Imprimir acórdão
Processo nº 255/01
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que são recorrente M... e recorrido o Ministério Público, interposto pelo primeiro recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, foi proferida decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A do mesmo diploma legal, que não tomou conhecimento do objecto do recurso (decisão de 4 de Maio de
2001).
2. - É do seguinte teor a referida decisão sumária:
'1.1. - O magistrado do Ministério Público no Tribunal de Instrução Criminal da Comarca do Porto deduziu acusação, em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, contra M..., identificado nos autos, entre outros, acusando-o de co-autoria material na prática de um crime de insolvência dolosa, previsto e punido, à data dos factos, pelo artigo 325º, nºs. 1, alínea a), e 2, do Código Penal (texto de 1982), na redacção que lhe foi dada pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril [a que actualmente corresponde o artigo
227º, nºs. 1, alínea a), e 2, do Código Penal na redacção da Lei nº 65/98, de 2 de Setembro]. O arguido requereu a abertura de instrução, nos termos previstos no artigo 286º do Código de Processo Penal (CPP), e aí requereu a produção de diligências probatórias diversas. O magistrado judicial competente, por despacho de 12 de Junho de 2000, designou dia para a realização do debate instrutório, sem prejuízo de indeferir as reinquirições pretendidas de testemunhas e a efectivação de outras diligências, que teve por meramente dilatórias. Interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto, tocantemente à parte que indeferiu os requeridos meios de prova, não foi o recurso admitido, atento o disposto nos artigos 291º, nº 1, e 399º do CPP (despacho de 5 de Julho seguinte). Deduziu, então, o arguido, reclamação, nos termos do nº 1 do artigo 405º do CPP.
1.2. - Para o reclamante – como se retira do condensado das respectivas conclusões – o despacho que indeferiu a produção da prova testemunhal requerida,
'teve como óbvio propósito evitar que dali a escassos dias, ou seja, em 04.07.00
[o despacho é de 12 de Junho desse ano] ocorresse prescrição, como fatalmente ocorreria se fossem realizadas as diligências', tendo a magistrada judicial, perante esse quadro 'constringente', usado de 'poderes que lhe estavam conferidos pela lei para sanear o processo do que fossem actos dilatórios, no objectivo diferente e egoísta de evitar a prescrição', praticando, desse modo, poderes legais que utilizou para fins diferentes dos que teleologicamente lhe estavam conferidos, o que significa a prática de 'um genuíno «desvio de poder»'. Negando ao reclamante o direito de fazer inquirir testemunhas que arrolaria na oportunidade, o despacho violou o disposto nos artigos 287º, nº 2, e 291º, nº 1, do CPP, e, no plano da constitucionalidade, 'o despacho recorrido violou o disposto no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que as garantias constitucionais são postas em causa, quer quando a lei ordinária as não prevê quer quando, apesar de previstas, o julgador as não acata
(sublinhado original). Assim argumentando, defende o reclamante que, não obstante a irrecorribilidade do despacho previsto no nº 1 do artigo 291º do CPP, este é, na verdade recorrível, não por efeito da discricionariedade em que assenta mas sim pela arbitrariedade que o anima, 'e só aquela, que não esta, é que está coenvolvida pela proibição do recurso'. Recorrendo a outras palavras do interessado que melhor configurarão a situação que se pretende autonomizar, constantes do articulado da reclamação:
'Correctamente interpretado o artigo 291º, nº 1, do Código Penal [terá querido escrever Código de Processo Penal], é fácil concluir que são irrecorríveis os despachos que indefiram o pedido de produção de prova, sempre que o indeferimento se funda no propósito de evitar actos dilatórios, mas são recorríveis ao abrigo do princípio consagrado no artigo 390º do Código de Processo Penal, aqueles em que o Juiz da causa, servindo-se de poderes que lhe foram atribuídos pela lei para certo fim, deles se serviu para prosseguir fim diferente, qual seja, no caso dos autos, o de evitar uma prescrição que, no seu próprio entendimento, ocorreria enquanto o processo lhe esteve concluso'
(sublinhados originais).
Consolidar-se-ia, assim, um desvio de poder arbitrário, de recurso admissível, independentemente do direito à reclamação. Não obstante, por despacho de 31 de Dezembro de 2000, o Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto indeferiu a reclamação.
2. - Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro. Pretende a apreciação de 'constitucionalidade da interpretação/aplicação que o Juiz do 3º Juízo-A do Tribunal de Instrução Criminal deu ao artigo 291º do Código de Processo Penal e que indeferiu as diligências requeridas no requerimento de abertura de instrução, o que fez no quadro de um despacho a que, como se referiu nas alegações de recurso, falta de todo a fundamentação exigida, e com o que, privando o requerente de exercitar as garantias de defesa que lhe são consentidas pelo referido artigo 291º do Código de Processo Civil (terá querido escrever Penal), violou de uma só assentada, quer o artigo 32º, nº 1, quer o artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa'. O recurso foi admitido – o que, no entanto, não vincula o Tribunal Constitucional: cfr. nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
3. - Entende-se não poder conhecer-se do objecto do recurso, justificando-se a decisão sumária a que se refere o nº 1 do artigo 78º-A deste
último diploma legal.
4.1. - Decidiu-se no despacho recorrido que a reclamação prevista no nº 1 do artigo 291º do CPP não configura a reclamação para o Presidente da Relação, tal como esta se encontra consagrada no artigo 405º do mesmo Código. Na verdade, esta endereça-se ao presidente do tribunal a que o recurso se dirige e tem por objectivo obter a revogação do despacho que não admitiu o recurso ou o reteve, expondo-se as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso, indicando-se os elementos com que se pretende instruir a reclamação; aquela, é dirigida ao juiz do processo, propondo-lhe a reponderação do anteriormente decidido e nada tem a ver com a reparação da não admissão do recurso ou da sua subida diferida. Foi isso mesmo que o despacho do Vice-Presidente da Relação salientou. Como se diz a certo passo dessa peça processual, a reclamação prevista no nº 1 do artigo 291º, in fine, é dirigida ao próprio juiz, representa como que uma oportunidade que se lhe dá de reponderar a decisão proferida, sem que a parte possa ser penalizada pelo incidente. Acresce que o próprio reclamante não questiona a inadmissibilidade de recurso do despacho de que reclama, enquanto tal – o que não ocorreria se o mesmo for considerado expressão de arbitrariedade. Neste caso, aliás, e como se escreve no despacho, ter-se-ia de alegar e justificar em que é que reside essa arbitrariedade: se o despacho visa evitar a prescrição, a abertura da instrução não teria o mesmo fim?
4.2. - Na verdade, no requerimento em que interpôs recurso para este Tribunal, o arguido afirma pretender ver apreciada a constitucionalidade da interpretação/aplicação dada ao artigo 291º do CPP, ao indeferir as diligências requeridas no requerimento de abertura de instrução, por falta de fundamentação. No entanto, nas alegações do recurso – que não veio a ser admitido – o recorrente não colocou uma questão de constitucionalidade normativa, pertinente ao artigo 291º, antes se reporta à decisão judicial em si: '[...] negando ao Recorrente o direito de fazer ouvir aquelas testemunhas por forma a evitar uma prescrição [afirmação abusiva, pois, e contrariamente ao que dá a sugerir, o despacho de indeferimento em ponto algum abordou essa temática, limitando-se a considerar essas diligências como dilatórias, em sede obviamente ora insindicável] que, de outra forma, era incontornável, o despacho recorrido violou o disposto no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa
[...]'. Por sua vez, na reclamação para o Presidente da Relação, o reclamante continua a imputar o vício de inconstitucionalidade ao despacho que 'o privou do direito de ouvir as testemunhas' – quando o que está em causa, nesse momento, é o despacho de não admissão do recurso.
5. - Resulta do exposto que o recurso de constitucionalidade não congrega os pressupostos de admissibilidade que lhe são reconhecidos e constam do artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional: nomeadamente, suscitação de questão de constitucionalidade normativa, durante o processo, de modo directo e perceptível, sendo a referida norma ou a sua interpretação motivo determinante – ratio decidendi – da decisão recorrida. Seja porque se entenda que o recorrente pretende discutir a decisão judicial em si, e não a inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação, seja por falta de suscitação adequada e idónea, durante o processo, da questão de constitucionalidade da norma do artigo 291º do CPP, seja, ainda, porque a decisão recorrida, ao não admitir a reclamação, não se fundamenta nesta norma. Dir-se-á, por último, que o Tribunal Constitucional vem-se pronunciando – se bem que por maioria – no sentido da não inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 291º do CPP, na parte em que determina a irrecorribilidade do despacho do juiz que indefere o requerimento de realização de diligências instrutórias
(cfr., por todos, os recentes acórdãos nºs. 371/00, 375/00 e 459/00, publicados no Diário da República, II Série, de 5 de Dezembro, 16 de Novembro e 11 de Dezembro de 2000, respectivamente, ou os nºs. 388/00 e 78/01, ainda inéditos).
6. - Em face do exposto, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 unidades de conta.'
3. - Notificado, reclamou M... para a conferência, nos termos do nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, defendendo o conhecimento do objecto do recurso, com a sua consequente notificação para efeitos de alegar, nos termos do nº 5 do mesmo preceito legal.
Para o reclamante o que está em causa (no presente recurso de constitucionalidade) é:
'a. Constitucionalidade da norma do nº 1 do artº 291 do Cód. Proc. Penal ao conferir poderes ao Juiz de Instrução para, por decisão irrecorrível, indeferir a produção da prova requerida pela defesa, com o que, violando-se as garantias de defesa consagradas no artº 32, nº 1 da Constituição, se suprimindo, ‘in casu’, ao Recorrente um direito que a Constituição do seu país lhe assegura. b. Constitucionalidade do despacho de 12.06.00 que, julgando que a inquirição das testemunhas arroladas na fase da instrução apenas serviria para protelar o andamento do processo, vedou ao recorrente a possibilidade de provar factos que, ou fariam prova da sua inocência ou afastariam os indícios (in)existentes recolhidos na fase do inquérito – com o que, do mesmo passo, privou o recorrente das garantias materiais da defesa acolhidas no mesmo artº 32, nº 1 da Constituição. c. Constitucionalidade do despacho de 12.06.00 que indeferindo a produção da prova, o fez por apelo aos dizeres do próprio nº 1 do artº 291 da Constituição – o que não vale materialmente como fundamentação do acto jurisdicional para efeito do disposto no artº 205, nº 1 da Lei Fundamental.'
4. - O magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, em resposta à reclamação apresentada, pronunciou-se no sentido da sua manifesta improcedência.
O que fez em termos que assim se reproduzem:
'1- A presente reclamação é manifestamente improcedente, pelas razões ou motivos concorrentes ou cumulativos indicados na douta decisão sumária impugnada.
2- Assim – e desde logo – não constitui questão de constitucionalidade normativa, idónea para servir de suporte a um recurso de fiscalização da constitucionalidade de normas, a que se traduz em pretender fazer sindicar por este Tribunal a concreta decisão das instâncias – e a sua específica motivação – consistente em rejeitar, por dilatórias, determinadas diligências instrutórias requeridas pelo arguido.
3- Isto mesmo é, de pleno, confirmado pelo ora reclamante ao afirmar, no âmbito da reclamação ora deduzida (a fls. 105 v e 106), que o que está ‘em causa’ é apurar da ‘constitucionalidade do despacho de 12 de Junho de 2000’.
4- No que concerne à constitucionalidade ‘ da norma do nº 1 do artigo 291º do Código de Processo Penal’ é manifesto que a questão suscitada pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, a fls. 92, prende-se – não com a irrecorribilidade de tal decisão na ordem dos tribunais judiciais – mas com uma pretensa e total ‘falta de fundamentação’, sendo evidente que, a existir tal nulidade, cumpria ao recorrente ter esgotado os normais meios impugnatórios, com vista a vê-la actuada e declarada, e suscitando, no âmbito de tal arguição, as questões de constitucionalidade que entendesse pertinentes.
5- E sendo igualmente evidente que tal questão transcendia naturalmente o âmbito da reclamação para o Presidente da Relação, circunscrita à questão da
‘irrecorribilidade’ de certo despacho – e não à apreciação de quaisquer
‘nulidades’ da decisão proferida.'
Cumpre decidir.
5. - Reitera-se a decisão sumária, com a qual se concorda, na sua essencialidade.
Pretende-se ver apreciada, em primeira linha, a interpretação dada à norma do artigo 291º do CPP, na medida em que se indeferiram, por falta de fundamentação, as diligências requeridas na abertura de instrução.
No entanto, como oportunamente se escreveu, no trecho acabado de transcrever, a questão colocada visa essencialmente a reponderação da decisão proferida no tribunal a quo e não coloca um problema de matriz constitucional, para além de, como quer que seja, não ter a aludida norma servido de fundamento à decisão.
De resto, e como observa o Ministério Público, não pode pretender-se que este Tribunal sindique a decisão concreta das instâncias, e a sua específica motivação, a qual mais não teve por fim do que rejeitar, por dilatórias, determinadas diligências instrutórias requeridas pelo arguido.
Tão pouco se vê em que medida a avocação dos autos que entretanto seguiram seus trâmites – a admitir-se essa diligência como viável, nesta sede – poderia aproveitar ao reexame da decisão sumária.
Ao Tribunal Constitucional compete aferir a constitucionalidade do critério normativo utilizado, não a ponderação da singularidade do concreto caso, nem tão pouco a tarefa subsuntiva levada a efeito pelo julgador, do caso concreto à norma.
Assim sendo, mantêm pertinência, no essencial, as considerações expendidas na decisão sumária conducentes ao não conhecimento do objecto do pedido.
Sem prejuízo de igualmente se reiterar a jurisprudência citada na ocasião e que, relativamente ao conhecimento do problema de fundo, vêm-se pronunciando no sentido da não inconstitucionalidade da norma impugnada, na parte que ora releva.
6. - Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária reclamada, que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta. Lisboa, 19 de Junho de 2001- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida