Imprimir acórdão
Proc. nº 408/01 Acórdão nº 545/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 29 de Outubro de 1999, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça deduziu acusação contra A imputando-lhe a prática, em concurso efectivo, de um crime de condução de veículo sob o efeito do álcool, previsto e punível nos termos do artigo 292º do Código Penal, e de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punível nos termos do artigo 148º, n.º 1, do mesmo diploma, bem como a prática da contra-ordenação prevista no artigo 27º, n.º 1, do Código da Estrada (fls. 109 e seguintes). Na contestação (fls. 191), o arguido veio oferecer o merecimento dos autos. Por sentença de 27 de Outubro de 2000, o juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça julgou a acusação provada e procedente e, consequentemente, condenou o arguido, entre o mais, na pena única de 130 dias de multa, à razão diária de
1.100$00, o que perfaz a multa global de 143.000$00, subsidiariamente 86 dias de prisão, bem como na coima de 40.000$00 (fls. 254 e seguintes).
2. Inconformado com a mencionada sentença, A dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 289), tendo na respectiva motivação (fls.
290 e seguintes) apresentado as seguintes conclusões:
'1 - O arguido foi condenado por um crime de ofensa à integridade física, um crime de condenação em estado de embriaguez, uma contra-ordenação p. e p. pelo artº 27º, nº 1 e nº 3 al. a), 2º do Cód. Estrada e na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses.
2 - Nos autos, as testemunhas B e C afirmam ter visto que era o arguido quem conduzia o veículo automóvel.
3 - Os depoimentos de tais testemunhas não são credíveis, entrando mesmo em contradição com o depoimento do assistente.
4 - Subsistem fortes dúvidas sobre quem conduzia o veículo sinistrado, momentos antes do embate.
5 - Pelo que deverá o arguido ser absolvido do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artº 148º, nº 1 do Código Penal.
6 - Subsistem, ainda, fortes dúvidas quanto a quem foi recolhido sangue para exame laboratorial para pesquisa de álcool no sangue: se ao arguido, se ao assistente.
7 - Os documentos juntos aos autos, a folhas 4, 5 e 6, além de não dissiparem quaisquer dúvidas, antes as aumentam.
8 - A senhora testemunha, enfermeira D, não se recorda de ter procedido à colheita de sangue ao arguido.
9 - O documento de fls. 4 dos autos não está assinado por médico, não tem datas de entrada no laboratório nem a data da colheita do sangue.
10 - Em face das dúvidas existentes, o arguido deverá ser absolvido do crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artº 292º do Código Penal.'
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça respondeu ao recurso interposto por A (fls. 338 e seguintes), tendo sustentado que ao mesmo devia ser negado provimento e apresentado as seguintes conclusões:
'1. Do depoimento das testemunhas inquiridas, que depuseram de forma clara, coerente, isenta e objectiva, e do teor dos documentos juntos aos autos resultou, integralmente, provado o teor da acusação, deduzida a fls. 109 a 111, exceptuando o facto dado como não provado na douta sentença, de fls. 254 e ss.;
2. Resultou, nomeadamente, provado, que era o arguido quem ia a conduzir a viatura sinistrada, no momento da ocorrência do acidente de viação dos autos, apresentando uma taxa de álcool no sangue de 1,45 g/l;
3. Tais provas foram apreciadas segundo o princípio da livre apreciação da prova, inscrito no art. 127º do Código de Processo Penal e o princípio da imediação, sendo que a convicção daí resultante se encontra devidamente fundamentada a fls. 255, 256 e 257 da douta sentença.'
O assistente E, na resposta de fls. 443 e seguintes, concluiu que a sentença recorrida 'não merece qualquer censura, tendo a Meretíssima Juiz a quo feito sábia e correcta apreciação da prova produzida e acertada interpretação e aplicação do direito aos factos materiais fixados'. O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra emitiu, a fls. 541 e 542, o seguinte parecer:
'De acordo com as conclusões da motivação que definem o âmbito do recurso, pretende o recorrente ser absolvido dos crimes pelos quais foi condenado uma vez que, em sua opinião, o tribunal avaliou mal certos depoimentos prestados em julgamento e certos documentos juntos aos autos. Pretende, afinal, contestar a matéria de facto fixada na decisão recorrida, dado que houve documentação da prova produzida em audiência. Conforme resulta do nº 3 do artº 412º do CPPenal,
«Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas». No entanto, o recorrente não deu o mínimo cumprimento a tal preceito, facto que, segundo certa jurisprudência, pode justificar, desde logo, a rejeição do recurso
(cfr. Acs. R. C. de 99/12/7, CJ., T5, 55 e de 15/5, BMJ., 487/371). Certo é que, ao contrário do que se passa no nº 2 do artº 412º do CPPenal, não se prevê expressamente, no preceito transcrito, a rejeição do recurso como sanção para o seu não cumprimento. Mas, tal incumprimento sempre determina a absoluta impossibilidade de apreciação da matéria de facto (artº 431º, al. b) do C.P. Penal) – a qual se passa a considerar como definitivamente assente – e torna irrelevantes todas as considerações e críticas feitas, sobre a mesma, pelo recorrente. E, quando é assim, ao Tribunal da Relação restará apenas apreciar eventuais vícios da decisão, invocados ou não (artº 410º, nº 2 e 3 do C.P. Penal), bem como a matéria de direito. No caso em apreço, não se vislumbram vícios no texto da decisão susceptíveis de a pôr em causa e, estando o recurso restrito a matéria de direito, esta não foi objecto de contestação por parte do recorrente. Pelo exposto, somos de parecer que o recurso deve ser rejeitado por manifestamente improcedente (arts. 420º, n.º 1 e 419º, n.º 4 al. a) do CPPenal).'
Foi expedida carta registada ao mandatário do arguido, notificando-o nos termos e para o disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal e enviando-lhe fotocópia do referido parecer do Ministério Público (fls. 543), mas o arguido não respondeu. Por acórdão de 2 de Maio de 2001, o Tribunal da Relação de Coimbra julgou improcedente o recurso e manteve a decisão recorrida (fls. 551 e seguintes). Pode ler-se no texto do acórdão, para o que aqui releva:
'[…] A única questão suscitada neste recurso, como se pode verificar da transcrição das conclusões, acima, é a de dever absolver-se o arguido do crime de condução sobre o efeito de álcool, por isso resultar da prova recolhida em audiência e não ser credível a prova testemunhal onde se baseou a sentença. Isto significa que, a única questão suscitada pelo recorrente é sobre matéria de facto. Ora, como bem aponta o Digno Procurador Geral Adjunto impugnando-se a decisão sobre a matéria de facto, teria o recorrente de dar cumprimento ao disposto no art. 412º/3 do Código Processo Penal, designadamente, especificando os pontos de facto incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida, isto fazendo referência aos suportes técnicos (indicação das
«cassetes», nºs de contagem onde começam e acabam os depoimentos art. 6º/1 do Decreto-Lei nº 39/95, de 15/2). Não cumpriu o recorrente o preceituado, pelo que não pode este Tribunal apreciar a matéria impugnada, nos termos do disposto no art. 431º/b) do Código Processo Penal, tudo se passando como, sobre a matéria de facto, não houvesse recurso. A matéria de facto é a que se fixou na sentença. A matéria de facto fixada na sentença é suficiente para tipificar o crime porque o arguido foi condenado, não apresentando a mesma decisão vícios que a inquinem, designadamente os do art. 410º/2/3 do Código de Processo Penal. Está justa e equilibrada a pena aplicada. Não suscita qualquer outra questão o recorrente e doutra não cabe conhecer.
[…].'
3. Inconformado com o mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, A dele interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 412º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal, 'com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, a qual, foi no sentido de não apreciar a matéria impugnada e, afinal, entendendo que tudo se passou como se não houvesse recurso sobre a matéria de facto, porquanto o recorrente não cumpriu o preceituado daquele artigo, com referência aos suportes técnicos' (fls. 561 e seguintes). Refere ainda o recorrente que 'a questão da inconstitucionalidade é agora suscitada face à imprevista e inesperada interpretação feita pela douta decisão de que ora se recorre'. O recurso para o Tribunal Constitucional foi admitido por despacho de fls. 573.
4. Nas alegações que produziu no recurso para o Tribunal Constitucional
(fls. 577 e seguintes), o recorrente A apresentou as seguintes conclusões:
'1 - Da sentença proferida em Processo Comum que o condenou, veio o arguido aqui recorrente interpor recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra onde, de forma clara, concretizou os depoimentos prestados em audiência de julgamento que pretendia ver reapreciados por aquele Tribunal;
2 - O arguido/recorrente, na sua motivação, precisou, ainda, qual o documento inserto nos autos que, uma vez reapreciado, não deveria merecer a credibilidade que lhe foi conferida no Tribunal que proferiu a sentença condenatória;
3 - O Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão recorrido, decidiu não apreciar a matéria de facto impugnada porquanto o recorrente não especificou os pontos de facto incorrectamente julgados e as provas que impunham decisão diversa da recorrida e devendo fazê-lo com referência aos suportes técnicos.
4 - Esta interpretação do artigo 412º, nº 3 e 4 do Código de Processo Penal, feita pelo Tribunal da Relação é limitativa e redutora do direito de recurso e manifestamente desproporcionada das garantias de defesa do arguido;
5 - O Tribunal da Relação de Coimbra deveria conferir ao recorrente a possibilidade de suprir o vício de que padecia a motivação apresentada e não abster-se, desde logo, do conhecimento da impugnação da matéria de facto;
6 - Ao não conhecer do recurso da matéria de facto e ao não conferir a possibilidade de suprir o vício da motivação apresentada, o Tribunal da Relação não assegurou todas as garantias de defesa do recorrente, violando-se o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 18º e nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa;
7 - Assim, tendo os nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal sido interpretados e aplicados com o alcance referido, mostram-se tais normas afectadas de inconstitucionalidade material.'
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, nas contra-alegações de fls. 584 e seguintes, concluiu do seguinte modo:
'1º - O arguido recorrente não suscitou, «durante o processo», a questão de inconstitucionalidade normativa a que reposta o recurso de fiscalização concreta que interpõe, fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
2º - Na verdade, confrontado com o teor do parecer exarado nos autos pelo representante do Ministério Público – em que se pugnava precisamente pela interpretação normativa que a Relação veio a acolher e que o recorrente considera inconstitucional – não apresentou qualquer resposta, de modo a confrontar a Relação com a tese de inconstitucionalidade que só delineou no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
3º - Termos em que não deverá conhecer-se do recurso.'
Atenta a questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo Ministério Público, foi proferido o despacho de fls. 587, mandando notificar o recorrente para responder, querendo, no prazo legal. Decorrido o prazo, o recorrente não respondeu (fls. 587 v.º). II
5. Constitui um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto pelo recorrente – a invocação pelo recorrente, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade que pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. Nos termos do n.º 2 do artigo 72º da mesma Lei, a questão da inconstitucionalidade, em regra, só se considera suscitada durante o processo, quando o recorrente a tenha submetido, enquanto tal, à apreciação do tribunal recorrido. Assim – e salvo casos excepcionais, em que a questão da inconstitucionalidade só emerge no processo depois de proferida a própria decisão recorrida e precisamente por causa desta –, o Tribunal Constitucional não pode apreciar uma questão de inconstitucionalidade, quando o recorrente só a suscite no recurso que interpõe para o Tribunal Constitucional. No requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, o recorrente afirmou ter sido imprevista e inesperada a interpretação, feita pelo tribunal recorrido, da norma do artigo 412º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal. Sob o seu ponto de vista, portanto, não lhe era exigível suscitar, antes de proferida a decisão recorrida, a questão da inconstitucionalidade que pretende ver apreciada. Todavia, e como depois bem se salientou nas contra-alegações de fls. 584 e seguintes – a que o recorrente, aliás, não respondeu -, o representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra (que é o tribunal recorrido) expressamente fez notar, no parecer que emitiu antes de proferido o acórdão recorrido, que o arguido recorrente não cumprira os ónus que a lei impõe
àquele que impugna a decisão sobre a matéria de facto, pelo que tal determinava a absoluta impossibilidade de apreciação da matéria de facto pela Relação. Ora, tendo sido acolhida na decisão recorrida a doutrina expendida em tal parecer, não pode o recorrente afirmar que foi imprevista e inesperada a interpretação, aí perfilhada, da norma do artigo 412º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal, e que concomitantemente não lhe era exigível questionar, antes de proferida tal decisão, a conformidade constitucional de tal interpretação. Pelo contrário, a partir do momento em que no referido parecer do Ministério Público se perfilhou a interpretação cuja conformidade constitucional o recorrente questiona, era-lhe exigível, uma vez que teve a oportunidade de responder a esse parecer, suscitar o problema que agora pretende que o Tribunal Constitucional aprecie: o mesmo é dizer que lhe era exigível, porque possível, submeter a questão de inconstitucionalidade ao próprio tribunal recorrido. Assim sendo, não está preenchido um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a invocação pelo recorrente, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade. Por essa razão, não pode conhecer-se do respectivo objecto. III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2001 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa