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Processo n.º 1171/13
Plenário
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. O Representante da República para a Região Autónoma dos Açores vem, ao abrigo do artigo 278.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, submeter à apreciação deste Tribunal, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, “a totalidade das normas constantes do Decreto n.º 22/2013”, aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (“ALRAA”), em 21 de outubro de 2013, que lhe foi enviado para assinatura como decreto legislativo regional.
É o seguinte o teor das normas em causa:
«Artigo 1.º
Objeto
O presente decreto legislativo regional estabelece o regime especial de duração do período normal de trabalho dos trabalhadores da Administração Pública Regional.
Artigo 2.º
Âmbito
O presente diploma aplica-se exclusivamente aos trabalhadores da Administração Pública Regional.
Artigo 3.º
Período normal de trabalho dos trabalhadores da Administração Pública Regional
O período normal de trabalho dos trabalhadores da Administração Pública Regional é de sete horas por dia e trinta e cinco horas por semana.
Os horários específicos devem ser adaptados ao período normal de trabalho de referência referido no número anterior.
O disposto no n.º 1 não prejudica a existência de períodos normais de trabalho superiores, previstos em diploma próprio.
Artigo 4.º´
Disposições finais
Não é aplicável à Administração Pública Regional o disposto na Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto.
Artigo 5.º
Entrada em vigor
O presente diploma entra em vigor no dia seguinte à data da sua publicação.»
Tal regime jurídico padece, segundo o requerente, de cinco vícios de inconstitucionalidade, a saber:
a) Inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de “bases do regime e âmbito da função pública” (artigo 165.º, n.º 1, alínea t) );
b) Inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de direitos fundamentais dos trabalhadores de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias (artigos 17.º, 59.º., n.º 1, alínea d), e 165.º, n.º 1, alínea b) );
c) A título subsidiário, e com referência ao contexto de emergência económico-financeira justificativo da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva de competência legislativa do Estado ou da República;
d) Inconstitucionalidade simultaneamente orgânica e material, por violação da regra constitucional que determina incumbir exclusivamente ao Estado a “fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho” (artigo 59.º, n.º 2, alínea b) );
e) Inconstitucionalidade material, por violação do princípio geral da igualdade (artigo 13.º) e, sobretudo, do princípio especial da igualdade que garante a “todos os trabalhadores, sem distinção de […] território de origem”, do território onde exercem a atividade laboral, ou de qualquer outro critério arbitrário de diferenciação, o “direito […] a um limite máximo da jornada de trabalho” (artigo 59.º., n.º 1, alínea d) ), fixado “a nível nacional” e em termos não discriminatórios (artigo 59.º, n.º 2, alínea b) ).
1.1. No que se refere ao primeiro vício, considera o requerente que a norma do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, aprovada pela Assembleia da República com natureza imperativa e destinada a prevalecer “sobre quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho” (cfr. o artigo 10.º) constitui uma importante base do regime da função pública, nos termos da alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, visto que a mesma consagra, em termos absolutamente genéricos, para todos os trabalhadores da Administração Pública – independentemente de estarem sujeitos ao regime do contrato de trabalho em funções públicas ou de se enquadrarem no regime da nomeação definitiva – um princípio jurídico, verdadeiramente estruturante da matéria do tempo de trabalho do vasto universo dos trabalhadores em questão. Na verdade, a determinação de que o período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas é de oito horas por dia e quarenta horas por semana – concretizada, depois, por outras disposições legais que estabelecem tempos superiores ou diferenciados, horários específicos e períodos de atendimento ao público, horários flexíveis, regimes de bancos de horas, ou até a possibilidade de regulamentação coletiva de alguns desses aspetos referentes ao tempo de trabalho - corresponde a uma nova opção fundamental do legislador democrático, inserindo-se no quadro de uma reforma da Administração Pública e do estatuto dos seus servidores que visa aproximar este do regime do contrato individual de trabalho.
O requerente admite a existência de muitas disposições normativas no Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro (“RCTFP”), no Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, e até porventura na própria Lei n.º 68/2013, respeitantes direta ou indiretamente ao tempo de trabalho, que constituem desenvolvimento legislativo – e que, portanto, não se impõem aos legisladores governamental e regional –, mas entende que o disposto no n.º 1 do artigo 2.º daquela Lei representa “a âncora em torno da qual todos esses regimes secundários giram”: toda a “regulamentação do tempo de trabalho tem o seu epicentro na norma que, hoje, fixa o período normal de trabalho em oito horas por dia e em quarenta horas por semana”. E a disciplina do tempo de trabalho é estruturante do regime da função pública – ou, se se preferir, do regime da relação jurídica de emprego público.
Com efeito, prossegue o requerente, apesar de não ter o impacto jusfundamental de outras matérias – como a constituição ou a extinção da relação de emprego público –, tal disciplina contende diretamente com importantes direitos fundamentais dos trabalhadores, como sucede com o direito à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes (alínea b) do n.º 1 do artigo 59.º), o direito ao repouso e ao descanso semanal, e bem assim o direito a um limite máximo da jornada de trabalho (alínea d) do n.º 1 do artigo 59.º). Ora, nesses casos, considera o requerente ser exigível o reforço das exigências da reserva parlamentar, justificada precisamente em nome das garantias que o contraditório político e o debate público concedem ao processo legislativo.
No mesmo sentido, o requerente recorda que a generalidade dos diplomas legais reguladores da duração do trabalho na Administração Pública são, ou leis da Assembleia da República – como sucede agora com o RCTFP e com a própria Lei n.º 68/2013 – ou decretos-leis autorizados, sendo legítima a inferência de que tanto o legislador governamental – que solicita as autorizações –, como o legislador parlamentar – que as concede –, estão desde há muito convictos de que a matéria do tempo de trabalho integra a reserva relativa de competência legislativa do Parlamento, certamente pelo relevo que a respetiva disciplina assume enquanto trave-mestra do regime da função pública. A este propósito, o requerente refere alguns antecedentes legislativos referentes à disciplina da duração do trabalho na Administração Pública, como por exemplo: o Decreto-Lei n.º 259/98, emanado ao abrigo da Lei n.º 11/98, de 24 de fevereiro, que especificamente conferiu uma credencial ao Governo para “a fixação da duração semanal do trabalho em trinta e cinco horas” (alínea f) do seu artigo único); também o Decreto-Lei n.º 159/96, de 4 de setembro, foi autorizado pela Lei n.º 10-B/96, de 23 de março; o Decreto-Lei n.º 263/91, de 26 de julho, que reduziu o período normal de trabalho do pessoal dos grupos operário e auxiliar, foi igualmente precedido por uma autorização legislativa, contida na Lei n.º 65/90, de 28 de dezembro; e, por sua vez, o Decreto-Lei n.º 187/88, de 27 de maio – que fixou a duração semanal do trabalho em trinta e cinco, quarenta e quarenta e cinco horas, e a duração diária em sete, oito ou nove – fê-lo ao abrigo da autorização dada pela Lei n.º 2/88, de 26 de janeiro.
Tratando-se, nos termos expostos, de matéria reservada aos órgãos de soberania, considera o requerente, por fim, que, de acordo com o estatuído no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, a definição do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas está excluída do poder legislativo primário das regiões autónomas, e, em particular, da competência legislativa da ALRAA. Ademais, também não é invocável a segunda parte da alínea a) do n.º 3 do artigo 49.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (“EPARAA”) - “compete à Assembleia Legislativa legislar em matéria” de “âmbito e regime dos trabalhadores da Administração Pública regional autónoma e demais agentes da Região” -, uma vez que, faltando nesse normativo estatutário a palavra «bases», a competência em apreço só pode ser uma competência legislativa de desenvolvimento, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição e do artigo 38.º do próprio Estatuto Político-Administrativo.
1.2. Relativamente ao segundo vício imputado – a inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de direitos fundamentais dos trabalhadores de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias (artigos 17.º, 59.º, n.º 1, alínea d), e 165.º, n.º 1, alínea b) ) -, entende o requerente que os direitos ao repouso e a um limite máximo da jornada de trabalho previstos no artigo 59.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, enquanto «direitos dos trabalhadores» - de todos os trabalhadores e, portanto, também dos trabalhadores de todas as Administrações Públicas (cfr. o Acórdão n.º 474/2002, disponível, assim como os demais adiante referidos, em http://www.tribunalconstitucional.pt/ ) – assumem, em virtude da respetiva determinabilidade material mesmo na ausência de qualquer interpositio legislatoris, uma natureza análoga a outros direitos, liberdades e garantias (dos trabalhadores), pelo que lhes é aplicável, por força do artigo 17.º do mesmo normativo, o regime jurídico-constitucional destes últimos, com especial destaque, para o que aqui importa, da sua componente orgânico-formal.
Na verdade, aqueles dois direitos não reclamam do Estado a mobilização de especiais meios organizativos, materiais ou financeiros – mas apenas uma intervenção reguladora das relações laborais, definindo (e redefinindo) regimes cujo teor se encontra há muito enraizado na cultura jurídica da comunidade. Daí que os direitos em causa (mais do que direitos sociais contidos em normas não exequíveis por si mesmas ou programáticas, largamente dependentes de opções políticas de fundo do legislador democrático e de recursos financeiros avultados) se apresentem como direitos com uma forte vocação para a sua aplicação imediata, vinculando todas as entidades públicas – a Administração enquanto empregadora e os órgãos legislativos adstritos a um especial dever de proteção dos bens jusfundamentais em apreço – e as próprias entidades privadas, começando obviamente pelos próprios empregadores. Nesta linha, o direito ao repouso e o correspondente direito a uma jornada de trabalho limitada não se distinguem particularmente do direito à segurança no emprego, que inserido no artigo 53.º é indiscutivelmente (e para todos os efeitos) um direito, liberdade e garantia – apesar de se achar em larga medida na dependência de concretização legislativa.
Assumindo, portanto, que o direito a um limite da jornada de trabalho – com todas as implicações daí decorrentes em matéria de período normal de trabalho diário e semanal – constitui um direito fundamental de natureza análoga a (outros) direitos, liberdades e garantias (dos trabalhadores) – isto é, um direito com uma estrutura jurídico-conceptual próxima –, pode também concluir-se que lhe é igualmente aplicável, para o que agora interessa, a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. Na verdade, e não obstante as disputas doutrinais a tal respeito, há muito que a jurisprudência constitucional – tecida sobretudo a propósito do direito de propriedade – sublinha que o artigo 17.º não formula qualquer distinção a tal respeito, aceitando aplicar aos direitos de natureza análoga – ou ao núcleo essencial de cada um destes, na medida em que seja precisamente aí (e só aí) que essa analogia se encontra – o princípio da reserva de lei parlamentar (Acórdãos n.os 329/99 e 517/99).
Por conseguinte, à reserva parlamentar de competência da alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º, sobre “bases do regime e âmbito da função pública”, junta-se agora a reserva da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, sobre “direitos, liberdades e garantias”. O requerente sublinha, no entanto, que esta segunda reserva não tem necessariamente de ter um alcance coincidente com o resultante da alínea t), podendo até ser mais extensa do que esta. Com efeito, apesar de aquela se dirigir apenas ao cerne do regime de cada um dos direitos análogos em causa – em última análise, o direito a não ser privado do repouso necessário a uma vida condigna e o direito a não ser desprovido de um limite máximo da jornada de trabalho –, isso pode bem significar que a reserva de competência legislativa da Assembleia da República vai para além daquela base, verdadeiramente estruturante, do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, onde se estipula de forma lapidar que “o período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas é de oito horas por dia e quarenta horas por semana”.
1.3. Para o caso de não se considerar suficientemente demonstrada a pertença da matéria disciplinada pelo Decreto n.º 22/2013 da Assembleia Legislativa dos Açores à reserva de competência dos órgãos de soberania, seria ainda possível, segundo o requerente, recorrer ao contexto de emergência económico-financeira que justifica a Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, e lançar mão da jurisprudência contida no Acórdão n.º 613/2011, de acordo com a qual:
« [A] sustentabilidade das contas públicas, com a correspondente redução do défice e o controlo da dívida, é algo que, no entender justificável do legislador parlamentar, só poderá ser eficazmente garantido se for feito, não apenas ao nível do Estado, mas também, articuladamente, ao nível das entidades públicas que estão, de uma forma ou de outra, financeiramente relacionadas com esse mesmo Estado. É algo que só pode ser eficazmente levado a cabo num quadro de «unidade nacional» e de «solidariedade entre todos os portugueses» e através de medidas universalmente assumidas enquanto atos de «soberania do Estado» legitimados pela sua própria subsistência financeira, bem como da de toda a economia nacional (cfr. o artigo 225.º, n.os 2 e 3, da Constituição)».
Deste modo, será de considerar constitucionalmente legítimo que o poder legislativo soberano do Estado assuma que as medidas exigidas por uma urgente consolidação das contas públicas não devam ser tomadas isolada e descontextualizadamente apenas em partes do território nacional ou valendo apenas para parte dos cidadãos. Na verdade, e não obstante o desaparecimento das «leis gerais da República», como categoria geral, entende o requerente não ser sustentável – à luz dos fundamentos, finalidades e limites da autonomia regional enunciados nomeadamente no artigo 225.º da atual Constituição – a ideia de que nunca, e em circunstância alguma, possa haver medidas legislativas que muito embora não estejam textualmente no domínio da reserva de competência da Assembleia da República sejam, por motivos de relevante interesse nacional, tomadas imperativamente para todo o território nacional.
Nesta perspetiva, a fixação do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas pela Lei n.º 68/2013, atendendo ao aludido contexto de emergência económico-financeira, corresponderia a matéria que, pela sua natureza, deve ficar reservada aos órgãos de soberania, ou seja, integraria uma reserva de competência legislativa do Estado ou, se se preferir, da República; ou, ao menos, e pela mesma razão, deveria corresponder a um «limite implícito à competência legislativa regional», cuja inobservância redundaria em violação autónoma dos princípios da soberania e da unidade política do Estado.
1.4. No que se refere à alegada inconstitucionalidade simultaneamente orgânica e material, por violação da regra constitucional que determina incumbir exclusivamente ao Estado a “fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho” (artigo 59.º, n.º 2, alínea b) ) – o quarto vício invocado -, o requerente começa por salientar que a “fixação […] dos limites da duração do trabalho” é, desde logo, uma incumbência indeclinável do Estado e dos seus órgãos de soberania, mormente do legislador: exigindo a Constituição que essa fixação seja feita “a nível nacional”, não se trata pois de uma incumbência que o Estado possa delegar noutras pessoas coletivas públicas – como as regiões autónomas ou as autarquias locais – ou que estas possam assumir como competências próprias, ao abrigo dos respetivos estatutos legais. Deste modo, ao aprovar o Decreto n.º 22/2013, a ALRAA teria exercido uma competência que pertence em exclusivo ao legislador estadual – daí a inconstitucionalidade orgânica.
Mas o mesmo órgão incorreria igualmente em inconstitucionalidade material, porque o regime que editou não tem, nem nunca poderia ter – sem grosseira violação de um outro parâmetro da competência legislativa das regiões autónomas, que é o “âmbito regional” (alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º) – “nível nacional”, como exige imperativamente a alínea b) do n.º 2 do artigo 59.º. Aliás, o regime em análise nem sequer tem nível regional, dado que a Lei n.º 68/2013 continua a aplicar-se no território açoriano a todos os trabalhadores da Administração do Estado e da Administração autárquica. Tem sim nível sectorial, uma vez que o seu âmbito de aplicação subjetivo se restringe “exclusivamente aos trabalhadores da Administração Pública Regional” (artigo 2.º). E este abaixamento, a nível regional e sectorial, dos limites da duração do trabalho tem a agravante de introduzir uma desigualdade de tratamento sem qualquer justificação material.
Em suma, no entender do recorrente, o domínio da fixação dos limites da duração do trabalho corresponde a um daqueles casos em que a Constituição, ao afirmar a natureza nacional ou unificada de um regime ou de uma instituição, alarga pontualmente o conjunto das matérias reservadas aos órgãos de soberania, para além daquelas que são elencadas como tal nos artigos (161.º) 164.º e 165.º da Lei Fundamental.
1.5. Por fim, o requerente considera o Decreto n.º 22/2013 também materialmente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade que, no âmbito do artigo 59.º, n.º 1, da Constituição, garante a todos os trabalhadores – sem discriminações fundadas em critérios arbitrários, como sejam o território de origem ou o território onde exerçam a respetiva atividade profissional – o direito ao repouso e o direito à fixação do limite máximo da jornada de trabalho (cfr. a respetiva alínea d) ).
A igualdade exige que quaisquer diferenciações de regime, a introduzir por diploma regional, tenham uma clara fundamentação substantiva. E, quanto à questão em análise, considera o requerente dever ter-se por demonstrado que o artigo 2.º da Lei n.º 68/2013 (bem como as suas duas sequelas no n.º 1 do artigo 126.º do RCTFP e nos n.os 1 dos artigos 7.º e 8.º do Decreto-Lei n.º 259/98) constitui uma verdadeira base do regime jurídico da função pública, pelo que há-de aplicar-se uniformemente a todas as Administrações Públicas e vincular simultaneamente (como disposição de valor reforçado) o legislador governamental e o legislador regional (artigo 112.º, n.os 2 e 3, e artigo 227.º, n.º 1, alínea c)).
Na verdade, considerando que o regime da Lei n.º 68/2013 nasceu precisamente sob o signo da igualdade, num quadro jurídico como o do artigo 59.º da Constituição – claramente marcado também por preocupações igualitárias – a questão que o requerente coloca é a de saber quais as razões materiais que podem justificar o regime jurídico mais favorável que o Decreto n.º 22/2013 reserva apenas à Administração Pública regional:
« [Q]ue razões substantivas podem justificar que trabalhadores do setor público – na mesma ilha, na mesma cidade, eventualmente na mesma rua, com habilitações idênticas, desempenhando funções semelhantes e sujeitos à mesma disciplina – possam ter um período normal de trabalho claramente diferenciado? Sete horas por dia e trinta e cinco por semana para os trabalhadores da Administração Regional; oito horas por dia e quarenta por semana para os trabalhadores do Estado e das Autarquias Locais insulares.»
Recorde-se que a Lei n.º 68/2013 teve como objetivo (entre outros) a uniformização de diferentes regimes legais de duração do trabalho que se apresentavam, no juízo do legislador democrático, desprovidos de justificação material suficiente, uniformização esta operada a dois níveis: em primeiro lugar, através da previsão, para todos os trabalhadores que exercem funções públicas, de um mesmo período normal de trabalho; e, em segundo lugar, mediante a previsão de um regime que garante a convergência entre o sector público e o sector privado, estabelecendo para os trabalhadores públicos o período normal de trabalho que, em regra, é praticado no setor privado. Assente esta “intenção de igualdade”, exigir-se-ia, em coerência com a dogmática do princípio da igualdade, nos termos do qual «o tratamento igual tem prioridade sobre o tratamento desigual», que um (posterior) tratamento desigual (ainda que mais favorável) fosse devidamente provido de uma justificação material. Daqui decorre, segundo o requerente, que, face à intenção igualitária da Lei n.º 28/2013, e não se descortinando “razões substantivas” que possam fundamentar a sujeição dos trabalhadores da Administração Pública regional a um período normal de trabalho inferior ao que vigora para os trabalhadores da Administração Pública estadual e da Administração local na Região, o regime previsto no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto Legislativo Regional n.º 22/2013, e o consequente afastamento do regime-regra decorrente do artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, seja inconstitucional por violação do princípio da igualdade.
A violação do princípio da igualdade apresenta-se, por conseguinte, na ótica do requerente, indissociavelmente ligada à questão da uniformidade de regime – ao nível da duração do período normal de trabalho –, independentemente da pertença do trabalhador à Administração Pública estadual, regional ou local. Daí que, no desenvolvimento da sua argumentação, o requerente refira, seguidamente, que, não podendo a ALRAA legislar, nesta matéria, a propósito dos trabalhadores da Administração Pública estadual e da Administração local, de molde a garantir a desejada igualdade de tratamento no território da Região de todos os trabalhadores públicos, tal seria, em si, demonstrativo de que a duração normal do trabalho desses trabalhadores corresponde a matéria da competência legislativa dos órgãos de soberania:
« Só os órgãos de soberania estão em condições de legislar simultânea e uniformemente para todas as administrações públicas, evitando tratamentos preferenciais ou discriminatórios contrários ao espírito igualitário do artigo 59.º da Lei Fundamental».
2. Notificada para o efeito previsto no artigo 54.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (a Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante também referida como “LTC”), a Presidente da ALRAA veio manifestar “a sua total discordância” relativamente aos fundamentos das questões de inconstitucionalidade suscitadas no pedido e concluiu que “todas as normas constantes do DLR n.º 22/2013 não padecem das inconstitucionalidades invocadas”.
2.1. No tocante ao primeiro vício invocado, a oposição da ALRAA baseia-se, no essencial, em duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, na discordância quanto à qualificação da matéria atinente à duração e horário de trabalho na função pública como base do regime da função pública, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição. Para que uma lei se possa considerar como lei de bases, é necessário, segundo o órgão autor das normas impugnadas no presente processo, que ela própria se assuma como tal e proceda a uma definição do quadro de referência das linhas mestras por que se deve reger a legislação numa certa área de atividade política. E, no que importa ao caso sub iudicio, a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, é o único diploma que poderá ser considerado como lei de bases da função pública, e o mesmo tem apenas a natureza enquadradora das matérias dos vínculos, carreiras e remunerações, deixando de fora a questão da duração e organização do horário de trabalho na função pública, a qual aparece apenas em diplomas claramente vinculados àquela Lei: é o caso, nomeadamente, da Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, e do Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, que, por isso, “nunca poderão aspirar a normas bases da função pública”.
Este entendimento de que a matéria da duração e horário de trabalho na função pública não faz parte do leque de matérias das bases do regime e âmbito da função pública, seria ainda reforçado, por uma “interpretação, à contrário, do n.º 2 do artigo 127.º do EPARAA, no qual se prevê que apenas «as bases e o regime geral de recrutamento para a função pública nos serviços regionais, da formação técnica, do regime de quadros e carreiras, do estatuto disciplinar e do regime da aposentação são definidos por lei para a Administração Pública do Estado», deixando de fora o regime relativo à duração do período normal de trabalho”.
Em segundo lugar, e a título subsidiário, a ALRAA invoca como fonte legitimadora do Decreto n.º 22/2013 o valor reforçado do EPARAA. Para tanto, começa por observar que tem sido a jurisprudência constitucional a balizar o conceito de bases do regime e âmbito da função pública e que a maioria dos acórdãos citados em apoio do pedido de fiscalização preventiva deduzido pelo requerente “são anteriores à última revisão constitucional e ao EPARAA vertido na Lei n.º 2/2009, de 2 de janeiro, que reforçaram o poder legislativo das Regiões Autónomas, designadamente quanto ao âmbito e regime dos trabalhadores da Administração Pública regional autónoma (alínea a) do n.º 3 do artigo 49.º do EPARAA)”. Tendo em conta este dado, a ALRAA conclui o seguinte:
« E mesmo que se considere, por mera hipótese, que a duração e horário de trabalho na função pública faz parte do leque de matérias das bases do regime e âmbito da função pública, a verdade é que o EPARAA, lei de valor reforçado (n.º 3 do artigo 112.º, da alínea b) do artigo 161.º e da alínea f) do n.º 6 do artigo 168.º da CRP) permite que a ALRAA legisle quanto àquela matéria, por a mesma se incluir no âmbito e regime dos trabalhadores da Administração Pública regional autónoma (alínea a) do n.º 3 do artigo 49.º do EPARAA)».
2.2. Quanto à invocada violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, em virtude de o Decreto n.º 22/2013 tratar de matéria atinente aos direitos, liberdades e garantias – artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição -, a ALRAA considera que “a alegação não se coaduna com o diploma submetido a apreciação”, sem prejuízo de reconhecer “que o limite máximo da jornada de trabalho [- o aspeto que considera principalmente em causa -] possa constituir um direito fundamental”. Omite, todavia, pronunciar-se expressamente sobre a sua estrutura, designadamente para efeitos de aplicação do regime orgânico-formal dos direitos, liberdades e garantias e, em especial, da integração na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição). Ao invés, a ALRAA opta por centrar a sua análise num eventual desrespeito do citado direito por parte do Decreto n.º 22/2013, nos termos seguintes:
« Embora se reconheça que o limite máximo da jornada de trabalho possa constituir um direito fundamental, a verdade é que o limite máximo dessa jornada está fixado para os trabalhadores do Estado e das autarquias na Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto e para os trabalhadores da Região Autónoma dos Açores, agora, no DLR 22/2013.
O escopo da norma vertida na alínea d) do n.º 1 do artigo 59.º da CRP pretende assegurar a todos trabalhadores o seu direito ao repouso, lazer, descanso e um limite máximo da jornada de trabalho, a qual está garantida ainda de forma mais premente na Região Autónoma dos Açores, por ficar aquém do limite máximo fixado para os restantes trabalhadores.
Inexistindo desrespeito pela norma da alínea d) do n.º 1 do artigo 59.º da CRP, por esta via, também inexiste a inconstitucionalidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP (reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República).»
2.3. Sobre o vício do Decreto n.º 22/2013 consubstanciado na invocada violação da reserva dos órgãos de soberania – reserva do Estado ou reserva da República -, dado o contexto de emergência económico-financeira, a ALRAA nada disse.
2.4. Relativamente à inconstitucionalidade imputada ao Decreto n.º 22/2013, por violação do artigo 59.º, n.º 2, alínea b), da Constituição, entende a ALRAA que o regime autonómico insular não modifica apenas a estrutura dos dois arquipélagos, mas transforma igualmente a estrutura do Estado, impondo limites ao exercício das funções legislativa e administrativa pelos órgãos de soberania (n.º 1 do artigo 227.º) e deveres de atuação (artigo 229.º). Consequentemente, “o conceito de «Estado» previsto no n.º 2 do artigo 59.º da Constituição não poderá cingir-se à Assembleia da República ou ao Governo da República, mas [deve abranger] também as autarquias e as regiões autónomas, na medida das respetivas competências”. De outro modo, designadamente seguindo a interpretação defendida no pedido pelo requerente, “seria a exclusão pura e simples do poder legislativo regional, o qual a própria CRP consagrou na sua origem e reforçou ao longo das sucessivas revisões”.
2.5. Finalmente, quanto ao último vício de inconstitucionalidade invocado pelo requerente, a ALRAA recondu-lo a uma questão de distribuição de competências legislativas.
Nesse sentido, sublinha que:
« [A] partir da VI Revisão Constitucional e com a aprovação da Lei n.º 2/2009, de 12 de Janeiro, que alterou o [EPARAA], passou a reconhecer-se à legislação, cujo âmbito de aplicação seja restrito ao território das Regiões Autónomas, uma posição específica no enquadramento dos atos legislativos, uma vez que foi erradicado o parâmetro estabelecido pelo respeito pelos princípios fundamentais das leis gerais da República.
Neste contexto, o disposto no artigo 228.º, n.º 2, da CRP (reafirmado pelo artigo 15.º do EPARAA) impõe que apenas na falta de legislação regional própria sobre matéria não reservada à competência dos órgãos de soberania, se apliquem nas regiões autónomas as normas legais em vigor.
A Constituição e o EPARAA enunciam, assim, expressamente o princípio da supletividade do direito estadual, consubstanciado na ideia geral de que as normas emitidas pelos órgãos de soberania preenchem os espaços de vazio legislativo decorrente da omissão das regiões autónomas na normação de matérias da respetiva competência; quando este espaço regulativo se encontre preenchido por norma regional, não pode o Estado preenchê-lo. As leis e os decretos-leis só serão aplicáveis no território regional enquanto as Assembleias Legislativas não legislarem sobre a matéria e, se já o tiverem feito, a legislação nacional não pode revogar a legislação regional, dados os diferentes âmbitos de aplicação territorial quando não haja supletividade.»
A partir destes dados, a ALRAA considera existir “uma reserva de competência legislativa a favor das Regiões Autónomas para que estas, em matérias não reservadas aos órgãos de soberania e sobre as quais os parlamentos insulares possam legislar, aprovem legislação de âmbito regional”. E a “consagração constitucional do princípio da supletividade do direito estadual […] reforça o entendimento no sentido da aplicação tendencialmente residual do direito estadual”.
Deste modo, da conjugação do disposto na alínea l) do n.º 1 do artigo 7.º do EPARAA, que consagra o “direito a uma administração pública com quadros próprios fixados pela Região”, com a alínea a) do n.º 3 do artigo 49.º do mesmo normativo, que estabelece como competência legislativa regional a “organização da administração regional autónoma direta e indireta, incluindo o âmbito e regime dos trabalhadores da administração pública regional autónoma”, resulta um claro acolhimento constitucional e estatutário permissivo da criação de um “período normal de trabalho dos trabalhadores da Administração Pública Regional”, como o previsto no Decreto n.º 22/2013. Com efeito:
« [P]ermitindo a própria CRP [- ao que parece, com base no aludido princípio da supletividade -] que a Região legisle quanto ao “âmbito e regime dos trabalhadores da administração pública regional autónoma” de forma distinta do todo nacional, não poderá em simultâneo impedir esta diferenciação legislativa por via da violação do princípio da igualdade previsto no seu artigo 13.º. […]
A existência de legislação regional distinta da nacional faz parte da essência do regime autonómico e do próprio Estado unitário (artigo 6.º da CRP).»
Acresce que, se a base constitucional do princípio da igualdade é a igual dignidade social de todos os cidadãos (n.º 1 do artigo 13.º), não se vislumbra – acrescenta o órgão autor da norma impugnada - em que medida a redução em cinco horas semanais no período normal de trabalho dos trabalhadores da administração regional possa afetar a dignidade social dos demais trabalhadores.
3. Por consulta de publicação oficial, verifica-se que a ALRAA apresentou na Assembleia da República, em 17 de outubro de 2013, a Proposta de Lei n.º 180/XII, que visa, de acordo com o respetivo artigo 1.º, assegurar a não aplicação (apenas) aos trabalhadores da Administração regional da Região Autónoma dos Açores da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, “na parte em que alarga o período normal de trabalho dos trabalhadores que exercem funções públicas” (cfr. Diário da Assembleia da República, II série- A, N.º.17/XII/3, de 31 de outubro de 2013, pp. 32-33). É o seguinte o teor do citado artigo 1.º, sob a epígrafe “objeto e âmbito”:
« A Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na parte em que alarga o período normal de trabalho dos trabalhadores que exercem funções públicas, não se aplica aos trabalhadores da administração regional da Região Autónoma dos Açores, mantendo-se em vigor as disposições legais anteriormente aplicáveis.»
O segundo - e último - artigo da Proposta de Lei em apreço determina a entrada em vigor do diploma “no dia seguinte ao da sua publicação”
Na exposição de motivos dessa Proposta, o órgão proponente considera que a citada Lei n.º 68/2013 “não teve em conta as necessidades laborais dos serviços da administração regional da Região Autónoma dos Açores, de forma a permitir, aos seus órgãos decisórios, a possibilidade de continuar a dispor de horários de trabalho mais ajustados às suas particularidades, necessidades e especificidades”. Mais entende a ALRAA que:
« Face à Constituição da República Portuguesa e ao Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma dos Açores, deverá caber aos órgãos de governo próprio da Região, promover e executar as medidas mais adequadas tendo em vista obter uma maior eficiência, eficácia e produtividade dos seus serviços públicos assim como dos seus trabalhadores medidas essas que não deverão, de forma alguma, ser subtraídas ao seu poder decisório.
A Região ao adotar uma política própria de gestão dos seus recursos humanos através, designadamente, dos quadros regionais de Ilha e das figuras da afetação de pessoal, potenciou a sua sustentabilidade financeira, alicerçada no rigor, na transparência e na boa gestão das finanças públicas regionais, bem como o cumprimento integral das metas orçamentais a que a Região se comprometeu, pelo que estas matérias têm de se enquadrar, necessariamente, no seu todo.
A matéria ínsita na Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, deverá assim ter em conta as condicionantes da insularidade e os especiais e particulares condicionalismos derivados da natureza arquipelágica da Região Autónoma dos Açores, onde a sua população se insere e trabalha, com as consequentes dificuldades de mobilidade inter-ilhas a partir de determinadas horas, o que se agudiza particularmente no período de inverno e se reflete, inexoravelmente, em toda a envolvência laboral, seja no âmbito das famílias, das empresas e da administração pública.»
Deste modo, segundo a ALRAA, “a igualdade de tratamento entre os trabalhadores que exercem funções públicas, que se pretende, só pode ser alcançada tendo em conta todas as idiossincrasias que a vivência arquipelágica acarreta para as suas populações”. E, para justificar a sua iniciativa legislativa junto da Assembleia da República, aquela Assembleia conclui:
« A plena efetivação desta matéria reclama a intervenção da Assembleia da República, na medida em que estamos perante matérias da reserva de competência legislativa deste órgão de soberania».
4. Foi discutido em Plenário o memorando apresentado pelo relator e fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 59.º da LTC, cumprindo agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
II. Fundamentação
A) Delimitação do objeto do pedido: as normas a apreciar e a autonomia dos vícios de inconstitucionalidade imputados
5. O pedido de apreciação da constitucionalidade em análise reporta-se à “totalidade das normas contidas no Decreto n.º 22/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, que estabelece o Período Normal de Trabalho dos Trabalhadores da Administração Pública Regional”. E, entre tais normas, encontra-se a do artigo 4.º, acima transcrito, que se refere genericamente ao “disposto na Lei n.º 64/2013, de 29 de agosto”.
Sucede que esta Lei tem um objeto mais amplo do que o respeitante à matéria da duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, sem prejuízo de tal matéria se encontrar perfeitamente individualizada no âmbito desse objeto. Isso resulta desde logo do seu título – “Estabelece a duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas e procede à quinta alteração à Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, à quarta alteração ao Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, e à quinta alteração à Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro” – e é refletido de modo inequívoco nos dois números em que se analisa o seu artigo 1.º, com a epígrafe “Objeto”:
« 1 - A presente lei estabelece a duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, alterando em conformidade:
a) O Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado em anexo à Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, alterada pela Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, pelo Decreto-Lei n.º 124/2010, de 17 de novembro, e pelas Leis n.os 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 66/2012, de 31 de dezembro;
b) O Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, que estabelece as regras e os princípios gerais em matéria de duração e horário na Administração Pública, alterado pelo Decreto-Lei n.º 169/2006, de 17 de agosto, e pelas Leis n.os 64-A/2008, de 31 de dezembro, e 66/2012, de 31 de dezembro.
2 - A presente lei altera ainda:
a) A Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro, que aprova o estatuto do pessoal dirigente dos serviços e organismos da administração central, regional e local do Estado, alterada pelas Leis n.os 51/2005, de 30 de agosto, 64-A/2008, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, e 64/2011, de 22 de dezembro
b) A Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, que aprova o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, alterada pela Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, pelo Decreto-Lei n.º 124/2010, de 17 de novembro, e pelas Leis n.os 64 B/2011, de 30 de dezembro, e 66/2012, de 31 de dezembro. (itálicos aditados)»
Por outro lado, resulta da exposição de motivos do Decreto n.º 22/2013 que o mesmo apenas visa a Lei n.º 68/2013, na parte em que esta disciplina a duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, isto é, na parte respeitante ao objeto definido no respetivo artigo 1.º, n.º 1. Com efeito, lê-se na mencionada exposição de motivos:
« A Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, estabelece a duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas e procede à quinta alteração à Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, à quarta alteração ao Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, e à quinta alteração à Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro [- trata-se da transcrição do título da própria Lei n.º 68/2013].
Esta Lei procede ao aumento do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas para 8 horas diárias (ao invés das 7 horas) e 40 horas semanais (ao invés de 35 horas), que o mesmo é dizer, dispõe sobre a duração e organização do trabalho na Administração Pública.
A matéria em apreço, duração e horário de trabalho na função pública, não faz parte do leque de matérias das bases do regime e âmbito da função pública. Estamos, nesta medida, perante uma matéria que cai, inequívoca e indiscutivelmente, no âmbito da competência legislativa própria da Região Autónoma dos Açores por força do disposto nos artigos 37.º e alínea a) do n.º 3 do artigo 49.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
Nesta medida, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores pode e deve afastar a aplicação da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, que fixou o período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas em 40 horas semanais, através da publicação do presente decreto legislativo regional que manterá as 35 horas semanais. […] (itálico aditado).»
Ou seja, a estatuição do artigo 4.º do Decreto n.º 22/2013 que determina não ser aplicável à Administração Pública regional “o disposto na Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto” deve ser interpretada restritivamente, no sentido de estar em causa apenas a não aplicação das disposições da citada Lei que respeitam à matéria da duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, o mesmo é dizer, as disposições subsumíveis ao artigo 1.º, n.º 1, da mesma Lei.
Na verdade, é esse o objetivo prosseguido pela ALRAA, que, por isso mesmo, invoca na exposição de motivos do Decreto n.º 22/2013 a sua competência legislativa própria em matéria de “âmbito e regime dos trabalhadores da Administração Pública regional autónoma e demais agentes da Região” (cfr. o artigo 49.º, n.º 3.º, alínea a), do EPARAA). E é também esse o objetivo que leva aquele órgão a «acautelar» a respetiva incompetência, mediante a apresentação junto da Assembleia da República da Proposta de Lei n.º 180/XII.
Por outro lado, a interpretação do Decreto n.º 22/2013 que subjaz ao pedido de fiscalização da constitucionalidade apresentado pelo requerente assume igualmente a referida interpretação restritiva:
« 2. O referido Decreto n.º 22/2013 […] tem por finalidade precípua excluir esta última [- a Administração Pública regional -] do regime contido na recente Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto (artigo 4.º) – diploma que define imperativamente e para todo o território nacional “a duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, alterando em conformidade: a) o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (…); b) o Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, que estabelece as regras e os princípios gerais em matéria de duração do trabalho na Administração Pública” (artigo 1.º).
Consequentemente, o Decreto sub judice estatui, no n.º 1 do seu artigo 3.º, que “o período normal de trabalho dos trabalhadores da Administração Pública Regional é de sete horas por dia e trinta e cinco por semana” – em vez de “oito horas por dia e quarenta por semana”, tal como consagrado genericamente no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, e objeto de posterior desdobramento normativo: no n.º 1 do artigo 126.º do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (RCTFP), para os trabalhadores hoje sujeitos a essa disciplina-regra; no n.º 1 do artigo 7.º e no n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 259/98, para os trabalhadores que exercem funções na Administração Pública em regime de nomeação definitiva.
Numa palavra, o n.º 1 do artigo 3.º do Decreto n.º 22/2013 procura, em ostensiva derrogação do disposto no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013 – tanto mais que este diploma assume, em moldes categóricos, a sua natureza imperativa e prevalente (artigo 10.º) –, reconstituir em termos seletivos o status quo ante em matéria de regime-regra da duração do trabalho. Ou seja, pretende restabelecer a vigência para a Administração Pública Regional do regime anterior mais favorável – mas mantendo-se aquela lei nacional em vigor no território açoriano para os trabalhadores da Administração do Estado e para os trabalhadores da Administração Autárquica.»
Em conformidade, o requerente, na fundamentação do seu pedido, apenas equaciona, discute e analisa aquela intencionada derrogação, relativamente aos citados trabalhadores da Administração Pública da Região Autónoma dos Açores.
Pelo exposto, o Tribunal vai apreciar a constitucionalidade de todas as normas constantes do Decreto n.º 22/2013, interpretando o respetivo artigo 4.º no sentido de o mesmo se referir apenas às disposições da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, respeitantes à matéria da duração do período normal de trabalho em funções públicas.
6. Por outro lado, na análise do normativo constante do Decreto n.º 22/2013 sobressai a centralidade do seu artigo 3.º, n.º 1: é neste preceito que se consubstancia a derrogação do novo período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas estabelecido pela Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, e a recuperação do período que esta mesma Lei pretendeu substituir.
Com efeito, e como reconhecido expressamente na exposição de motivos do citado Decreto, o intento prosseguido pelo legislador regional é “afastar a aplicação da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, que fixou o período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas em 40 horas semanais [e manter o regime anterior das] 35 horas semanais” (itálicos aditados). E, em consonância, o objeto do mesmo diploma é estabelecer “o regime especial de duração do período normal de trabalho dos trabalhadores da Administração Pública Regional” (cfr. o respetivo artigo 1.º). Tal objetivo encontra a sua tradução normativa no referido artigo 3.º, n.º 1: “o período normal de trabalho dos trabalhadores da Administração Pública Regional é de sete horas por dia e trinta e cinco horas semanais”.
Deste modo, a eventual inconstitucionalidade do artigo 3.º, n.º 1, em análise, importa não só a inconstitucionalidade consequente dos n.os 2 e 3 do mesmo artigo que expressamente se lhe referem, pressupondo-o, como também de todos os demais artigos do Decreto n.º 22/2013. Daí não se justificar uma apreciação autónoma da constitucionalidade de tais preceitos, tanto mais que também não vêm invocados vícios de inconstitucionalidade específicos ou diretamente imputados aos mesmos preceitos.
Na verdade, os artigos 2.º e 5.º daquele Decreto, porque, respetivamente, delimitam o âmbito de aplicação subjetivo e temporal do período normal de trabalho fixado no citado artigo 3.º, n.º 1, também dele são absolutamente dependentes.
Já o artigo 4.º do mesmo diploma, na interpretação restritiva anteriormente feita, é uma mera consequência da estatuição do artigo 3.º, n.º 1: na medida em que vigora um período normal de trabalho dos trabalhadores da Administração Pública regional diferente daquele que é fixado na Lei n.º 68/2013, nomeadamente no seu artigo 2.º, n.º 1, esta última, na parte em que alarga o período normal de trabalho dos trabalhadores que exercem funções públicas, não se aplica aos trabalhadores da Administração Pública regional.
Tal vale, desde logo, para os n.os 2 e 3 do artigo 2.º de tal Lei e para os seus artigos 10.º, 11.º e 12.º, na parte em que se referem expressamente ao artigo 2.º, uma vez que todos pressupõem o disposto no artigo 2.º, n.º 1. Por outro lado, sendo os artigos 3.º e 4.º da Lei n.º 68/2013, um «desdobramento normativo» - na expressão do requerente – ou uma simples concretização do período normal de trabalho de referência de oito horas por dia e quarenta horas por semana para os trabalhadores em funções públicas fixado no artigo 2.º, n.º 1, anterior, relativamente aos trabalhadores com vínculo de emprego público fundado em contrato de trabalho em funções públicas e aos trabalhadores com vínculo de emprego público fundado em nomeação, é evidente que a aplicação dos mesmos preceitos aos trabalhadores da Administração Pública regional fica prejudicada, caso o período normal de referência a considerar seja diferente daquele que é estabelecido no citado artigo 2.º, n.º 1.
Em suma, a eventual inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013 por qualquer um dos fundamentos invocados pelo requerente não é suscetível de ser removida mediante a sua reformulação e o citado Decreto, expurgado da mesma norma, ficaria, nos termos expostos, esvaziado de qualquer sentido.
7. Os vícios de inconstitucionalidade arguidos pelo requerente respeitam todos à mesma dimensão normativa do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013. Com efeito, no seu pedido, o requerente confronta a derrogação do regime geral fixado a nível nacional pelo artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2013 operada pelo citado preceito do diploma regional com diferentes parâmetros constitucionais. Acresce que qualquer das inconstitucionalidades invocadas, a proceder, é, só por si, suficiente para fundamentar o veto por inconstitucionalidade do mesmo Decreto e impeditiva da renovação da sua aprovação.
Embora o requerente invoque a relação de prejudicialidade dos vícios de inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 165.º da Constituição apenas em relação à violação da reserva legislativa do Estado ou da República baseada no alegado contexto de emergência económica e financeira, a verdade é que tanto o vício de inconstitucionalidade simultaneamente orgânico e material por violação da incumbência exclusiva do Estado de fixar a nível nacional os limites da duração do trabalho (artigo 59.º, n.º 2, alínea b), da Constituição), como o vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade (artigos 13.º e 59.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea b), ambos da Constituição) também revelam uma certa conexão com aqueles vícios competenciais.
Em primeiro lugar, a incumbência do Estado de assegurar, a nível nacional, os limites da duração do trabalho referida no artigo 59.º, n.º 2, alínea b), da Constituição é instrumental relativamente aos direitos fundamentais previstos no n.º 1 do mesmo artigo, alíneas a) e d) (cfr., quanto a esta última, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. XI ao artigo 59.º, p. 776; Rui Medeiros em Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. XXI ao artigo 59.º, p. 1165). E, por outro lado, a exigência de uma fixação “a nível nacional” daqueles limites não é dissociável das exigências de igualdade que permeiam a garantia de todos os direitos dos trabalhadores previstos no mesmo n.º 1.
É certo que a referência ao «nível nacional», por si só, pode não ser suficiente para afirmar uma «reserva de legislação estadual» (neste sentido, v. Rui Medeiros, ibidem, anot. XIX ao artigo 59.º, pp. 1163-1164; em sentido contrário, v., todavia, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, ibidem, mesma anot. ao artigo 59.º: “tais limites têm de ser de caráter nacional, o que quer dizer que não pode ter variações regionais e que a sua determinação compete ao Estado”; e o Acórdão n.º 212/92).
Mas já é seguro que se, conforme afirma o requerente, os direitos concretizados por via da fixação do período normal de trabalho pelo artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2013 – os direitos ao repouso e a um limite máximo da jornada de trabalho e ao descanso semanal -, tiverem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, então estará em causa matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição). Ademais, relativamente aos trabalhadores em funções públicas, se tal período normal de trabalho de referência também corresponder a uma «base do regime da função pública», conforme sustenta igualmente o requerente, então a fixação de tal período também integrará a citada reserva de competência legislativa (agora por força da alínea t) do mesmo artigo 165.º, n.º 1). Ou seja: caso proceda qualquer um destes dois vícios de competência invocados pelo requerente, necessariamente que a fixação dos limites da duração do trabalho referida no artigo 59.º, n.º 2, alínea b), da Constituição estará reservada a lei ou decreto-lei autorizado, atos, em princípio, de aplicação nacional. Nestes termos, verifica-se uma precedência – ou, pelo menos, uma interdependência – entre os citados vícios competenciais e este vício que o requerente caracteriza como sendo simultaneamente competencial e material.
Do mesmo modo, no que se refere à invocada violação da igualdade.
A «questão chave» é aqui, uma vez mais, a exigência constitucional de uniformidade de regime em matéria de duração do tempo de trabalho dos trabalhadores em funções públicas. E face a tal exigência, um decreto legislativo regional não é, em princípio, instrumento adequado para disciplinar essa matéria, uma vez que está, por natureza, limitado ao «âmbito regional», no sentido territorial e institucional do termo consagrado pela jurisprudência constitucional (cfr. os Acórdãos n.os 258/2007, 423/2008 e 304/2011). Mas, sendo assim, o vício de inconstitucionalidade radicará, desde logo, no instrumento legislativo, e não no seu conteúdo, qualquer que ele seja; a violação da igualdade será simples consequência da adoção de um regime que não pode deixar de diferenciar entre realidades, em princípio, iguais – os trabalhadores da Administração Pública regional e os trabalhadores das demais Administrações – e que, por isso mesmo, requerem um tratamento igual. Enquanto realidade consequencial, não é, pois, esta inconstitucionalidade material que deverá estar na primeira linha da apreciação do Tribunal.
Em síntese, justifica-se começar por apreciar as invocadas inconstitucionalidades orgânicas por violação do artigo 165.º, n.º 1, da Constituição, uma vez que, a proceder qualquer uma delas ou ambas, fica prejudicado o conhecimento das demais inconstitucionalidades arguidas.
8. Finalmente, a circunstância de, ao apresentar a Proposta de Lei n.º 180/XII, a ALRAA reconhecer que a respetiva matéria, que é coincidente com aquela que é objeto do Decreto n.º 22/2013 – a saber: o afastamento da aplicação da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na parte em que alarga o período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, aos trabalhadores da Administração Pública da Região Autónoma dos Açores – integra a reserva de competência legislativa da Assembleia da República (cfr. supra o n.º 3), não é impeditiva da apreciação do mérito do presente pedido de fiscalização abstrata preventiva da constitucionalidade.
O reconhecimento implícito da inconstitucionalidade das normas do Decreto n.º 22/2013 pelo órgão autor das mesmas não dispensa uma avaliação autónoma por parte do Tribunal, aliás pedida pelo requerente.
B) Apreciação das inconstitucionalidades por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República
B.1. A violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de bases do regime da função pública
9. Desde há muito que o Tribunal Constitucional, seguindo a doutrina mais representativa, distingue três níveis de extensão das reservas absoluta e relativa de competência legislativa da Assembleia da República (cfr. o Acórdão n.º 3/89; na doutrina, v., mais recentemente, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 254; e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. IV ao artigo 165.º, p. 325):
- Um nível mais exigente em que toda a disciplina legislativa da matéria é reservada à Assembleia da República;
- Um nível menos exigente, em que a reserva de competência legislativa daquele órgão se limita ao regime geral;
- Um terceiro nível, em que a competência da Assembleia da República é reservada apenas no que se refere às bases gerais ou bases do regime jurídico da matéria.
Neste último nível, embora não seja fácil definir senão aproximadamente o que deve entender-se por «bases», é seguro que, nos domínios materiais correspondentes, compete à Assembleia da República “tomar as opções político-legislativas fundamentais e […] definir a disciplina básica do regime jurídico, não podendo limitar-se a simples normas de remissão ou normas praticamente em branco” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ibidem; cfr. também os Acórdãos n.os 4/84 e 285/92; e Jorge Miranda, ibidem, pp. 406 e 412). Não sendo fácil de precisar rigorosamente o âmbito das matérias reservadas à competência legislativa da Assembleia da República, em especial quando tal reserva se cinge às «bases» dos regimes jurídicos, deve preferir-se, em caso de dúvida, “a interpretação mais favorável ao alargamento da competência reservada da AR. Este princípio de interpretação resulta diretamente da preeminência legislativa da AR, cujo fundamento é o próprio princípio democrático-representativo” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ibidem, anot. VI ao artigo 165.º, p. 327; também favorecendo “a interpretação que seja mais adequada ao primado do Parlamento”, v. Jorge Miranda, ibidem, p. 255).
A mesma Assembleia não está, contudo, impedida nem de regular por ato legislativo seu toda a matéria em causa, mediante um ato legislativo compósito que integre princípios gerais ou princípios estruturantes e regras concretizadoras desses princípios e ainda outras disposições de mera remissão para outros diplomas (cfr., por exemplo, e com referência às bases do regime da função pública, os Acórdãos n.os 142/85, 261/2004 e 620/2007); nem de circunscrever a disciplina legislativa por si aprovada às referidas bases (em sentido material) – caso em que se deverá falar de leis de bases em sentido próprio (ainda que as mesmas não se autoqualifiquem como tal): uma modalidade de «leis sobre leis» que é pressuposto da aprovação de decretos-leis de desenvolvimento ou de decretos legislativos regionais emanados ao abrigo da competência legislativa complementar das Assembleias Legislativas das regiões autónomas (cfr., respetivamente, os artigos 198.º, n.º 1, alínea c), e 227.º, n.º 1, alínea c), ambos da Constituição, que preveem «leis que se circunscrevem aos princípios ou bases gerais de regimes jurídicos»; cfr. também o artigo 38.º, n.os 1, primeira parte, e 2, do EPARAA; por outro lado, e conforme resulta do n.º 4 deste último normativo, a aprovação de «diplomas de bases» não está limitada ao domínio da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, podendo ocorrer igualmente em domínios de competência concorrencial dos diversos órgãos legislativos).
A este propósito, pode ler-se no Acórdão n.º 620/2007:
« Como vem sendo reconhecido, a Constituição não define o que são leis de bases (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 493/05). No caso de a lei se não autoqualificar como tal, são de presumir como leis de bases as leis da Assembleia da República naquelas matérias em que a reserva de lei se limita justamente às bases dos regimes jurídicos previstas no artigos 164.º e 165.º. Fora desses casos [ou, poder-se-á acrescentar: afastada por via hermenêutica aquela presunção], são de qualificar como leis de bases as leis que de facto se limitem aos princípios gerais dos regimes jurídicos e que não devolvam expressamente o seu desenvolvimento para diploma regulamentar, pois então deixa de existir um pressuposto necessário das leis de bases, que é o seu desenvolvimento legislativo. Inversamente, um indício seguro da existência de uma lei de bases é a exigência por ela estabelecida de desenvolvimento ou de regulamentação mediante decreto-lei (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, citada, pág. 676). […]
Não podendo ser tido como uma lei de bases, poderá suceder que algumas das [normas de um dado diploma legal] possam ser qualificadas como bases do regime da função pública. Como tais devem entender-se aquelas que, num ato legislativo, definam as opções político-legislativas fundamentais cuja concretização normativa se justifique que seja ainda efetuada por via legislativa (Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, citado, pág. 755; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, tomo V, 3ª edição, Coimbra, pág. 377; acórdão do Tribunal Constitucional n.º 261/04)».
Em qualquer caso, se o Governo ou as Assembleias Legislativas das regiões autónomas aprovarem atos legislativos, seja no exercício da sua competência legislativa primária, seja no exercício da sua competência legislativa complementar, que tenham por objeto a modificação ou a definição de opções político-legislativas correspondentes a bases integradas na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, tais atos enfermarão, nessa medida, de inconstitucionalidade orgânica.
Nesse sentido, decidiu o Tribunal no seu Acórdão n.º 142/85 (também ele referente à reserva de competência legislativa em matéria de bases do regime jurídico da função pública):
« [A norma constitucional consagradora da reserva parlamentar em matéria de bases da função pública aponta para a aprovação de uma «lei-quadro» da função pública]: ora a Constituição apenas aponta para aí (foi isso que acima se disse), mas, em rigor, não condiciona ou limita expressamente nesses termos o alcance da reserva em causa. Esta, por conseguinte, bem pode ser interpretada antes como incluindo qualquer intervenção legislativa que contenda com os princípios estruturais básicos do regime da função pública.
c) Simplesmente, se as coisas se passam deste outro modo, então a circunstância de os mesmos princípios não se encontrarem «codificados» num único diploma legislativo ou, ao menos, num corpo de diplomas perfeitamente articulado também não deverá conduzir a um alargamento da reserva para além do que se acha estabelecido na Constituição. Concretamente: também não deverá nem poderá traduzir-se num absoluto bloqueamento da legislação governamental autónoma no domínio da função pública até que a Assembleia da República proceda, em diploma ou diplomas adrede emitidos para o efeito, à fixação e sistematização das respetivas bases gerais.
Definido o seu alcance nos termos indicados, o que a reserva do artigo 168.º, n.º 1, alínea u), implica, sim, é a necessidade de, a partir dos numerosos e dispersos textos legais regulamentadores da função pública, e sem, naturalmente, perder de vista o respetivo contexto, maxime institucional e histórico, averiguar e estabelecer as linhas de força estruturais dessa regulamentação, os princípios básicos que a informam e caracterizam, pois aí se situará a linha de fronteira entre o que pertence e o que não pertence à competência legislativa exclusiva da Assembleia da República. Nessa competência entrará só — como é óbvio — o que contenda com aqueles princípios, por importar a sua substituição, modificação ou derrogação; sobre tudo o mais, poderá o Governo legislar sem necessidade de qualquer autorização prévia.
Numa palavra, e para nos servirmos de uma consabida distinção, dir-se-á: a reserva parlamentar inclui apenas o que tenha a natureza de uma regulamentação de princípio, por constituir, ou coenvolver uma redefinição de «princípios jurídicos»; a emissão de normas que não briguem com esses princípios, mas representem unicamente uma diferente modelação ou concretização deles, essa encontra-se o Governo habilitado a fazê-la autonomamente.»
Este entendimento foi confirmado pela jurisprudência posterior – v., por exemplo, o que se refere no Acórdão n.º 208/2002:
« Decorre da jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente o Acórdão n.º 233/97 (in AcTC, 36.º vol., pp. 503 e ss.) e dos Acórdãos aí citados, que a criação de exceções ou o estabelecimento de princípios contrários em matéria de bases do regime e âmbito da função pública não podem ser considerados como constituindo o desenvolvimento de tais bases.
Isso significa necessariamente que a criação de tais exceções ou princípios contrários aos contidos nas bases da função pública consubstancia uma invasão da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, prevista no artigo 165°, n.º 1, alínea t), da Constituição. Com efeito, ainda que se admita que a reserva estabelecida nesta última norma não abrange a particularização e a concretização do regime da função pública […], ela não pode deixar de incluir a criação de exceções ou o estabelecimento de princípios contrários àqueles que podem considerar-se os princípios básicos definidores das bases de tal regime, sob pena de se abrir a porta a um esvaziamento da reserva pela via da multiplicação de regimes excecionais.»
Deste modo, e em rigor, perante o que acima foi referido como um ato legislativo compósito respeitante a matéria cujas bases ou princípios integrem a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, falta um pressuposto do exercício da competência legislativa complementar do Governo ou das Assembleias Legislativas das regiões autónomas - uma «lei que se circunscreva aos princípios ou bases gerais de um dado regime jurídico». Os mesmos órgãos podem, todavia, exercer relativamente a tal matéria a respetiva competência legislativa primária, nos termos gerais, ou seja, abstendo-se de legislar sobre a (parte da) matéria reservada à Assembleia da República – isto é, sobre as bases ou princípios estruturantes do regime jurídico em causa.
10. A Lei n.º 68/2013 não se qualifica a si própria como lei de bases, mas, pelo exposto, tal não obsta a que a fixação do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas em oito horas por dia e quarenta horas por semana, constante do seu artigo 2.º, n.º 1, corresponda a uma base ou princípio estruturante do regime da função pública, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição, conforme sustenta o requerente. Tudo depende da compreensão do conceito de «base» neste contexto, da extensão do termo «função pública» e, outrossim - como não pode deixar de ser - do próprio significado e função estruturante do «período normal de trabalho» no âmbito do regime da duração do trabalho dos trabalhadores em funções públicas.
No que se refere ao primeiro aspeto, importa ter presente, como é justamente sublinhado pelo requerente, que a razão de ser da integração das «bases do regime da função pública» na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República se conexiona, desde logo, com as garantias de contraditório político e de publicidade e transparência do debate próprias do processo legislativo parlamentar. Acresce a exigência de unidade axiológico-normativa do regime jurídico aplicável a todos os trabalhadores em funções públicas, independentemente da concreta Administração a que os mesmos se encontrem vinculados (cfr. o artigo 269.º da Constituição). Tal unidade é, de resto, simétrica da comunidade de fins e de princípios constitucionalmente prevista para a Administração Pública (cfr. o artigo 266.º da Constituição).
