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Proc.º n.º 166/2001.
2.ª Secção. Relator:- Bravo Serra.
(Consª Fernanda Palma)
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta de constitucionalidade, em que figuram, como recorrente, o Ministério Público e, como recorrido, J..., o Juiz do 2º Juízo Criminal do Tribunal de comarca de Oeiras, na decisão de 13 de Fevereiro de 2001, considerou o seguinte:
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................ A pergunta que se coloca é a seguinte: tendo o legislador aprovado e publicado um diploma legislativo no qual descriminaliza uma certa conduta (no caso, o consumo de estupefacientes), é lícito retardar a entrada em vigor de tal diploma por razões, ao que parece, de natureza meramente administrativa
(‘regulamentares, organizativas, técnicas e financeiras’), continuando a punir-se criminalmente, até ao dia 01 de Julho de 2001, as condutas abrangidas por tal descriminalização? Quer dizer, é aceitável a existência de da figura da descriminalização ‘a prazo’? Pensa-se que a resposta deverá ser negativa, porquanto uma tal solução é violadora de vários princípio constitucionais vigorantes no domínio do Direito Criminal.
3. Inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade.
3.1. O art.º 29º, nº 1, da Constituição da República reza assim: ‘Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de Lei anterior que declara punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em Lei anterior’. Consagra-se aqui o conhecido princípio da legalidade em Direito Penal, também proclamado no artº 1º, nº 1, do C. Penal. Não há possibilidade, agora, de aprofundar o significado deste fundamental princípio e de estudar todas as suas implicações e corolários. Bastará dizer que
‘É a primeira função do princípio nullum crimen decerto uma função de garantia, exigida pela ideia de Estado-de-Direito, contra o exercício já ilegítimo
(político-juridicamente ilegítimo) já abusivo (persecutório e arbitrário), já incontrolável (subtraído à racionalidade jurídico-dogmática e crítico-metodológica) do ius puniendi estadual. E justamente enquanto impõe a esse poder uma «regra de competência», lhe define as condições formais de exercício e lhe demarca os seus intencionais limites normativos. Pois continua a postular-se que só a incriminação e a punição que se submetam quer às exigências de fundamento e critério, quer aos limites jurídicos que lhes visa impor o princípio da legalidade criminal se aplicarão em termos de se afirmarem, por um lado, como político-criminalmente legítimas - reconhecer-se-à o «princípio democrático» ou representativo-democrático na definição dos pressupostos da incriminação punitiva e cumprir-se-à o «princípio da separação de poderes» na determinação normativa desses pressupostos - e de levarem, por outro lado, preservada a segurança jurídica (a previsibilidade e a segurança jurídicas) e suficientemente respeitada a liberdade dos cidadãos (pela exclusão mesma do arbítrio, correlato de aquela segurança jurídica, e pela possibilidade de controle da incriminação e punição que o cumprimento do princípio garantirá. Só que não se fica hoje por aqui, apenas por essa negativa função formal de garantia. Tende-se decisivamente a compreender ainda o princípio com um sentido normativamente material e positivo, ao pretender ver-se nele, seja a manifestação da justiça material ou pelo menos da justiça jurídica do direito penal, seja a expressão da própria juridicidade do sistema criminal, seja inclusivamente uma inferência do valor último da dignidade da pessoa humana. É certo que é esta uma nova dimensão do princípio que, apesar dos já relevantes contributos oferecidos pelo actual pensamento jurídico, não logrou ainda afirmar-se com a generalidade e o expresso reconhecimento que a sua essencial importância justifica. E, no entanto, temos para nós que será no assumir dessa dimensão - embora não necessariamente por qualquer dos modos referidos, que não se revelam de todo imunes à critica que o princípio poderá esperar hoje uma sua compreensão decisiva, aquela recompreensão que permitirá como que restituí-lo no pensamento jurídico contemporâneo’.
3.2. Ora, uma solução como aquela que está em análise conduz, salvo o devido respeito, a uma violação de tal princípio encarado sob a sua dimensão material.
É certo que, do ponto de vista puramente formal, o Decreto-Lei nº 15/93, na parte em que incrimina o consumo de estupefacientes continua em vigor, por força do diferimento da entrada em vigor da Lei nº 30/2000 cit. operada pelo seu artº
29º. Porém, menos certo não é que se encontra 'visível' no ordenamento jurídico um diploma que expressamente descriminaliza tal conduta, quer dizer, o órgão legislativo competente (no caso, a própria Assembleia da República) inequivocamente veiculou, através de diploma legislativo aprovado, referendado e publicado, o entendimento que essa conduta não mais constitui crime. Isto significa que, a punir-se agora o arguido nos presentes autos, tal corresponderia, materialmente, na óptica da Justiça que preside à ideia de Estado de Direito Democrático (com implicações ao nível do princípio da dignidade da pessoa humana, da igualdade, e até da culpa) a puni-lo por um comportamento que materialmente já não é crime, considerando-se o artº 40º do Decreto-Lei nº 15/93 cit. tacitamente revogado pelo artº 2º da lei nº 30/2000 cit., em particular, e em geral, por todo o regime legal constante desta Lei - aliás, cf. o seu artº 28º. Ao prolongar artificialmente a ‘vida’ da incriminação constante do Decreto-Lei nº 15/93 cit. por razões de natureza regulamentar, organizativa, técnica e financeira, isto é, por razões totalmente alheias à valoração das condutas como merecedoras ou não de tutela penal, o artº 29º da Lei nº 30/2000 cit. vulnera, pois, o princípio da legalidade, na medida em que impõe a punição por condutas que não devem mais considerar-se tipificadas como criminalmente puníveis2.
4. Inconstitucionalidade por violação do princípio da necessidade da pena.
4.1. O Direito Penal incrimina e pune as violações culpáveis de bens ou interesses jurídicos de relevante significado para a existência e progresso da vida social. A tutela penal é subsidiária, no sentido de que só deve ter lugar a incriminação quando meios jurídicos menos gravosos que a reacção penal se reputem insuficientes para assegurar a eficácia do ordenamento jurídico. E ‘nesta conformidade o Direito Penal se por um lado, na sua função punitiva, irroga sanções que manifestamente limitam ou restringem os direitos fundamentais, é também o ramo do direito em que se estrutura a garantia desses mesmos direitos, quer através da regulamentação do poder de punir de modo a que não possa ser utilizado arbitrariamente pelos órgãos do Estado, quer através das mais graves ofensas a esses mesmos direitos. Os limites dos diferentes poderes ou funções do Estado, quer na sua função de positivação do direito, como legislador, quer na sua função jurisdicional, como juiz, quer na sua função administrativa, estão em conexão estreita com o conceito moderno de Estado de Direito’. Na verdade, constitui um dos mais importantes vectores da política criminal actual a ideia de que o Estado e o seu aparelho penal formalizado devem intervir o mínimo possível. Tal ideia-base da não-intervenção traduz-se praticamente na limitação até ao ponto máximo aceitável da intervenção do Direito Penal
(‘não-intervenção moderada ou judiciosa’) e assenta na proposição segundo a qual num Estado de Direito democrático, o Direito Penal só pode intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem. Desta proposição decorrem algumas consequências fundamentais. Em primeiro lugar, a de que o Direito Penal não está legitimado para intervir relativamente a condutas - por mais imorais, asociais ou politicamente indesejáveis que se tornem - que não violem um bem jurídico claramente individualizável. Em segundo lugar, a de que, mesmo quando uma conduta viole um bem jurídico, ainda os instrumentos jurídico-penais devem ficar fora de questão sempre que a violação possa ser suficientemente controlada ou contrariada por instrumentos não criminais de política social: ‘a necessidade social torna-se um critério decisivo de intervenção do direito penal, assim arvorado em ultima ou extrema ratio da política social. Deste modo, do âmbito do direito penal devem ser excluídas todas as condutas axiologicamente neutras e tratadas com meios de natureza não penal, maxime, com as coimas próprias do direito de contra-ordenações ou de mera ordenação social. Finalmente, a consequência de que processos de neo-incriminalização só podem ser aceites e legitimados onde novos fenómenos sociais, anteriormente existentes ou muito raros, desencadeiem consequências comunitariamente insuportáveis e contra as quais se tenha de fazer intervir a tutela penal penal em detrimento de um paulatino desenvolvimento de estratégias não criminais de controlo social’.
4.2. Estes princípios fundamentais político-criminais hão-de encontrar expressão dentro do quadro de valores integrantes do consenso comunitário e mediados ou
‘positivados’ pela Constituição democrática do Estado: ‘Pressuposto essencial da definição de um programa de política-criminal é, assim, a explanação dos seus princípios directores, entendendo-se por tais princípios aqueles que, devam simultaneamente considerar-se ou directamente como princípios constitucionais, ou pelo menos como emanações do sistema jurídico-constitucional próprio de um Estado de Direito Democrático e Social’. O preceito fundamental a ter em conta é o artº 18º, nº 2, da Constituição da República, que aqui se recorda: ‘A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos’. Condensa-se aqui o princípio que se poderá chamar de congruência ou da analogia substancial entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal. Deste princípio, que só raramente encontra consagração expressa nos textos constitucionais, decorre justamente a exigência da necessidade e subsidiariedade da intervenção jurídico-penal:
‘Vinculando a uma estreita analogia material entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídico-penais, e subordinando toda a intervenção penal a um estrito princípio de necessidade, ele obriga, por um lado, a toda a descriminalização possível; proíbe, por outro lado, qualquer criminalização dispensável, o que vale por dizer que não impõe, em via de princípio qualquer criminalização em função exclusiva de um certo bem jurídico; e sugere, ainda, por outro lado, que só razões de prevenção, nomeadamente de prevenção geral de integração, podem justificar a aplicação de reacções criminais’.
4.3. Estes princípios constitucionais densificam-se nas categorias dogmáticas da dignidade penal e da carência de tutela penal. Pode-se definir a dignidade penal como a expressão de um juízo qualificado de intolerabilidade social, assente na valoração ético-social de uma conduta, na perspectiva da sua criminalização e punibilidade. No plano transistemático, a dignidade penal assegura eficácia ao mandamento constitucional de que só os bens jurídicos de eminente dignidade de tutela devem gozar de protecção penal. Nesta medida e com este alcance, o conceito e o princípio da dignidade de tutela dão já guarida ao princípio constitucional da proporcionalidade. Em segundo lugar, no plano axiológico-teleológico, o juízo de dignidade penal privilegia dois referentes materiais: a dignidade de tutela do bem jurídico e a potencial e gravosa danosidade social da conduta, enquanto lesão ou perigo para os bens jurídicos. Por último, e no plano juridico-sistemático, a dignidade penal mediatiza e actualiza o postulado segundo o qual o ilícito penal se distingue e singulariza face às demais manifestações de ilícito conhecidas da experiência juridica: digno de pena é apenas um comportamento merecedor de desaprovação ético-social, porque é adequado a pôr gravemente em perigo ou a prejudicar as relações sociais no interior da comunidade organizada. Mas a dignidade penal de uma conduta não decide, só por si e de forma definitiva, a questão da criminalização. À legitimação negativa, mediatizada pela dignidade penal, tem de acrescer a legitimação positiva, mediatizada pelas decisões em matéria de tutela. Intervém agora o princípio de carência de tutela penal. No plano transistemático, a carência de tutela penal dá expressão ao princípio da subsidiariedade e de ultima ratio do direito penal. O direito penal só deve intervir quando a protecção dos bens jurídicos não possa alcançar-se por meios menos gravosos para a liberdade. A afirmação da carência de tutela penal é também adequada e necessária para a prevenção da danos idade social, e que a intervenção do direito penal no caso concreto não desencadeia efeitos secundários, desproporcionadamente lesivos. A carência de tutela penal analisa-se, assim, num duplo e complementar juízo: em primeiro lugar, um juízo de necessidade, por ausência de alternativa idónea e eficaz de tutela não penal; em segundo lugar, umjuízo de idoneidade do direito penal para assegurar a tutela, e para o fazer à margem de custos desmesurados no que toca ao sacrifício de outros bens juridicos, maxime a liberdade’. Como é sabido, estes princípios nortearam a reforma do Direito Penal português, corporizada essencialmente no C. Penal de 1982.
4.4. É certo que a Constituição da República não impõe, em geral, a penalização ou despenalização de certas condutas, deixando uma larga margem de conformação ao legislador ordinário. Mas, justamente, o legislador ordinário, no caso em apreço, proclamou inequivocamente a falta de dignidade penal e de carência de tutela penal da conduta sub judicio. Ao diferir a entrada em vigor da Lei nº 30/2000 cit., o seu artº 29º afinal impõe a aplicação de penas por comportamentos que já foram considerados como não as carecendo. Tal solução, além de não ter liquidez constitucional, é certamente incompreensível para os destinatários das normas, a saber, o comum dos cidadãos.
5. Sendo inconstitucional, como se afigura, a disposição em análise, há que considerar que a descriminalização operada pela Lei entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação ou, pelo menos, findo o prazo subsidiário da vacatio legis de cinco dias após a data da sua publicação (2000-11-29) - artº
2º, nºs 1, 2 e 4, da Lei nº 74/98, de 11 de Novembro. Razão pela qual deve, in casu, considerar-se descriminalizada a conduta imputada ao arguido nos presentes autos, mediante aplicação do regime prevenido no artº
2º, nº 2, do C. Penal. De modo que o conhecimento desta questão preclude a operação da determinação da eventual pena a impor ao arguido, havendo que proferir decisão em conformidade, sem necessidade de outras considerações.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
Na sequência, o Juiz do 2º Juízo Criminal do indicado Tribunal recusou a aplicação da norma do artigo 29º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, e julgou extinto o procedimento criminal, determinando o seu arquivamento.
2. É desta decisão que, pelo Ministério Público, vem interposto o presente recurso ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição, e
70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com vista à apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 29º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro.
Rematou o recorrente a sua alegação com as seguintes «conclusões»:
1º. Não viola o princípio da legalidade e da necessidade da pena a norma que - no momento da realização pelo legislador de uma ‘desgraduação’ do ilícito criminal em ilícito de mera ordenação social - estabelece uma especial (e alargada) ‘vacatio legis’ para a lei nova, conexionada com a necessidade de criação das condições práticas - de natureza administrativa, técnica e financeira - destinadas a possibilitar a eficácia, no plano sociológico da pretendida descriminalização.
2º. Termos em que deverá proceder o presente recurso.
Apresentado projecto de acórdão pela primitiva relatora e, não obtendo o mesmo vencimento, mudaram os autos de relator.
Cumpre decidir.
3. Entende-se que é inútil o conhecimento do objecto do recurso.
Na verdade, a Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, entrou em vigor no dia 2 de Julho de 2001 (cfr. seu artº 29º).
Com o despacho ora recorrido, o Juiz do 2º Juízo Criminal do Tribunal de comarca de Oeiras esgotou, nos presentes autos, o seu poder jurisdicional, só podendo rever o ali decidido caso o recurso que do mesmo foi interposto para o Tribunal Constitucional viesse a ter provimento e, em consequência, viesse a ser determinada a sua reforma no passo em que foi recusada a aplicação, por inconstitucionalidade, da norma constante daquele artº
29º.
Ora, mesmo que porventura este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa viesse agora (ou seja, depois da entrada em vigor da Lei nº 30/2000) a pronunciar-se no sentido de não ser desconforme com a Lei Fundamental o indicado normativo, o que é certo é que, tendo em atenção o disposto no nº 4 do artº 2º do Código Penal (cfr., também, o artigo 29º, nº 4, da Constituição), sempre o Juiz a quo teria de aplicar o regime constante da dita Lei neste particular e, em consequência, vir a julgar extinta, por descriminalização, a conduta do ora recorrido.
Por outro lado, se o juízo deste Tribunal fosse o de inconstitucionalidade, assim não dando provimento ao recurso, então o decidido no despacho impugnado manter- -se-ia.
Verifica-se, pois, que, a prosseguir o vertente recurso, o resultado prático a que se assistiria, quer na hipótese de o mesmo não vir a ter procedência, quer naqueloutra em que a impugnação em causa viesse a ser provida, seria o mesmo, qual fosse, justamente, o de se manter a decisão jurisdicional de extinção do procedimento criminal do recorrido.
Sendo sabido que os recursos do jaez do presente têm uma função instrumental, só se justificando se a decisão a proferir sobre a questão de constitucionalidade se projectar utilmente sobre a «causa» pendente nos tribunais das várias ordens jurisdicionais, então, perante o circunstancionalismo descrito, há que reconhecer que, in casu, nenhuma utilidade resultaria da impugnação ora em causa.
Poder-se-ia questionar o juízo acima formulado no ponto em que, tendo-se a decisão ora em análise limitado a considerar «descriminalizada» a conduta imputada ao então arguido, e não tendo daí retirado outras consequências
(verbi gratia, aferindo de uma eventual responsabilidade contra-ordenacional daquele arguido), sempre restaria utilidade no conhecimento do presente recurso.
Simplesmente, a uma tal argumentação contrapõe-se, de um lado, que, recaindo a decisão em apreço tomada no 2º Juízo do Tribunal Criminal da comarca de Oeiras sobre a norma da vacatio somente na parte que dizia respeito à
«descriminalização» da indiciada conduta (e, desse modo, não sendo censurada na parte em que dizia respeito ao restante regime instituído pela Lei nº 30/2000), dificilmente se configuraria a possibilidade de, no momento em que foi proferido o despacho (isto é, numa ocasião em que aquele restante regime ainda se não encontrava em vigor), estar a efectuar um juízo sobre a possível responsabilidade contra-ordenacional do arguido, responsabilidade essa que, precisamente, foi consagrada pela primeira vez por aquele diploma.
E, de outro lado, ainda que aquela possibilidade se configurasse, nem por isso se apresenta desde logo como inconcebível que, agora, venha porventura a ser desencadeado o procedimento contra-ordenacional, e isto sem que se deseje minimamente querer tomar posição sobre o acerto, do ponto de vista constitucional, de uma normação ordinária que suportasse uma actuação nesse sentido.
O conhecimento do presente recurso não se revestiria, pois de utilidade, mesmo que porventura se adoptasse uma posição segundo a qual, em caso de substituição de uma norma penal por uma norma contra-ordenacional, seria ainda lícito ser esta última aplicável aos factos ocorridos no domínio da lei anterior.
Em face do exposto, por inutilidade, não se toma conhecimento do objecto do recurso.
Lisboa, 24 de Outubro de 2001 Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto
I
1. Quanto à inutilidade do recurso
Discordo do julgamento de inutilidade do recurso, porque entendo que um eventual juízo de não inconstitucionalidade, não confirmando a decisão recorrida, teria as seguintes consequências:
1ª - A não inconstitucionalidade da norma que suspendeu a entrada em vigor da lei descriminalizadora implicaria a revogação da decisão de arquivamento do procedimento criminal já proferida.
2ª - A reposição do problema da aplicação da lei penal, após a entrada em vigor da lei descriminalizadora, mas que converte a infracção em contra-ordenação, implicaria, por força dos princípios constitucionais da aplicação da lei penal no tempo, a possibilidade de instauração do procedimento contra-ordenacional, o que não poderá nunca acontecer quando consolidar uma decisão de inconstitucionalidade da lei suspensiva de aplicação da lei nova, porque no momento de tal decisão não estava ainda em vigor a contra-ordenação
(já que a aplicação estava, exactamente, suspensa).
3ª - Deste modo, uma eventual decisão de não inconstitucionalidade suscitaria a oportunidade de o tribunal recorrido provocar, perante a autoridade administrativa a aplicação da lei contra-ordenacional, possibilidade que através da decisão de extinção do recurso deixa de existir porque, como se disse, se consolida não só a extinção do procedimento criminal como do vazio jurídico que tal decisão implicou (contra a vontade do legislador) no momento da sua produção.
II
2. Independentemente da anterior questão e quanto ao fundo do problema que constitui o objecto do recurso, o meu juízo é o de que não se verifica a inconstitucionalidade alegada e que levou à desaplicação da lei pelas razões que seguidamente exponho.
III A questão de constitucionalidade da norma contida no artigo 29º da Lei nº 30/2000 por violação do artigo 29º, nº 1, da Constituição
3. O artigo 29º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, tem a seguinte redacção: Artigo 29º Entrada em vigor A descriminalização aprovada pela presente lei entra em vigor em todo o território nacional no dia 1 de Julho de 2001, devendo ser adoptadas, no prazo de 180 dias a contar da data da sua publicação, todas as providências regulamentares, organizativas, técnicas e financeiras necessárias à aplicação do regime de tratamento e fiscalização nela previsto.
Na situação legislativa em discussão neste recurso, verifica-se a submissão de uma lei desincriminadora a um prazo legal alargado de vacatio legis, por razões de natureza regulamentar, organizativa, técnica e financeira. Deste modo, a lei incriminadora mantém-se em vigor até ao decurso desse prazo.
A eventual violação do princípio da legalidade invocada decorreria da perspectiva de que uma vez decidida a desincriminação de uma conduta deixaria de existir fundamento material na óptica do Estado de Direito para que essa conduta continuasse a ser punida.
Porém, esse entendimento, para se poder impor com necessidade lógica, teria que se fundar num pressuposto que não é, de qualquer modo, demonstrado, no caso concreto, de que toda a desincriminação é uma decorrência de uma alteração de valores ou de que a anterior incriminação era constitucionalmente inadmissível. Só sob esse pressuposto é que teria, eventualmente, cabimento considerar-se que uma lei desincriminadora não poderia estar sujeita a um prazo de vacatio legis. Ora, no caso sub judicio, não é suscitada uma hipotética inconstitucionalidade da lei anterior nem é invocada em termos claros uma alteração radical de valorações jurídicas que pudesse tornar insustentável a subsistência da lei antiga. Deste modo, não se descortina qualquer razão pela qual se possa afirmar que a lei incriminadora não possa subsistir, durante o período de vacatio legis, e que, por isso, não exista lei anterior que declare punível o facto, conforme preceitua o artigo 29º, nº 1, da Constituição.
Por outro lado, é certo que a nova lei, ainda não em vigor, não torna, sequer, permitido o consumo de estupefacientes em toda e qualquer situação, mas mantém-no na esfera do proibido, embora qualificando-o como contra-ordenação.
Assim, é claro que, independentemente de qualquer discussão sobre a natureza deste ilícito em confronto com o ilícito penal (quantitativa ou qualitativamente diversa), não houve uma vontade legislativa que tivesse operado uma absoluta alteração de valoração jurídica de tais condutas no relacionamento entre o estado e o indivíduo, mas verificou-se apenas uma mudança de política social sobre a questão da tóxico-dependência. E, por isso, também de um ponto de vista das valorações do legislador democrático não existe uma ruptura entre as duas situações legislativas que revele que seria insustentável de acordo com a vontade democrática a subsistência temporal da lei anterior, verificando-se, por isso, uma contradição entre a instauração legislativa de um certo período de vacatio legis e o princípio da legalidade.
IV A questão da constitucionalidade da norma contida no artigo 29º da Lei nº
30/2000 por violação do artigo 18º, nº 2, da Constituição
4. No que se refere a uma eventual violação do princípio da necessidade da pena, também não é aceitável a conclusão pela inconstitucionalidade.
Com efeito, mesmo não rejeitando, numa certa medida, a vinculação do legislador a um conceito material de crime, nomeadamente em casos de manifesta desproporcionalidade de uma incriminação ou de falta de dignidade punitiva de uma conduta (cf., entre tantos outros, Acórdãos nºs 290/97, de 12 de Março de
1997, D.R., II Série, de 15 de Maio de 1997), também é verdade que nunca foi suscitada neste Tribunal a inconstitucionalidade, a essa luz, da incriminação do consumo de estupefacientes constante do Decreto-Lei nº 15/93, e, de modo algum, essa questão está em discussão no presente recurso.
Nessa medida, apenas há que analisar o eventual confronto com uma dimensão mais relativa do princípio da necessidade da pena que tem a ver com a concreta carência de protecção penal do consumo de estupefacientes, por existirem medidas sociais alternativas. Ora, é precisamente da instauração dessas medidas que cura o diploma que contém a norma em crise.
A necessidade de incriminar não é perspectivável estaticamente, mas no confronto com possibilidades futuras de instauração de medidas eficazes de dissuasão e tratamento das pessoas tóxico-dependentes. Na medida em que essas condições se possam efectivar, deixará de inexistir alternativa político-criminal à incriminação e, consequentemente, terá sentido falar de desnecessidade de incriminação.
Que o legislador encare a instauração de uma certa organização de medidas como condição da possibilidade de descriminalização não é, porém, contraditório com o princípio da necessidade da pena, mas tão só a própria concretização da ideia de necessidade da pena através da prossecução de condições que tornem efectivamente desnecessária a incriminação. Seria, eventualmente, contrário ao princípio da necessidade da pena que, por reconhecida inércia legislativa, se continuassem a incriminar condutas que poderiam ser combatidas através de meios disponíveis que não se activariam. Mas já a persistência de uma incriminação, num período reduzido de tempo - o da vacatio legis - enquanto uma certa organização de medidas não é estabelecida, não permite afirmar, sem mais, que a incriminação é uma restrição excessiva e desproporcionada de direitos fundamentais, nesse período, no confronto com os outros interesses de segurança geral que a incriminação também visa acautelar. Seria, assim, uma concepção de necessidade da pena alheia à própria natureza pragmática do princípio a que exigisse a desincriminação durante o curto período concebido pelo legislador para essa criação de medidas. Nesse caso, transferir-se-ia para a sociedade, sem qualquer protecção da mesma, os encargos de uma preparação de alternativas político-criminais à incriminação de certas condutas e criar-se-ia um hiato protector da segurança geral e dos bens jurídicos entre os dois momentos legislativos.
Não se concebe, portanto, em face do que ficou dito, que seja sustentável, no presente caso, a violação do princípio da necessidade da pena. Maria Fernanda Palma