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Proc. n.º 172/01 Acórdão nº 318/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Na decisão sumária de fls. 258 e seguintes decidiu-se não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto por J... para este Tribunal, pelos seguintes fundamentos:
'[...]
9. Da leitura da resposta ao ordenado no despacho de fls. 254 e v.º resulta que o recorrente pretende ver apreciada a conformidade constitucional
(mais precisamente, a conformidade com o estabelecido na alínea b) do n.º 1 do artigo 59º da Constituição) da norma do n.º 1 do artigo 35º do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho (Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro), numa determinada interpretação. Aquela norma considera justa causa de rescisão do contrato pelo trabalhador certos comportamentos da entidade empregadora, descritos nas várias alíneas do preceito em causa (nomeadamente, a violação culposa das garantias legais ou convencionais do trabalhador: alínea b)). E a interpretação normativa que o recorrente questiona é a que consiste na apreciação da justa causa, em caso de violação dos deveres da entidade patronal consagrados no artigo 19º da Lei do Contrato de Trabalho (assim, o dever de tratar e respeitar o trabalhador com urbanidade ou o dever de proporcionar-lhe condições de trabalho), segundo o grau de gravidade e culpabilidade da entidade patronal, ou seja, à luz dos requisitos previstos no n.º 1 do artigo 9º do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho para a justa causa de despedimento do trabalhador. Este preceito determina que «o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho constitui justa causa de despedimento». Em suma: para o recorrente, padece de inconstitucionalidade a interpretação normativa segundo a qual a justa causa de rescisão do contrato pelo trabalhador pressupõe, não apenas a violação de certos deveres pela entidade patronal, mas ainda um comportamento culposo dessa entidade que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho. Verificar-se-á de seguida se a questão suscitada pelo recorrente pode ser apreciada por este Tribunal, ou seja, se estão reunidos os pressupostos para o conhecimento do objecto do presente recurso.
10. Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui um dos seus pressupostos processuais o ter o recorrente suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma (ou da norma, numa determinada interpretação) cuja apreciação pelo Tribunal Constitucional é pretendida. A este pressuposto processual alude, não só a alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, mas também o n.º 2 do artigo 72º da mesma Lei. Aqui se diz, efectivamente, que o recurso previsto naquele primeiro preceito só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer». Como o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente, a inconstitucionalidade de uma norma só se suscita durante o processo quando tal se faz a tempo de o tribunal recorrido poder decidir essa questão, isto é, em princípio, quando o problema é colocado antes de ser proferida a decisão sobre a matéria a que respeita a questão de constitucionalidade. Porém, o Tribunal tem admitido que, em casos excepcionais e anómalos em que o recorrente não tem oportunidade processual de cumprir o ónus de suscitar a questão de constitucionalidade durante o processo, ele possa ser dispensado do seu cumprimento. Ora, no presente caso o recorrente não suscitou, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, isto é, não suscitou tal questão de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. Na realidade, compulsando os autos verifica-se que o recorrente só suscitou a questão da inconstitucionalidade depois de ter sido proferido o acórdão recorrido – que é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Dezembro de
2000 (supra, 6.) –, mais concretamente, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional (supra, 8.). Isto é, fê-lo num momento em que o tribunal recorrido já não podia pronunciar-se sobre a questão da inconstitucionalidade que o recorrente pretende ver apreciada, porque já se encontrava extinto o respectivo poder jurisdicional. O recorrente, aliás, admite no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional que não suscitou a questão da inconstitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida (supra, 8.). Pode, todavia, perguntar-se se, antes de proferida a decisão recorrida, o recorrente não havia tido oportunidade processual de cumprir o ónus de suscitar a questão de constitucionalidade durante o processo. Por outras palavras: será procedente o argumento do recorrente segundo o qual a interpretação adoptada pelo tribunal recorrido da norma do artigo 35º, n.º 1, do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho constituiu para si uma «peregrina interpretação» (supra, 8.), dispensando-o consequentemente do ónus de suscitar a questão da inconstitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida? A resposta é evidentemente negativa. A interpretação adoptada pela decisão recorrida só constituiu uma «peregrina interpretação» para o recorrente na estrita medida em que a decisão quanto à existência de justa causa de rescisão do contrato divergiu das decisões proferidas nas instâncias a tal propósito. Não constituiu, de modo algum, uma interpretação com a qual o recorrente não pudesse contar e, nessa medida, uma interpretação relativamente à qual não pudesse suscitar a questão da sua desconformidade constitucional durante o processo. Com efeito, da leitura dos autos resulta o seguinte: a) No artigo 15º da contestação da ré (supra, 1.), afirma-se expressamente que justa causa de rescisão do contrato pelo trabalhador «significa, nos termos do art. 9º do Dec. Lei 64-A/89, qualquer comportamento que ‘torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho’»; b) Na sentença do Tribunal do Trabalho de Coimbra (supra, 2.) questiona-se em certa passagem: «a actuação da Ré tornou imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho?»; c) Nas alegações da ora recorrida para o Tribunal da Relação de Coimbra (supra,
3.), concluiu-se não existir justa causa de rescisão, «por não existir gravidade nem consequências que tornassem imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral»; d) Nas próprias contra-alegações da ora recorrente para o Tribunal da Relação de Coimbra (supra, 3.) afirma-se, a certo passo, existir «impossibilidade de subsistência da relação laboral do A.», concluindo-se depois que «a relação de trabalho entre ambos era impossível»; e) No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (supra, 4.) refere-se o seguinte: «a Recorrente com a sua actuação tornou imediata e praticamente impossível a subsistência das relações de trabalho, não tendo o Autor condições para continuar a exercer as suas funções»; f) Nas alegações da ora recorrida para o Supremo Tribunal de Justiça (supra, 5.) novamente se reitera «não existir gravidade nem consequências que tornassem imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral». Verifica-se, assim, que o ora recorrente teve inúmeras oportunidades processuais para suscitar a questão de constitucionalidade que agora pretende ver apreciada.
Logo na contestação da ré se sustentou expressamente a interpretação segundo a qual o conceito de justa causa constante do n.º 1 do artigo 35º do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, devia ser entendido à luz do disposto no n.º 1 do artigo 9º do mesmo diploma. E, bem vistas as coisas, a interpretação que as instâncias (e, evidentemente, o Supremo) fizeram da norma daquele artigo 35º, n.º 1, foi essencialmente a mesma. As instâncias apenas divergiram do Supremo Tribunal de Justiça quanto à existência de justa causa de rescisão no caso concreto, isto é, divergiram no tocante à aplicação do direito à matéria de facto assente. Portanto, se o recorrente não suscitou a questão da inconstitucionalidade que pretende ver apreciada antes de proferida a decisão recorrida, a si próprio o deve. A partir do momento em que, na contestação da ré, se sustenta expressamente a interpretação ora em crise, era-lhe exigível prever que essa interpretação pudesse ser acolhida em qualquer decisão que viesse a ser proferida. Em conclusão, o recorrente não suscitou durante o processo, tendo obviamente podido fazê-lo, a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. Como tal, falta um dos pressupostos processuais do presente recurso, não podendo conhecer-se do respectivo objecto.
[...].'
2. Da referida decisão sumária reclamou J... para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 277 a
278), tendo sustentado, em síntese, o seguinte: a) '[A] questão da constitucionalidade só poderia suscitar-se como arguição de vício a uma decisão que fizesse uma aplicação da norma, cuja aplicação em concreto se suscita'; b) 'Ora, [n]o que se refere aos argumentos expendidos pela parte contrária, não configura a mesma uma interpretação em concreto da norma referida susceptível de impugnação'; c) '[N]as passagens citadas nas alíneas a) e c) do douto despacho reclamado apenas se refere a gravidade da situação, no que o ora recorrente não discorda, mas apenas como princípio geral de relevância jurídica dos comportamentos susceptíveis de integrar a justa causa, mas não refere a culpabilidade da entidade patronal'; d) 'O mesmo se passa com as decisões referidas nos pontos b) e e) e nas alegações do ora recorrente referidas nos pontos d) e f) todas do douto despacho ora impugnado, sendo certo que nenhuma das decisões refere a remissão do art.º
35º, n.º 3 para o art.º 9º da Lei dos Despedimentos. Apenas consideram a gravidade do comportamento, como princípio geral de relevância jurídica dos comportamentos susceptíveis de integrar a justa causa, mas não refere a culpabilidade da entidade patronal'; e) 'Faltou acrescentar que o próprio Supremo Tribunal de Justiça entendeu que a violação dos deveres por parte da entidade patronal era «de um grau de culpa diminuto» e acabou por julgar a acção improcedente por falta de prova da culpabilidade da entidade patronal'; f) 'Não está em causa que, como princípio geral, a justa causa deva ser um facto ou conjunto de factos que pela sua gravidade tornem impossível a subsistência da relação laboral'; g) 'O problema põe-se, quando havendo um comportamento grave que torna impossível a subsistência da relação laboral, haja ainda a necessidade da culpa da entidade patronal, quando a mesma é uma pessoa colectiva, e, como no caso concreto, uma grande empresa com uma hierarquia multipessoal'; h) 'O despacho ora reclamado, apenas contempla um dos requisitos – o da gravidade –, mas não contempla o outro – o da culpabilidade –, que é no fundo aquele que motiva o presente recurso'. Cumpre apreciar.
II
3. Entende o reclamante (supra, 2., a) e b)) que a circunstância de a recorrida ter sustentado, durante o processo, a interpretação normativa que veio a ser perfilhada pelo tribunal recorrido, não tornava exigível suscitar, antes de proferida a da decisão recorrida, a inconstitucionalidade dessa interpretação. Sob o ponto de vista do reclamante, tal exigibilidade só se verificaria se, antes de proferida a decisão recorrida, alguma outra decisão no processo adoptasse idêntica interpretação. Mas não tem razão. O artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional exige que a questão da inconstitucionalidade seja suscitada perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, nada referindo a propósito da aplicação, por uma qualquer outra decisão judicial, da interpretação normativa que a final veio a ser acolhida. O que interessa, para efeitos do preenchimento do pressuposto processual a que alude esse preceito, é que a interpretação perfilhada na decisão recorrida não seja, para o recorrente, imprevisível, impossibilitando-o de suscitar atempadamente a questão da inconstitucionalidade. Nos casos designados de
'decisão-surpresa', o Tribunal Constitucional tem admitido não ser exigível suscitar anteriormente tal questão, pelo mero motivo de que ela ainda não assumira qualquer relevo. No presente processo, e como se explicou na decisão sumária reclamada, o reclamante teve a oportunidade de suscitar a questão da inconstitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida, desde logo porque na contestação da ré se havia sustentado expressamente a interpretação segundo a qual o conceito de justa causa constante do n.º 1 do artigo 35º do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, devia ser entendido à luz do disposto no n.º 1 do artigo 9º do mesmo diploma. Já por várias vezes o Tribunal Constitucional se pronunciou no sentido de a
'decisão-surpresa' não pressupor a inexistência de prévia decisão judicial, no mesmo processo, a perfilhar idêntica orientação. Assim, no acórdão n.º 161/98, de 10 de Fevereiro (inédito), considerou-se que, tendo o Ministério Público, num parecer, defendido uma orientação que veio a ser adoptada pelo tribunal recorrido, e tendo o recorrente tido a oportunidade de responder a tal parecer, a decisão daquele tribunal não podia considerar-se imprevisível, pelo que o recorrente tinha o ónus de suscitar, antes da decisão, a inconstitucionalidade da orientação em causa. Em idêntico sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional, nomeadamente, nos acórdãos n.º s 565/96, de 16 de Abril, 405/99, de 29 de Junho, 435/99, de 8 de Julho, e 650/99, de 2 de Dezembro, todos inéditos. Não existe qualquer motivo para abandonar esta jurisprudência e adoptar a tese do reclamante, segundo a qual se dispensa o preenchimento do pressuposto processual a que alude o artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, sempre que antes de proferida a decisão recorrida nenhuma outra decisão exista no processo a perfilhar orientação idêntica à daquela. Nem aquele preceito contempla na sua letra tal dispensa, nem sequer se vê por que motivo uma decisão
é previsível quando confirme outra e imprevisível quando adopte a solução propugnada por uma das partes.
4. Sustenta ainda o reclamante (supra, 2., c) a h)) que, embora na decisão sumária se refira que no processo foram proferidas decisões e produzidas alegações adoptando interpretação coincidente com a do tribunal recorrido, a verdade é que nelas se não relevou a culpabilidade da entidade patronal. Portanto, não seria correcto afirmar que a interpretação que as instâncias e o Supremo fizeram da norma do artigo 35º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro foi a mesma, só divergindo a sua aplicação ao caso concreto. Quanto a este ponto, cabe salientar que o próprio reclamante, na resposta de fls. 255 e v.º, pretendeu a apreciação da conformidade constitucional da interpretação que se traduz na apreciação da justa causa, em caso de violação dos deveres da entidade patronal, segundo o grau de gravidade e culpabilidade da entidade patronal, só agora vindo restringir o objecto do recurso. Assim sendo, pareceu pertinente referir, na decisão sumária, certas decisões tomadas no processo, bem como alegações nele produzidas, em que se dava relevo a esse grau de gravidade, a fim de demonstrar que, quanto a esse ponto, o recorrente não podia pretender que a decisão recorrida constituía para si uma surpresa. Com tais referências não se pretendeu dizer que a interpretação perfilhada na decisão recorrida coincidia totalmente com a das instâncias. Se bem se vir, a fls. 274 diz-se apenas que tal interpretação foi essencialmente a mesma. Seja como for, o argumento central da decisão sumária reclamada, também atrás desenvolvido (supra, 3.), não foi esse. Diz-se expressamente na decisão sumária:
'A partir do momento em que, na contestação da ré, se sustenta expressamente a interpretação ora em crise, era-lhe [ao recorrente] exigível prever que essa interpretação pudesse ser acolhida em qualquer decisão que viesse a ser proferida'. Portanto, e em suma, a circunstância de, nas decisões das instâncias, se poder não ter relevado a culpabilidade da entidade patronal, não destrói a conclusão a que se chegara na decisão sumária: a de que ao recorrente era exigível suscitar a questão da inconstitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida, dado que para ela já fora alertado pelo teor da contestação da ré. O mesmo é dizer que subsiste o motivo do não conhecimento do objecto do presente recurso: o de o recorrente não ter suscitado durante o processo a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
III
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, mantendo a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 4 de Julho de 2001 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida