locais, são apenas as expressamente tipificadas e assim designadas pela CRP.
26. Esta é uma conclusão que tem sido acolhida também pela generalidade da doutrina, como se confirma pelas seguintes asserções: «O Estado não pode criar outras categorias ou tipos de autarquias locais, encontrando-se vinculado a respeitar um princípio da tipicidade quanto às categorias de tais entidades públicas» (P. Otero, Direito Constitucional Português, vol. II, Organização do Poder Político, 2010, p. 621); «As categorias de autarquias locais são unicamente as de existência imposta ou consentida pela Constituição, o legislador não pode criar outras. É uma matéria de reserva da Constituição» (J. Miranda, “artigo 236.º”, in Constituição Portuguesa Anotada, R. Medeiros / J. Miranda coord., T. III, 2007, p. 450). No mesmo sentido se pronunciam Gomes Canotilho e Vital Moreira, referindo que «as categorias de autarquias referidas são um numerus clausus, não podendo ser criadas outras (princípio da tipicidade)» (J.J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 2010, p. 720). Em sentido idêntico, Casalta Nabais refere que «não pode a lei (…) criar outros tipos de autarquias locais diversos dos constitucionalmente previstos, a saber: freguesias, municípios e regiões administrativas no Continente e freguesias e municípios nas Regiões Autónomas» (Casalta Nabais, «A autonomia Local», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, BFDUC, pp. 159 – 161).
27. A única exceção aberta pela CRP ao numerus clausus das autarquias locais tipificadas no artigo 236.º, n.º 1 e 2, encontra-se prevista no n.º 3 do mesmo artigo, mas ainda assim, condicionada à verificação de alguns pressupostos. Na referida disposição, a Constituição concede ao legislador ordinário uma habilitação constitucional («a lei poderá estabelecer») para estabelecer «outras formas de organização territorial autárquica». Esta exceção só vale, todavia, para as «grandes áreas urbanas» e as «ilhas» e «de acordo com as suas condições específicas».
Ora, no que respeita às comunidades intermunicipais, do regime estabelecido no NRJAL e da sua instituição pelo n.º 1 do artigo 2.º do Decreto n.º 132/XII (conjugado com os seus anexos II e III), resulta que estas entidades são criadas por lei como entidades obrigatórias em todo o território continental, e não apenas nas ilhas ou grandes áreas urbanas. O único limite imposto no diploma em apreciação à criação de comunidades intermunicipais encontra-se estabelecido no artigo 64.º, n.º 2, do NRJAL, ao referir que «não podem ser criadas entidades intermunicipais com um número de municípios inferior a cinco nem com população inferior a 85 000 habitantes».
Residindo os pressupostos de criação das comunidades intermunicipais no número de municípios e habitantes, e não em critérios de insularidade ou dimensão da área urbana, o respetivo regime não pode, pois, encontrar habilitação constitucional no n.º 3 do artigo 236.º da CRP.
28. Nem se diga que, na medida em que são integradas por municípios, as comunidades intermunicipais assumem a configuração material de uma associação de municípios, i.e., associações públicas constituídas por entidades públicas (os municípios), estando, portanto, a sua criação na disponibilidade da Assembleia da República (nos termos do artigo 165.º, n.º 1 alínea s), da CRP).
Não é esse o regime que decorre do NRJAL. Desde logo, porque o NRJAL prevê um novo regime do associativismo autárquico (Título V, artigos 120.º e ss. do NRJAL), distinto do regime das entidades intermunicipais (Título III, artigos 63.º e ss. do NRJAL). É do próprio regime estabelecido no diploma em análise que decorre, pois, o caráter não associativo das entidades intermunicipais.
Por outro lado, a criação por lei e o caráter obrigatório da participação dos municípios nas entidades intermunicipais afasta-as inelutavelmente da caracterização como associações de municípios. A vontade dos municípios é irrelevante na constituição destas entidades. De facto, o artigo 253.º da Constituição habilita diretamente os municípios (não o legislador) a «constituir associações e federações para a administração de interesses comuns, às quais a lei pode conferir atribuições e competências próprias». Sem prejuízo da sujeição ao respetivo enquadramento legal, a constituição destas associações deverá traduzir sempre uma expressão da autonomia dos municípios se associarem para realização de interesses específicos comuns aos municípios associados, ou mais concretamente ainda, interesses coletivos partilhados entre as populações envolvidas.
Esta realidade em nada é afetada pelo facto de, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 132/XII, as comunidades intermunicipais sucederem às comunidades intermunicipais reguladas pela Lei n.º 45/2008, de 27 de agosto, pois não altera a fonte orgânica e a natureza jurídica do ato criador: um ato do Estado, obrigatório, praticado pela Assembleia da República, sob a forma de lei. Note-se que, através do n.º 3 do artigo 2.º do Decreto n.º 132/XII, a Assembleia da República procede à criação de comunidades intermunicipais relativas à totalidade do território nacional continental (constantes do Anexo II).
29. Conclui-se, assim, que as normas relativas à criação, ao estatuto e às atribuições das comunidades intermunicipais, objeto do pedido, devem ser consideradas inconstitucionais, por violação do princípio da tipicidade das autarquias locais no território continental consagrado no artigo 236.º, n.º 1, da CRP.
30. Em consequência, prejudicada fica a apreciação dos restantes parâmetros de constitucionalidade que vinham também invocados pelo requerente no respeitante às normas objeto do primeiro pedido de fiscalização preventiva.
II – O Regime de delegação de competências
a) O pedido de fiscalização
31. O Presidente da República requer, em segundo lugar, a apreciação da norma da alínea k) do n.º 1 do artigo 25.º, da norma do n.º 1 e da primeira parte do n.º 2 do artigo 100.º, conjugadas com as normas do artigo 101.º e do artigo 102.º e, ainda, as normas do n.º 1 do artigo 103.º e do artigo 107.º e a título consequencial, as normas dos artigos 104.º, 105.º, 106.º, 108.º, 109.º e 110.º do anexo I do Decreto n.º 132/XII à luz da proibição constitucional do artigo 111.º, n.º 2, da CRP, por se permitir que o Governo delegue as suas competências constitucionais sem habilitação constitucional para tal ou, subsidiariamente, por violação do princípio da legalidade administrativa, constante dos artigos 3.º, n.º 2, 112.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, da CRP.
O requerimento alude às normas a sindicar como constantes do Decreto n.º 132/XII. No entanto, devemos entender aquela referência como reportada aos preceitos constantes do anexo I do mesmo (o NRJAL), não só porque o Decreto apenas contém quatro artigos, mas também porque as transcrições que são feitas se reportam aos preceitos do anexo I do Decreto.
32. São as seguintes as disposições do NRJAL convocadas para esta apreciação:
Artigo 25.º
Competências de apreciação e fiscalização
1 - Compete à assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal:
(…)
k)
Autorizar a celebração de contratos de delegação de competências entre a câmara municipal e o Estado e entre a câmara municipal e a entidade intermunicipal e autorizar a celebração e denúncia de contratos de delegação de competências e de acordos de execução entre a câmara municipal e as juntas de freguesia;
Artigo 100.º
Prossecução de atribuições e delegação de competências
1 - O Estado, as autarquias locais e as entidades intermunicipais articulam entre si, nos termos do artigo 4.º, a prossecução das respetivas atribuições, podendo, para o efeito, recorrer à delegação de competências.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, os órgãos do Estado podem delegar competências nos órgãos das autarquias locais e das entidades intermunicipais (…).
Artigo 101.º
Objetivos
A concretização da delegação de competências visa a promoção da coesão territorial, o reforço da solidariedade inter-regional, a melhoria da qualidade dos serviços prestados às populações e a racionalização dos recursos disponíveis.
Artigo 102.º
Intangibilidade das atribuições e âmbito da delegação de competências
No respeito pela intangibilidade das atribuições estaduais, autárquicas e intermunicipais, o Estado e os municípios concretizam a delegação de competências em todos os domínios dos interesses próprios das populações das freguesias, dos municípios e das entidades intermunicipais.
Artigo 103.º
Contrato
1 - A delegação de competências concretiza-se através da celebração de contratos interadministrativos, sob pena de nulidade.
2 - (…)
Artigo 104.º
Princípios gerais
A negociação, celebração, execução e cessação dos contratos obedece aos seguintes princípios:
a) Igualdade;
b) Não discriminação;
c) Estabilidade;
d) Prossecução do interesse público;
e) Continuidade da prestação do serviço público;
f) Necessidade e suficiência dos recursos.
Artigo 105.º
Recursos
1 - É aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos n.ºs 1, 2 e 5 do artigo 98.º.
2 - Os contraentes públicos devem promover os estudos necessários à demonstração dos requisitos previstos nas alíneas a) a e) do n.º 3 do artigo 98.º.
3 - A afetação dos recursos humanos através de instrumento de mobilidade é válida pelo período de vigência do contrato, salvo convenção em contrário.
Artigo 106.º
Cessação do contrato
1 - O contrato pode cessar por caducidade, revogação ou resolução.
2 - O contrato cessa por caducidade nos termos gerais, designadamente pelo decurso do respetivo período de vigência.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 109.º e no n.º 3 do artigo 112.º, a mudança dos titulares dos órgãos dos contraentes públicos não determina a caducidade do contrato.
4 - Os contraentes públicos podem revogar o contrato por mútuo acordo.
5 - Os contraentes públicos podem resolver o contrato por incumprimento da contraparte ou por razões de relevante interesse público devidamente fundamentadas.
6 - No caso de cessação por revogação ou resolução por razões de relevante interesse público, os contraentes públicos devem demonstrar o preenchimento dos requisitos previstos nas alíneas a) a e) do n.º 3 do artigo 98.º.
7 - A cessação do contrato não pode originar quebra ou descontinuidade da prestação do serviço público.
8 - Os contraentes públicos podem suspender o contrato com os fundamentos referidos no n.º 5.
9 - À suspensão do contrato prevista do número anterior é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos n.ºs 6 e 7.
Artigo 107.º
Intangibilidade das atribuições e âmbito da delegação de competências
No respeito pela intangibilidade das atribuições estaduais, o Estado concretiza a delegação de competências em todos os domínios dos interesses próprios das populações das autarquias locais e das entidades intermunicipais, em especial no âmbito das funções económicas e sociais.
Artigo 108.º
Igualdade e não discriminação
1 - Na concretização da delegação de competências, e no respeito pelos princípios da igualdade e da não discriminação referidos nas alíneas a) e b) do artigo 104.º, o Estado considera, designadamente, a caraterização da entidade intermunicipal como área metropolitana ou como comunidade intermunicipal.
2 - Na concretização da delegação de competências, e no respeito pelos princípios da igualdade e da não discriminação referidos nas alíneas a) e b) do artigo 104.º, o Estado considera, designadamente, a caraterização da autarquia local como município ou freguesia, bem como critérios relacionados com a respetiva caraterização geográfica, demográfica, económica e social.
3 - É aplicável, com as devidas adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 98.º.
Artigo 109.º
Período de vigência
1 - O período de vigência do contrato coincide com a duração do mandato do Governo, salvo casos excecionais, devidamente fundamentados, e sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - O contrato considera-se renovado após a tomada de posse do Governo, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 - Os outorgantes podem promover a denúncia do contrato, no prazo de seis meses após a tomada de posse do governo ou após a instalação do órgão autárquico.
4 - Os órgãos deliberativos das autarquias locais e das entidades intermunicipais não podem, em caso algum, promover a denúncia do contrato.
Artigo 110.º
Comunicação
1 - Os departamentos governamentais competentes comunicam ao serviço da administração central responsável pelo acompanhamento das autarquias locais, por via eletrónica e no prazo de 30 dias, a celebração, alteração e cessação dos contratos, mediante o envio de cópia.
2 - Compete ao serviço referido no número anterior manter atualizado o registo dos contratos mencionados no número anterior.
3 - Os contratos estão disponíveis para consulta, nos termos da lei.
b) Antecedentes legais do regime de delegação de competências previsto no anexo I do Decreto n.º 132/XII
33. O pedido de fiscalização de constitucionalidade incide sobre o regime constante do NRJAL que prevê a possibilidade de delegação de competências de «órgãos do Estado» em municípios ou comunidades intermunicipais através de um contrato interadministrativo.
34. O recurso a contratos interadministrativos (contratos entre entidades que participam na prossecução da função administrativa) tem precedentes na legislação portuguesa no âmbito das competências de Estado e autarquias.
Neste âmbito, a Lei n.º 159/99, de 14 de setembro, já continha a possibilidade de celebração de contratos interadministrativos relativamente à «transferência de competências não universais» – ou seja, apenas em relação a alguns municípios – por parte do Estado (artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 159/99, de 14 de setembro), à delegação de competências do município em freguesias, através de “protocolo” (artigo 13.º, n.º 2, e artigo 15.º da Lei n.º 159/99, de 14 de setembro), bem como contratos de exercício de competências municipais em regime de parceria (artigo 8.º, n.º 2, da Lei n.º 159/99, de 14 de setembro) (cfr. A. Leitão, Contratos interadministrativos, Almedina, 2011, pp. 207 ss.).
Também o Decreto-Lei n.º 144/2008, de 28 de julho, que veio proceder ao desenvolvimento do quadro de transferência de competências para os municípios em matéria de educação, prevê a celebração de contratos de execução das transferências de atribuições nele previstas, a celebrar entre o Ministério da Educação e os municípios.
c) O regime de “delegação de competências” previsto no NRJAL
35. O NRJAL prevê, entre outros, «O regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, assim como da delegação de competências do Estado nas autarquias locais e nas entidades intermunicipais e dos municípios nas entidades intermunicipais e nas freguesias» (artigo 1.º, n.º 1, alínea c), do Decreto n.º 132/XII).
36. A matéria da “delegação de competências” ocupa os artigos 99.º e seguintes do NRJAL. Aí se prevê a possibilidade de delegação de competências de órgãos do Estado nos órgãos das autarquias locais e das entidades intermunicipais e dos órgãos dos municípios nos órgãos das freguesias e das entidades intermunicipais. Trata-se de um mecanismo de articulação da «prossecução das respetivas atribuições» (artigo 100.º, n.º 1) com o objetivo de «promoção da coesão territorial, o reforço da solidariedade inter-regional, a melhoria da qualidade dos serviços prestados às populações e a racionalização dos recursos disponíveis» (artigo 101.º).
Saliente-se que as atribuições das autarquias locais e das entidades intermunicipais constam do artigo 2.º do NRJAL, ali se estabelecendo que «constituem atribuições das autarquias locais e das entidades intermunicipais a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações». Esta formulação é reiterada pelos artigos 7.º, 23.º e 65.º do NRJAL.
Para além do regime de delegação de competências de órgãos do Estado nos órgãos das autarquias locais, o NRJAL prevê ainda o regime da “transferência de competências”, que consta dos artigos 97.º e seguintes.
37. No diploma em apreciação não se encontram legalmente enumeradas as “competências” que podem ser delegadas pelo Estado nos órgãos das autarquias locais. Do mesmo consta apenas a indicação de que o “Estado e os municípios concretizam a delegação de competências em todos os domínios dos interesses próprios das populações das freguesias, dos municípios e das entidades intermunicipais”, no respeito pela “intangibilidade das atribuições estaduais, autárquicas e intermunicipais” (artigo 102.º). Em especial, relativamente à “delegação de competências” por parte do Estado, o artigo 107.º concretiza que esta se deve operar “em todos os domínios dos interesses próprios das populações das autarquias locais e das entidades intermunicipais, em especial no âmbito das funções económicas e sociais”, no respeito pela “intangibilidade das atribuições estaduais, autárquicas e intermunicipais”.
A “delegação de competências” concretiza-se através da celebração de contratos interadministrativos, sendo regulada pelo NRJAL e, «subsidiariamente, [pel]o Código dos Contratos Públicos e [pel]o Código do Procedimento Administrativo» (artigo 103.º). O contrato pode cessar por caducidade, revogação ou resolução, nos termos regulados no artigo 106.º, sendo que, no caso de delegação do Estado nos municípios ou nas entidades intermunicipais, tem a «duração do mandato do Governo», podendo ser renovado automaticamente (artigo 109.º).
d) Apreciação jus-constitucional do regime de delegação de competências do Estado nos municípios e comunidades intermunicipais à luz do pedido de fiscalização
38. No requerimento é solicitada a fiscalização abstrata preventiva da constitucionalidade do regime constante do NRJAL que prevê a possibilidade de delegação de competências de «órgãos do Estado» em municípios ou comunidades intermunicipais através de um contrato interadministrativo, face ao artigo 111.º, n.º 2, da CRP e o princípio da legalidade administrativa, constante dos artigos 112.º, n.º 2, 3.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, da CRP.
39. O artigo 111.º da CRP, sobre a separação e interdependência de poderes, estabelece no seu n.º 2, que: «Nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei». O termo “delegação de poderes” é aqui utilizado em sentido amplo, querendo abranger as realidades da transferência e da delegação de poderes (Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição (…), II, p. 47 e J. Miranda, “artigo 111.º”, in Constituição Portuguesa Anotada, T. II, Coimbra Editora, 2006, p. 254).
Constituindo corolário lógico do princípio do Estado de direito democrático e do princípio da separação de poderes, o princípio da indisponibilidade de competência, consagrado no artigo 111.º, n.º 2 da Constituição, proíbe a transferência ou delegação de poderes, sem previsão constitucional ou legal, designadamente entre os órgãos de soberania ou de poder local.
A transferência e a delegação de poderes entre estes órgãos estão, portanto, sujeitas à necessidade de um fundamento normativo expresso. No caso de poderes constitucionalmente definidos é necessário que a norma habilitante para a transferência ou delegação resulte do texto constitucional. A possibilidade de a lei autorizar a delegação de poderes apenas ocorre nos casos em que estes são originariamente atribuídos por lei.
Desta forma, a Constituição impede, não apenas a alteração da divisão constitucionalmente estabelecida de atribuições e tarefas através de lei ordinária, como também impede a deturpação da divisão legalmente estabelecida de atribuições e tarefas através de atos da função administrativa.
40. Relativamente ao quadro de competências constitucionalmente estabelecido, só pode, portanto, existir delegação de poderes mediante habilitação constitucional.
É o caso, por exemplo, das autorizações legislativas da Assembleia da República ao Governo e às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas no âmbito da sua reserva relativa de competência legislativa (artigos 165.º, 198.º, n.º 1, alínea b), e 227.º, n.º 1, alínea b), da CRP), da delegação de competências do Conselho de Ministros em conselhos de ministros especializados (artigo 200.º, n.º 2, da CRP), da assembleia de freguesia nas organizações de moradores (artigo 248.º da CRP), ou a possibilidade de «atos de delegação de competências» entre o Governo da República e os executivos das Regiões Autónomas (artigo 229.º, n.º 4, da CRP).
41. A Constituição não contempla qualquer norma que permita ao Governo proceder à delegação dos poderes que constitucionalmente lhe são conferidos nas autarquias locais.
Mesmo que existisse tal norma habilitante, a verdade é que existem limites às matérias que podem ser objeto de delegação por parte dos órgãos de soberania, como o Tribunal Constitucional, de resto, já sublinhou a respeito da relação entre a República e as Regiões Autónomas (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 192/88). A lei não pode «“delegar” a favor das Regiões Autónomas competências próprias de soberania, sob pena de violação do artigo [110.º] da Constituição» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 458/93).
Por seu lado, a autonomia municipal não pode afetar a integridade da soberania do Estado. De facto, os poderes locais também são, por natureza, limitados, pois não podem ser exercidos para além do âmbito de interesses (necessariamente locais) que os justificam, não podendo invadir espaços de deliberação ou atuação que devem permanecer reservados à esfera da comunidade nacional (cfr. M. Lúcia Amaral, A Forma da República, Coimbra Editora, 2012, p. 385). Os órgãos autárquicos não podem, pois, em caso algum, assumir as atribuições ou os poderes característicos das entidades soberanas (quer na ordem interna, quer na ordem internacional).
O Estado é unitário. Existe apenas um conjunto de órgãos de soberania para todo o território nacional.
42. Assim sendo, uma lei que permita a delegação por parte do Governo de poderes administrativos que lhe são constitucionalmente conferidos será inconstitucional por violação do artigo 111.º, n.º 2, da Lei Fundamental.
A análise do NRJAL não permite, porém, concluir pelo desrespeito deste limite.
É certo que no diploma não se enumeram ou concretizam as matérias que podem ser objeto de delegação e as que ficam excluídas dessa possibilidade. De facto, o seu artigo 107.º estabelece que a “delegação de competências” do Estado incide “em todos os domínios dos interesses próprios das populações das autarquias locais e das entidades intermunicipais, em especial no âmbito das funções económicas e sociais”.
No entanto, o mesmo preceito ressalva a necessidade de respeito pela “intangibilidade das atribuições estaduais” – dever que também resulta do artigo 102.º. Apesar da falta de densificação de quais serão estas atribuições estatais intangíveis, esta formulação deve ser interpretada de modo a nelas se incluírem as atribuições do Governo constitucionalmente estabelecidas e indelegáveis por força do artigo 111.º, n.º 2, da CRP.
Desta forma, a garantia assinalada da «intangibilidade das atribuições estaduais» permite concluir que o Governo não se encontra habilitado pelas normas em causa a delegar as suas atribuições constitucionalmente estabelecidas.
43. Importa, porém, levar mais longe a análise da conformidade constitucional do regime de «delegação de competências» do Estado nas autarquias locais previsto no NRJAL. Na verdade, e como já acima se deixou salientado, para além da alteração da divisão constitucionalmente estabelecida de atribuições e tarefas através de lei ordinária, o artigo 111.º, n.º 2, da CRP proíbe também a delegação de poderes (originariamente estabelecidos na lei) que não seja habilitada por lei.
Torna-se, portanto, indispensável apreciar se o regime de delegação de competências do Estado nos municípios previsto no NRJAL pode ser configurado como norma habilitante que cumpre os requisitos impostos pela CRP.
44. Constitui princípio geral de direito público que os órgãos públicos, nomeadamente os administrativos, não podem dispor livremente das suas competências: o quadro competencial tem que resultar de enquadramento legal. E, sendo assim, necessário será também impedir a descaracterização da divisão legalmente estabelecida de competências através de atos da função administrativa. Por isso, a delegação de poderes legais só é constitucionalmente legítima se existir norma legal que a habilite. A Constituição estabelece, neste domínio, uma reserva de lei, o que significa que apenas o legislador pode habilitar a administração pública a proceder a delegações dos seus poderes.
Neste sentido, um ato de delegação de poderes por parte da administração sem habilitação legal efetiva, ou para além dela, acarreta a violação do artigo 111.º, n.º 2, da Constituição. Com efeito, nesse caso, será a administração a fixar livremente e em primeira linha o seu quadro de atuação quando a Constituição impõe uma reserva de função legislativa, democraticamente legitimada. Abandonar a necessidade de lei habilitante permitiria descaracterizar os poderes legalmente estabelecidos e o fim da subordinação da administração à legalidade democrática.
45. O facto de a Constituição exigir lei habilitante para a delegação de poderes, por força do artigo 111.º, n.º 2, da CRP – e para a atuação administrativa, no geral – deve ser visto não apenas como uma exigência formal – de existência de lei prévia – mas também como uma exigência material. A norma legal que serve de habilitação jurídico-normativa para a atuação da administração «deve possuir um grau de pormenorização suficiente para permitir antecipar adequadamente a atuação administrativa em causa» (M. Rebelo de Sousa / A. Salgado Matos, Direito Administrativo, T. I, p. 153; cfr. também B. Ayala, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa, Lex, 1995, p. 178; Sérvulo Correia, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, Almedina, 2003, p. 53).
46. Assim, a norma legal habilitante da atuação administrativa tem de apresentar um mínimo de densidade, i.e., tem de conter uma disciplina suficientemente precisa (densa, determinada), de forma a, no mínimo, poder representar um critério legal orientador da atuação para a administração, permitindo o respetivo controlo por juízos de legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos. A falta de um critério legal efetivo, garantindo a imparcialidade e evitando a arbitrariedade, priva a função administrativa de parâmetro de atuação.
Reportando-nos ao regime da delegação de poderes em apreciação, a exigência de densidade normativa impõe que a lei habilitante não se apresente com um conteúdo de tal forma geral e indeterminado que redunde no exercício livre, por parte da administração, do poder de delegação. Ao deixar “em branco” a definição do núcleo e dos pressupostos do poder administrativo visado, o legislador não cumpre a exigência constitucional de elaboração de normas habilitantes da atuação administrativa num sentido material, porque permite que a administração delegue discricionariamente a sua própria competência, de forma não vinculada a uma lei prévia suficientemente precisa.
Ora, a Lei Fundamental não permite conceder à administração uma tal autonomia de determinação primária, em matéria que está confiada ao legislador.
A aprovação de normas habilitantes meramente formais, por falta de densidade, deixa a atuação da administração a descoberto da definição de critérios legais orientadores, inviabilizando o seu controlo e permitindo alterar a distribuição de competências legalmente previstas através de meros atos da função administrativa, em desrespeito do parâmetro constitucional contido no artigo 111.º, n.º 2 da CRP.
47. É certo que o grau concreto de densidade constitucionalmente exigida da lei habilitante pode variar em função dos interesses em presença e da forma como a CRP regula a matéria, ou seja, na medida reservada para o legislador.
Assim, nada impede a existência de espaços ou margens de livre decisão administrativa ou de autonomia contratual à administração, nos termos da lei. Existe, portanto, toda a flexibilidade para, dentro do quadro legal, proceder a uma distribuição eficiente de tarefas entre o poder legislativo e o administrativo e entre os diversos titulares do poder administrativo.
Este aspeto é especialmente importante na área das relações entre Estado e autarquias locais. Neste caso, não existe uma separação constitucionalmente estabelecida, estanque e inflexível de atribuições do Estado e das autarquias, fundada numa distinção material rígida entre assuntos locais – que competiriam inteiramente e em exclusivo às autarquias – e assuntos nacionais. Significa isto que «a separação nítida entre a zona dos interesses nacionais e a zona dos interesses locais, como se de dois compartimentos estanques se tratasse, já só subsiste em alguns casos. É errado dizer que desapareceu por completo; mas deixou de corresponder à grande maioria dos casos» (Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, 2006, p. 491). Assim, a atual “miscigenação” de interesses implica «uma indispensável divisão de trabalho entre o Estado e as coletividades locais» (J. C. Vieira de Andrade, “Distribuição pelos municípios da energia elétrica de baixa tensão”, CJ, ano XIV/I, 1989, pp. 15 e seguintes, em especial, p. 19).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem considerado que existem domínios que não podem pertencer em exclusivo aos municípios, já que incidem sobre matérias que têm de ser vistas e prosseguidas em conexão com o todo nacional, pelo que devem estar abertas à intervenção concorrente das autarquias e do Estado (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 674/95; cfr. ainda Acórdãos deste Tribunal n.os 432/93, 674/95, 379/96, 548/97, 329/99, 517/99 e 560/99).
A autonomia local é, assim, em larga medida, uma autonomia sub legem – o que tem importantes consequências no que respeita à definição e à densificação das atribuições e das competências administrativas das autarquias locais. O âmbito da autonomia administrativa varia em função das opções do legislador democrático, permitindo o acolhimento de diversas formas de articulação entre Estado e autarquias.
48. O reconhecimento de uma margem de liberdade de conformação do legislador na definição do estatuto e regime autárquico não significa, contudo, que seja possível prescindir-se de vinculações jurídico-constitucionais e da ponderação equilibrada dos interesses – locais, regionais e nacionais – em presença, respeitando as exigências que se extraem do princípio da proporcionalidade. Menos ainda, numa matéria abrangida por reserva de lei, na medida em que está compreendida no estatuto das autarquias locais (artigo 165.º, n.º 1, alínea q), da CRP).
De facto, por força da Constituição, a autonomia administrativa, onde se inclui a autonomia contratual e o poder de delegação de poderes, tem sempre que resultar de lei. E a norma habilitante deve ter algum conteúdo – mesmo que mínimo. Se a Lei Fundamental estabeleceu a necessidade de regulação por ato legislativo, não pode o legislador, através da publicação de uma norma habilitante “em branco”, remeter o poder de dispor inovatoriamente sobre a matéria das atribuições e competências das autarquias locais para um ato da função administrativa.
O quadro definidor das competências de um órgão de uma entidade administrativa não pode ser totalmente maleável pela vontade dos diversos agentes em presença. A adoção de esquemas de exercício partilhado de competências através de delegações de competências não dispensa a precedência de norma legal habilitante com uma densidade mínima que permita a promoção de um equilíbrio eficiente na articulação de poderes, desta forma assegurando ainda o respeito pela reserva de lei decorrente do artigo 111.º, n.º 2, da Constituição.
49. Com este enquadramento em presença, importa retomar a análise do regime do NRJAL relativo à delegação de competências do Estado nos municípios e nas comunidades intermunicipais.
Num quadro de sobreposição de atribuições e de competências entre Estado e autarquias, o artigo 100.º do NRJAL pretende erigir-se como norma habilitante para a delegação de competências. Como pode retirar-se da descrição do regime feita anteriormente, o NRJAL estabelece que o Estado e as autarquias devem articular a prossecução das respetivas atribuições (artigo 100.º, n.º 1), que essa articulação é feita através de delegação de competências (artigo 100.º, n.º 2) e que esta delegação terá a forma de contrato (artigo 103.º, n.º 1).
Além da ressalva da intangibilidade das atribuições estaduais e autárquicas e da delimitação da delegação de competências ao domínio dos interesses próprios das autarquias (artigos 102.º e 107.º), o diploma estabelece alguns princípios gerais aplicáveis a este contrato como o da igualdade e não discriminação, constante do artigo 108.º, ou os princípios constantes do artigo 104.º, os quais, porém, nada acrescentam aos princípios já inscritos na Constituição. Estabelecem-se ainda linhas gerais do regime como a necessidade de transferência de meios com a delegação e de estudos prévios aos contratos (artigo 105.º) e o regime de cessação de vigência do contrato (artigo 106.º e 109.º).
Todavia, ressalvados estes elementos, o poder de celebração de contratos de delegação de competências é deixado à margem de livre decisão do Governo, por um lado, e das autarquias, por outro. Desde logo, não se define de quem é, ao certo, a competência para a celebração do contrato. O artigo 100.º, n.º 1, fala em órgãos do Estado – mas não esclarece quais os órgãos, todos e qualquer um, apenas alguns dos departamentos da administração central do Estado, ou apenas o Governo. Tão-pouco esclarece, por exemplo, se abrange apenas a administração central direta do Estado ou também a indireta. Aspetos como os referentes aos efeitos, às condições e aos pressupostos para a celebração do contrato de delegação de competências ficam por definir.
Em relação à determinação das matérias ou domínios sobre os quais pode incidir a delegação, o artigo 107.º do regime ora em apreciação limita-se a estabelecer que «o Estado concretiza a delegação de competências em todos os domínios dos interesses próprios das populações das autarquias locais e das entidades intermunicipais, em especial no âmbito das funções económicas e sociais». Não existe, por isso, uma identificação, mesmo que genérica ou pouco densa, das matérias em causa. Assim, a determinação do objeto da delegação de competências nas autarquias vai depender apenas da concretização das referidas cláusulas gerais, mediante um ato da função administrativa (a delegação de competências), a realizar através da celebração de contrato interadministrativo.
Todos esses aspetos determinantes da delegação de competências são, portanto, deixados por regular ou “em branco”, para concretização posterior pela administração. De relevante, a lei limita-se, afinal, a prever a figura contratual da delegação de competências entre Estado e municípios, desta forma, abdicando do seu papel de regulação primária da matéria.
50. Ora, o regime em presença não incide numa área constitucionalmente neutra face à menor vinculação da administração à lei. No âmbito da definição das competências – e da possibilidade de delegação de competências, em concreto – a Constituição estabelece expressamente a necessidade de norma legal habilitante (artigo 111.º, n.º 2).
Não se trata de exigir uma densificação total do regime, muito menos uma enumeração exaustiva ou taxativa das matérias que possam ser objeto de delegação. O que a Constituição impõe é um mínimo de densificação legal do poder de delegação.
Exige-se que, pelo menos, o objeto da delegação de competências e a determinação dos órgãos do Estado com competência para delegar, mereçam um mínimo de densificação na lei que habilita a delegação, o que não se verifica no diploma em apreciação.
Na verdade, o regime de delegação de competências adotado no NRJAL, pela sua vacuidade, descura a função modelar que devia assumir na partilha de tarefas entre o Estado e as autarquias, de uma forma suscetível de comprometer o equilíbrio do quadro descentralizador a implementar no poder local. Ao permitir que seja a própria administração a fixar, primariamente, os termos da delegação, o NRJAL não cumpre, com efeito, o referido mínimo de densificação legal exigido (e, com ele, a função constitucionalmente estabelecida da lei habilitante).
Assim, terá de se concluir que o regime de delegação de competências do NRJAL constitui uma norma habilitante que não respeita os requisitos de densidade normativa mínima. Deste défice de concretização resulta a sua inconstitucionalidade por violação do artigo 111.º, n.º 2 da Constituição.
51. De salientar será ainda que para esta exigência de um mínimo de densificação legal do poder de delegação é indiferente estarmos num domínio de atribuições exclusivas ou partilhadas entre as pessoas coletivas em causa. Não se vê como esse facto poderia afastar a exigência constitucional de norma legal habilitante para a delegação de competências.
A circunstância de a delegação de competências tomar a forma de contrato interadministrativo – com a necessária concordância de ambos os órgãos (delegante e delegado) – não conduz a uma conclusão diferente.
Não se questiona a possibilidade do instituto de delegação de competências por contrato, antes a sua realização com base em lei insuficientemente densificada.
A necessidade de norma legal habilitante com um grau mínimo de determinação não é afastada pelo facto de nos encontrarmos perante um espaço de autonomia contratual pública. Desde logo, porque não estamos perante entidades privadas, mas entidades públicas, que se regem pelo princípio da constitucionalidade e legalidade. Por outro lado, não nos encontramos no domínio do Direito Privado, mas numa área localizada no coração do Direito Público, a da determinação das competências dos órgãos.
Como sustentado por Alexandra Leitão (Contratos interadministrativos, pp. 160-161), os contratos que impliquem uma transferência de atribuições ou de competências não habilitadas legalmente ou que impliquem uma alienação ou renúncia à titularidade das mesmas traduzem-se numa evidente violação dos preceitos atributivos dessas competências – e do artigo 111.º, n.º 2, da CRP.
Tal como qualquer outro ato da função administrativa, o estabelecimento de uma relação de delegação de atribuições ou de competências – seja por ato administrativo ou por contrato – depende da existência de uma lei de habilitação, ou seja, de uma lei que preveja a faculdade de um órgão delegar poderes num outro.
O facto de os órgãos administrativos acordarem delegar poderes e, para esse efeito, celebrarem um contrato, não dispensa a precedência de norma de habilitação legal com um mínimo de conteúdo orientador para a administração. Exigência que, como acima já referido, decorre do princípio da reserva de lei.
52. Conclui-se, assim, que as normas relativas ao regime da delegação de competências do Estado nos municípios e comunidades intermunicipais resultantes dos artigos 25.º, n.º 1, alínea k) e primeira parte do n.º 2 do artigo 100.º, conjugadas com as normas dos artigos 101.º, 102.º, 103.º, n.º 1, e 107.º devem ser consideradas inconstitucionais, por violação do princípio da reserva de lei para a habilitação legal da delegação de poderes, consagrado no artigo 111.º, n.º 2, da CRP. Consequentemente, as normas dos artigos 104.º a 106.º e 108.º a 110.º, por se encontrarem numa relação instrumental com as normas consideradas inconstitucionais, sofrem igualmente de inconstitucionalidade.
III. A Norma revogatória do Decreto n.º 136/XII
a) O pedido de fiscalização
53. Por fim, o Presidente da República requer a fiscalização «das normas constantes do artigo 1.º do Decreto n.º 136/XII, a título de inconstitucionalidade consequente em relação às normas precedentemente impugnadas e ao restante preceituado onde estas figuram, na medida em que o mesmo preceito revoga legislação vigente no pressuposto da entrada em vigor do regime constante do Decreto nº 132/XII».
b) O regime revogatório previsto no Decreto n.º 136/XII e a sua inconstitucionalidade consequente
54. O preceito em causa procede à revogação expressa de diversas disposições constantes da Lei n.º 169/99, de 18 de setembro, que estabelece o quadro de competências, assim como, o regime de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias, do Decreto-Lei n.º 310/2002, de 18 de dezembro, que regula o regime jurídico do licenciamento e fiscalização pelas câmaras municipais de atividades diversas anteriormente cometidas aos governos civis, bem como do Código Administrativo
55. Na exposição de motivos do Projeto de Lei que deu origem ao Decreto n.º 136/XII pode ler-se:
«Através da presente iniciativa pretende-se recobrar a parte da norma revogatória que integrava a Proposta de Lei n.º 104/XII/2.ª do Governo e que, em virtude da aprovação de uma proposta de alteração em sede de especialidade, resultou suprimida no Decreto da Assembleia da República n.º 132/XII, de 2 de abril de 2013, que estabelece o regime jurídico das autarquias locais, aprova o estatuto das entidades intermunicipais, estabelece o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais e aprova o regime jurídico do associativismo autárquico. Para tanto concorreu o entendimento de Sua Excelência a Presidente da Assembleia da República, bem como de todos os Grupos Parlamentares de que seria mais conveniente a apresentação da presente iniciativa legislativa, que traduz vontade real do legislador».
De facto, a Proposta de Lei n.º 104/XII continha uma norma revogatória no artigo 3.º, n.º 2, com um conteúdo equivalente ao constante do artigo 1.º do Decreto n.º 136/XII. Durante o procedimento legislativo parlamentar, foi apresentada uma proposta de alteração deste preceito, da qual resultou a supressão deste número. Na fase da redação final, já após a votação final global do Decreto, foi proposta a reintrodução deste preceito – proposta que foi rejeitada. É esse o motivo da apresentação do Projeto de Lei n.º 396/12, que deu origem ao Decreto n.º 136/XII.
É seguro, pois, concluir, que o artigo 1.º do Decreto n.º 136/XII tem uma relação funcional com o Decreto n.º 132/XII, porque vem revogar expressamente normas que se encontram em desconformidade com o regime constante deste último. Nessa medida, a entrada em vigor do artigo 1.º do Decreto n.º 136/XII só faz sentido se conjugado com o Decreto n.º 132/XII, pois caso contrário verificar-se-ia a abertura de lacunas legais não pretendidas pelo legislador e geradoras de inconstitucionalidade por contrárias ao desenho constitucional do poder local.
Verificando-se a relação funcional entre o Decreto n.º 132/XII e o artigo 1.º do Decreto n.º 136/XII, a pronúncia pela inconstitucionalidade do primeiro Decreto acarreta a inconstitucionalidade consequente deste último.
III – Decisão:
56. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide pronunciar-se:
(i) – pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 2.º, n.º 1 e 3.º, n.º 1, alínea c) do Decreto n.º 132/XII, das normas constantes dos artigos 2.º, 3.º, 63.º, n.os 1, 2 e 4, 64.º, n.os 1 a 3, 65.º e 89.º a 93.º do Anexo I ao mesmo decreto e das disposições normativas constantes dos anexos II e III do mesmo Decreto, na parte respeitante às comunidades intermunicipais, por violação do artigo 236.º, n.º 1, da Constituição;
(ii) – pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 25.º, n.º 1, alínea k) e primeira parte do n.º 2 do artigo 100.º, conjugadas com as normas dos artigos 101.º, 102.º, 103.º, n.º 1, e 107.º e, consequentemente, dos artigos 104.º a 106.º e 108.º a 110.º, todos do Anexo I ao Decreto 132/XII, por violação do artigo 111.º, n.º 2, da Constituição.
(iii) – pela inconstitucionalidade consequente do artigo 1.º do Decreto n.º 136/XII.
Lisboa, 28 de maio de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – José Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Fernando Vaz Ventura – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – Maria Lúcia Amaral (com declaração) – João Cura Mariano (vencido pelas razões que constam da declaração de voto apresentada pelo Conselheiro Vítor Gomes) – Vítor Gomes (vencido, nos termos da declaração anexa) – Pedro Machete (com declaração quanto à primeira alínea e vencido quanto à segunda alínea) – Maria João Antunes (vencida quanto à segunda alínea da decisão, pelas razões constantes da declaração de voto do Conselheiro Vítor Gomes) – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, quanto à segunda alínea da Decisão, no essencial pelas razões constantes da declaração de voto do Conselheiro Vítor Gomes)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Subscrevi a decisão maioritária do Tribunal quanto às duas questões que lhe foram colocadas.
Contudo, quanto à questão relativa à constitucionalidade do regime de delegação de competências (do Estado nos entes autárquicos), previsto pelo decreto da Assembleia, devo fazer a seguinte precisão.
A meu ver, o nº 2 do artigo 111.º da CRP não se limita a consagrar uma reserva de lei formal. O que aí está em causa não é apenas a necessidade de fazer anteceder a atuação administrativa de prévia habilitação, a conceder pelo “legislador democraticamente legitimado”. O que está em causa é também a necessidade da existência de lei em sentido material, ou seja, de prescrição geral e abstrata, não necessariamente constante de ato da função legislativa.
Como se diz no Acórdão, a reserva de lei contida no nº 2 do artigo 111.º radica no princípio segundo o qual os órgãos do poder não dispõem das competências que lhes são atribuídas. Porque assim é, nos casos em que a atribuição de competências seja feita através de lei, cabe também à lei autorizar a sua delegação. No Decreto da Assembleia essa autorização existe: permite-se que, por via de contrato interadministrativo, o Estado delegue competências suas nos órgãos dos entes autárquicos. Sucede, porém, que os contratos interadministrativos não deixam de ser atos de vontade, praticados ad hoc, de forma singular e especial. A lei que os habilite como atos de delegação de competências não pode portanto deixar de conter critérios materiais, gerais e abstratos, que regulem e vinculem em cada caso a decisão de contratar, ou de remeter para regulamento administrativo a definição de tais critérios.
Com efeito – e é aqui que me separo da posição maioritária – creio que a definição dos critérios vinculativos dos atos de delegação não tem necessariamente que constar do ato da função legislativa que é a lei formal habilitante. A meu ver, poderá perfeitamente constar de regulamento administrativo. Ponto é, porém, que a lei habilitante da delegação, caso não queira (por razões, por exemplo, de especialidades de matérias) fixar ela própria tais critérios, remeta a fixação para regulamento administrativo, que assim surgirá como a lei em sentido material (isto é, a disciplina geral e abstrata) em cujos termos se poderá vir a operar a delegação.
O regime fixado no Decreto da Assembleia não contém a definição, no sentido que acabei de expor, de critérios materiais vinculativos dos atos de delegação de poderes. Dizer-se, como se diz no artigo 104.º do Decreto, que “a negociação, celebração, execução e cessação dos contratos” obedece aos princípios da igualdade, da não discriminação, da estabilidade, da prossecução de interesse público é, a meu ver, manifestamente insuficiente: a referência a estes princípios nada acrescenta, uma vez que, por força da Constituição, a Administração pública sempre estaria vinculada à sua observância, qualquer que fosse a concreta atividade que desenvolvesse. Mas a verdade é que, para além da redundante referência a princípios que já decorrem da Constituição, o Decreto não fixa critérios materiais que enquadrem, de forma vinculante, a decisão de delegação: o que é que se delega a quem; em que domínios; com que ordem de prioridades. Do mesmo modo, não remete para regulamento tal fixação (não habilita nenhum regulamento a fazê-lo). Assim sendo, a exigência de reserva de lei em sentido material, que a meu ver o artigo 111.º, nº 2 da CRP consagra – exigência essa que faz com que, nestes domínios, não surjam como instrumentos bastantes de garantia de imparcialidade da Administração o dever de fundamentação dos atos, ou a autovinculação da administração a práticas anteriores, ou o registo dos contratos –, não se encontra cumprida.
Maria Lúcia Amaral.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido quanto à pronúncia pela inconstitucionalidade constante da alínea (ii) da decisão, pelas seguintes razões essenciais:
A) Embora acompanhando, de um modo geral, as considerações do acórdão acerca do princípio da “reserva de lei” a que, nos termos do n.º 2 do art.º 111.º da Constituição, está sujeita a delegação de poderes, entendo que a norma habilitante em causa satisfaz, no contexto em que se destina a operar a delegação intersubjetiva a que respeita, os requisitos de determinação de conteúdo e de identificação dos sujeitos da delegação que, em função das razões que constitucionalmente a justificam, se impõem ao legislador preservar.
Com efeito, o instrumento da delegação é um contrato interadministrativo (cfr. art.º 338.º do Código dos Contratos Públicos), cujas linhas gerais constam dos art.ºs 103.º a 109.º do diploma que, aliás, o acórdão destaca. Desde logo, o caracter bilateral e as exigências a que a celebração, execução e cessação do contrato delegatório obedece são idóneos a preservar as condições jurídicas e materiais da autonomia dos entes que recebem a delegação, pelo que esta vertente da função da reserva de lei não está em risco. Os intervenientes intervêm, num plano de igualdade jurídica e numa perspetiva de harmonização do desempenho das atribuições dos entes respetivos. A questão da insuficiente determinação de conteúdo da norma habilitante só poderia ser problemática na vertente do risco de “autoexoneração” das tarefas legalmente cometidas ao delegante que a relativa indeterminação resultante do uso de cláusulas gerais poderia potenciar.
Para tanto, porém, no juízo sobre os requisitos constitucionalmente exigidos à norma habilitante, não pode abstrair-se do concreto domínio material e de organização administrativa em que a delegação se destina a operar. Na hipótese, estamos num quadro de cooperação interadministrativa, destinada a tornar mais eficiente e eficaz a atuação da Administração Pública, permitindo uma individualização apropriada às situações de “interesses próprios das populações” da autarquia respetiva que o enunciado legal dificilmente pode elencar de modo exaustivo perante o concurso de atribuições de pessoas coletivas de fins múltiplos. Para cumprir a exigência de delimitação do âmbito material de delegação competências do Estado (rectius, de órgãos do Estado) nas autarquias, a lei estabelece um limite negativo (a intangibilidade das atribuições estaduais), um limite positivo (todos os domínios dos interesses próprios das populações das autarquias locais, em especial no âmbito das funções económicas e sociais) e uma vinculação teleológica (a promoção da coesão territorial, o reforço da solidariedade inter-regional, a melhoria da qualidade dos serviços prestados às populações e a racionalização dos recursos disponíveis). Trata-se do desempenho de tarefas e do exercício de poderes administrativos conferidos por lei, em zonas de confluência de atribuições do poder central e do poder local. Na substancia das coisas, a técnica legislativa utilizada não oferece menor préstimo para o controlo do exercício do poder correspondente (por parte da Administração, dos particulares e dos tribunais) do que as alternativas razoavelmente concebíveis, que dificilmente poderiam ir além de uma lista genérica de domínios de atribuições em que a competência (os poderes legalmente conferidos aos órgãos do Estado) é delegável (cfr. v. gr. art. 13.º do Decreto-Lei n.º 159/99, de 14 de setembro).
Por outro lado, o regime em apreço também não merece a censura que o acórdão lhe faz por indeterminação dos órgãos do Estado com competência para delegar. A delegação surge no diploma em causa como uma forma de articulação de atribuições (art.º 100.º, n.º 1), no âmbito da função administrativa do Estado. Abstratamente, podem delegar poderes todos os órgãos do Estado no âmbito da sua função administrativa, desde que observado o regime competencial para se obrigar em contrato interadministrativo e os referidos limites materiais. Mas os poderes delegados só podem ser aqueles que, no âmbito das atribuições do Estado com incidência nos interesses próprios das populações da autarquia, surjam no elenco de competências que a lei (diploma orgânico, atribuição legal avulsa ou especial) comete a cada órgão do Estado Assim, a titularidade da competência dispositiva primária no âmbito suscetível de delegação considerado torna determinável o âmbito subjetivo (ativo) da delegação, sem necessidade de individualização na norma habilitante.
B) De todo o modo, a norma da al. K) do n.º 1 do art.º 25.º do Decreto teria de ser retirada do elenco das normas que o acórdão considera violadoras do n.º 2 do art.º 111.º da Constituição. Essa norma limita-se à repartição interna de competência, diz que órgão tem poder de autorizar (e implicitamente de celebrar) os contratos de delegação de competências. É, em si mesmo, de conteúdo precisamente determinável e nada dispõe sobre o conteúdo de tais contratos, pelo que não pode infringir a reserva de lei imposta pelo n.º 2 do art.º 111.º da Constituição. Quando muito, poderia ser objeto (na parte respetiva) de um juízo de inconstitucionalidade consequencial.
Vítor Gomes
DECLARAÇÃO DE VOTO
I. Quanto à primeira alínea da decisão: a violação do princípio da tipicidade das autarquias locais no continente
Votei a decisão, por entender cumulativamente: (a) que as comunidades intermunicipais previstas no anexo I do Decreto n.º 132/XII (“NRJAL”) são autarquias locais; e (b) que as mesmas comunidades, apesar de estrutural e funcionalmente se reconduzirem à autarquia local supramunicipal constitucionalmente prevista - a região administrativa -, não respeitam o tipo constitucional correspondente. Se assim não fosse, isto é, se as aludidas comunidades não pudessem ser qualificadas como autarquias locais; ou, sendo-o, se as mesmas comunidades se reconduzissem a alguma das formas de organização territorial autárquica constitucionalmente admitidas (incluindo, portanto, as regiões administrativas) respeitando os respetivos requisitos, o princípio da tipicidade não seria violado. Cumpre justificar as duas premissas em que se fundou a minha concordância:
(a) As comunidades intermunicipais em análise são autarquias locais, porque, para além de todas as razões mencionadas na fundamentação do acórdão - e com as quais estou de acordo - também são dotadas de órgãos representativos. Este aspeto constitui uma condição necessária daquela qualificação, porquanto um dos elementos do conceito constitucional de autarquia local é justamente o caráter representativo dos órgãos destas pessoas coletivas territoriais (cfr. o artigo 235.º, n.º 2, da Constituição, e, por todos, Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, p. 485: os respetivos titulares são designados por via de eleição local). Aliás, é precisamente esse o critério com base no qual o NRJAL distingue as autarquias locais das entidades intermunicipais: as primeiras são dotadas de órgãos representativos (cfr. o artigo 5.º), enquanto as segundas não. Contudo, e de acordo com o mesmo diploma, a designação dos membros do conselho intermunicipal e da comissão executiva intermunicipal – os órgãos da comunidade intermunicipal (cfr. o artigo 89.º) – é feita por eleições, ainda que diferentes das constitucionalmente previstas no artigo 239.º da Constituição. Com efeito, os membros do conselho intermunicipal são os primeiros candidatos da lista mais votada nas eleições para a câmara municipal de cada município que faz parte da comunidade intermunicipal (cfr. os artigos 67.º, n.º 2, e 90.º n.º 1, do NRJAL, conjugados com o artigo 57.º, n.º 1, da Lei n.º 169/99, de 18 de setembro), o que aponta para um sistema de representação maioritária (a partir da instituição das comunidades intermunicipais, a eleição para a câmara municipal é simultaneamente para o membro do conselho intermunicipal). Já os membros da comissão executiva intermunicipal são submetidos pelo conselho intermunicipal, em lista única, à votação de um colégio eleitoral constituído por membros das assembleias municipais dos municípios que fazem parte da comunidade intermunicipal designados segundo certa proporção (cfr. os artigos 73.º a 75.º e 91.º n.º 1, do NRJAL). Trata-se, portanto, de um sufrágio (muito) indireto dos eleitores recenseados na área da comunidade intermunicipal, mas ainda assim suficiente para considerar que os membros da comissão executiva são designados por eleição.
(b) Se as comunidades intermunicipais são autarquias locais nos termos da Constituição, e se o respetivo regime é estabelecido no essencial e quase na sua totalidade por remissão para o regime das áreas metropolitanas (cfr. os artigos 89.º a 93.º do NRJAL), então, não pode haver diferença de natureza entre uma e outras: em ambos os casos estão em causa autarquias locais de caráter supramunicipal (a figura das áreas metropolitanas previstas no NRJAL não se filia no artigo 236.º, n.º 3, da Constituição; aliás, os únicos requisitos fixados no artigo 64.º do citado diploma em vista da respetiva criação valem para todas as “entidades intermunicipais” e, portanto, também para as áreas metropolitanas). Compreende-se, por isso, a sua recondução pelo NRJAL ao conceito comum de “entidade intermunicipal” (cfr. o artigo 63.º, n.os 1 e 2). Estas autarquias estão previstas apenas para o continente, abrangendo a totalidade dos municípios aí sedeados, são criadas simultaneamente e as suas atribuições próprias são prosseguidas em articulação com os municípios, envolvendo o exercício de competências de planeamento (cfr. os artigos 64.º, n.os 1 e 3, 65.º e 70.º, n.º 1, alínea d), do NRJAL). A correspondência estrutural e funcional com as regiões administrativas, designadamente com o disposto nos artigos 255.º, 256.º, n.º 1, 257.º e 258.º da Constituição, é patente. Justifica-se, por conseguinte, a seguinte questão: caso o Decreto n.º 132/XII fosse promulgado e entrasse em vigor, que papel restaria para as regiões administrativas? Estas ainda teriam algum espaço ao lado das entidades intermunicipais? O que distingue estas últimas do tipo de autarquia local com caráter supramunicipal previsto na Constituição é apenas a denominação: o nomen iuris dado pelo legislador ordinário é o de “entidade intermunicipal”, enquanto a Constituição adota para o mesmo tipo de autarquia a designação de “região administrativa”.
Contudo, relativamente aos institutos disciplinados na Constituição ou nela simplesmente tipificados, o legislador ordinário não é livre de os redenominar. Com efeito, as designações constitucionais são – ou podem ser – elas próprias constitucionalmente significativas (basta pensar em eventuais ressonâncias ideológicas ou na preocupação de assinalar linhas de continuidade ou descontinuidade com outras tradições constitucionais). Daí que faça parte da disciplina jurídica constitucionalmente prevista e prescrita, mesmo daquela que se traduza na previsão de tipos ou de institutos, a própria designação específica adotada, isto é, o nomen iuris constitucional. Assim, as autarquias locais referidas no artigo 236.º, n.º 1, da Constituição são típicas e nominadas, no sentido de a cada um dos tipos de tais autarquias não poder deixar de corresponder a designação constitucionalmente atribuída.
Por outro lado, ainda que tivesse sido observada a denominação constitucionalmente correta, a verdade é que a criação das comunidades municipais (e o mesmo seria válido para as áreas metropolitanas) pelo artigo 64.º do NRJAL e a eleição dos membros do respetivo órgão deliberativo assente num sistema de representação maioritária previsto no artigo 67.º, n.º 2, por remissão do artigo 90.º, n.º 1, ambos do mesmo NRJAL, violaria, respetivamente, os artigos 256.º e 239.º, n.º 2, e 260.º da Constituição.
II. Quanto à segunda alínea da decisão: a não inconstitucionalidade da faculdade de delegação de competências administrativas do Governo nos municípios e nas entidades intermunicipais (áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais)
Não acompanhei a decisão.
A “delegação de competências” prevista no artigo 99.º e seguintes do Anexo I do Decreto n.º 132/XII (“NRJAL”) – no seguimento da “descentralização administrativa” disciplinada no artigo 94.º e seguintes do mesmo diploma - apresenta-se, por um lado, e devido a implicar uma relação intersubjetiva, como uma figura afim da delegação de poderes em sentido próprio – em rigor, trata-se de uma delegação de atribuições ou funções - que concorre para uma maior eficácia da ação administrativa, para aproximar os serviços das populações e para reforçar o princípio da autonomia local na sua vertente participativa (a «autonomia-participação»), uma vez que permite alargar o âmbito de atuação autárquico a domínios de relevante interesse local – pelo menos, por ora – legalmente atribuídos ao Estado. A concretização da mesma “delegação” por via de contrato interadministrativo garante, por outro lado, a salvaguarda dos interesses relevantes de ambos os contraentes públicos, incluindo o da unidade de ação administrativa, sendo tal contrato, para mais, o instrumento adequado à harmonização do desempenho das respetivas atribuições (cfr. o artigo 338.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos; v. também o artigo 100.º, n.º 1, do NRJAL).
Num quadro constitucional em que o legislador reconhece uma ampla sobreposição de áreas de atuação do Estado e das autarquias locais delimitada, positivamente, pelos domínios de interesses próprios e, negativamente, pelos domínios de atuação exclusiva de cada entidade (por imposição legal ou ratione materiae), justifica-se materialmente a opção por uma habilitação genérica da delegação de poderes do Estado nas autarquias locais: podem ser objeto de delegação as competências administrativas do Governo com interesse e projeção local, desde que tal delegação não seja excluída por lei ou que as competências em causa, pela sua natureza, não sejam indelegáveis (v.g. competências em matéria de tutela administrativa). Existe, por conseguinte, uma delimitação dos poderes e das matérias delegáveis referida mediante as cláusulas gerais de atribuições próprias do delegante e do delegado e das atribuições intangíveis do primeiro. Por isso, a norma contida no artigo 107.º do NRJAL constitui uma habilitação legal suficiente para o Governo – através dos diferentes departamentos governamentais (cfr. o artigo 110.º, n.º 1, do citado regime) - delegar as competências administrativas que lhe sejam legalmente atribuídas nos órgãos dos municípios e das entidades intermunicipais. E, seguramente, não é uma “norma habilitante em branco”.
De resto, a figura da habilitação genérica não é desconhecida nem no direito das autarquias locais (v.g. no tocante à delegação de competências dos municípios nas freguesias, os artigos 15.º, n.º 1, e 66.º, n.º 2, respetivamente da Lei n.º 159/99, de 14 de setembro, e da Lei n.º 169/99, de 18 de setembro) nem no direito administrativo geral (v.g. o artigo 35.º, n.os 2 e 3, do Código do Procedimento Administrativo).
A exigência de habilitação legal específica no caso em apreço, para mais podendo - ou devendo, visto estar em causa exclusivamente o exercício da função administrativa - ser operada por via de decreto-lei, além de não acautelar nenhum interesse constitucional que não se encontre salvaguardado já pelo regime contido nos artigos 100.º a 106.º e 107.º a 110.º, todos do NRJAL – nesse sentido, são de destacar as exigências de fundamentação da decisão de contratar decorrentes dos artigos 104.º e 105.º desse regime -, poderia criar uma rigidez contrária aos princípios constitucionais em matéria de organização administrativa e ao princípio da autonomia local.
Pedro Machete