Por outro lado, esta dimensão encontra-se intimamente ligada com o terceiro aspeto referido: a exigência de fundamentalidade da solução normativa concretamente considerada e o seu caráter estruturante, que são conaturais ao conceito de «base», nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 164.º e 165.º da Constituição. Deste modo, haverá que indagar se, como pretende o requerente, o período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas legalmente fixado é uma «âncora» ou epicentro verdadeiramente estruturante da disciplina do tempo de trabalho desses trabalhadores e indispensável à arquitetura de um «regime da função pública», visando a sua redefinição operada pela Lei n.º 68/2013 uma aproximação deste último ao regime do contrato individual de trabalho; ou se, como sustenta a ALRAA, as normas sobre a duração e sobre os horários de trabalho na função pública, por falta de caráter estruturante do respetivo regime, não podem “aspirar” à qualificação como “normas bases da função pública”.
O segundo aspeto dos três mencionados prende-se com a tendência para a laboralização da relação de emprego público, fortemente impulsionada a partir de 2004. Retenha-se a síntese constante do Acórdão n.º 474/2013:
« A Lei n.º 23/2004, de 22 de junho, aprovou o regime jurídico do Contrato Individual de Trabalho na Administração Pública, consentindo a utilização generalizada do contrato de trabalho por tempo indeterminado para atividades que não impliquem o exercício de poderes de autoridade ou funções de soberania, podendo a entidade pública empregadora, fora desses domínios, recorrer à modalidade contratual de constituição da relação laboral em alternativa à de nomeação ou ao contrato administrativo de provimento (cfr. Vera Antunes, O Contrato de Trabalho na Administração Pública, 2010, pág. 200). Acolheram-se, assim, na Administração Pública vínculos laborais até aí específicos do contrato de trabalho de natureza privada, sem conferir aos trabalhadores contratados a condição de funcionário ou agente administrativo. Como referiu Ana Fernanda Neves, abriu caminho à substituição da figura arquetípica do funcionário público dada pelo regime de nomeação (cfr. O Contrato de Trabalho na Administração Pública, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, 2006, vol. I, pág. 126) e acentuou o movimento de atração da relação de emprego público pelo regime laboral privado, de acordo com dinâmica de interseção de regimes que há muito se vinha sentindo (cfr. Maria do Rosário Ramalho, Intersecção entre o Regime da Função Pública e o Regime Laboral, Estudos de Direito do Trabalho, vol. I, 2003, págs. 69 e segs.; Cláudia Viana, A Laboralização do Direito da Função Pública, Sciencia Iuridica, Tomo LI, 2002, págs. 81 e segs.; e Ana Fernanda Neves, Os «Desassossegos» de Regime da Função Pública, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 2000, pág. 49 e segs.). Movimento este que encontrou manifestações noutros países europeus com estrutura de emprego público similar (cfr. Paulo Veiga e Moura, A privatização da função pública, 2004, págs. 334 e segs. e Vera Antunes, ob. cit., pág. 59). […]
Em 2008, é publicada a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, que define e regula os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas (retificada pela declaração n.º 22-A/2008, de 24 de abril e alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 34/2010, de 2 de Setembro, 55-A/2010, de 31 de dezembro, 64-B/2011, de 30 de dezembro, 66/2012, de 31 de dezembro, e 66-B/2012, de 31 de dezembro, e pelo Decreto-Lei n.º 47/2013, de 5 de abril).
Esse diploma abandona na sua terminologia as noções de funcionário e de agente administrativo (que não mais são utilizadas e permanecem hoje como definições conceptuais) e afasta a nomeação como regime-regra da constituição da relação de emprego público, colocando nesse lugar o contrato de trabalho. Deu dessa forma novo impulso ao movimento de laboralização da relação de emprego público, mesmo que continuando relação laboral específica, apenas aplicável na Administração Pública (cfr. Alda Martins, A laboralização da função pública e o direito constitucional à segurança no emprego, Julgar, n.º 7, 2009, pág. 169). A constituição do vínculo de nomeação passou a ser reservada aos trabalhadores cuja carreira esteja diretamente adstrita ao exercício de poderes de autoridade ou de soberania, i.e., ao que já se designou de núcleo duro da função pública (cfr. Paulo Veiga e Moura e Cátia Arrimar, Os Novos Regimes de Carreiras e de Remunerações dos Trabalhadores da Função Pública, 2010, pág. 57 e Miguel Lucas Pires, Os Regimes de Vinculação e a Extinção das Relações Jurídicas dos Trabalhadores da Administração Pública, 2013, pág. 57). […]
O quadro normativo dessa alteração de paradigma completa-se meses depois, com a publicação da Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, que aprovou o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, com aproximação ainda mais marcada ao regime do Código do Trabalho, mesmo que convivendo com a qualificação dessa relação de trabalho subordinado como de natureza administrativa (artigo 9.º, n.º 3).»
Considerando o modelo inicial de carreira e a evolução legislativa posterior, pode discutir-se hoje qual o conceito relevante de «função pública» a que se refere o artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição: um sentido mais próximo do tradicional, abrangendo apenas os trabalhadores da Administração Pública cujas relações de emprego são disciplinadas por um específico regime jurídico de direito administrativo, de natureza estatutária, distanciado do regime laboral do setor privado – conceito restrito de função pública; ou um conceito mais amplo que abarque todas as relações de emprego estabelecidas com pessoas coletivas integradas na Administração Pública (ou com um ente público), podendo o vínculo ser mais juslaboralista ou mais jusadministrativista, assentando em qualquer caso num “mínimo denominador comum de regime juspublicista” - conceito amplo de função pública (cfr. Ana Fernanda Neves, “O Direito da Função Pública” in Tratado de Direito Administrativo Especial, vol. IV, Almedina, Coimbra, 2010, p. 359 e ss., p. 359).
Esta questão releva no presente caso, para efeitos de um eventual juízo de inconstitucionalidade parcial da norma do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013. Com efeito este artigo derroga a Lei n.º 68/2013, na parte em que alarga o período normal de trabalho dos trabalhadores que exercem funções públicas (cfr. o artigo 1.º, n.º 1, desta Lei), a qual, por sua vez se reporta indistintamente aos vínculos de emprego público constituídos por nomeação e por contrato de trabalho em funções públicas. À disciplina da citada Lei subjaz, na verdade, um conceito amplo de função pública (daí os desdobramentos normativos da base contida no seu artigo 2.º, n.º 1, relativamente ao Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto – no artigo 4.º - e ao RCTFP – no artigo 3.º). Deste modo, caso o conceito constitucional de «função pública» seja de considerar mais restrito do que o pressuposto na Lei n.º 68/2013 – abrangendo apenas os vínculos fundados em nomeação -, poderá entender-se que o afastamento desta última pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013 só invade a reserva relativa de competência legislativa consignada na alínea t) do artigo 165.º, n.º 1, da Constituição, na medida em que se aplique a vínculos desse tipo; mas já não quando – e na medida - em que seja aplicável a relações contratuais de emprego público.
11. Quanto ao conceito de «base», em geral, cumpre reiterar o entendimento afirmado na jurisprudência constante do Tribunal Constitucional:
- Acórdão n.º 468/2010:
« O Tribunal tem jurisprudência consolidada no sentido de que a reserva de competência legislativa em matéria de bases do regime e âmbito da função pública – artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição –, se circunscreve à “definição das grandes linhas de inspiração da regulação legal da função pública e a demarcação do âmbito institucional e pessoal da aplicação desse específico regime jurídico. A reserva compreende, assim, o estabelecimento do quadro dos princípios básicos fundamentais daquela regulação, dos seus princípios reitores ou orientadores – princípios esses que caberá depois ao Governo desenvolver, concretizar e mesmo particularizar, em diplomas de espectro mais ou menos amplo – e dos princípios que constituirão, justamente, o parâmetro e o limite deste desenvolvimento, concretização e particularização” (cfr., por todos, Acórdão n.º 184/08). Neste âmbito, matérias reservadas ao Parlamento, salvo autorização ao Governo para sobre elas legislar, devem entender-se aquelas que, num ato legislativo, definam as opções político-legislativas fundamentais cuja concretização normativa se justifique que seja ainda efetuada por via legislativa (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, citado, pág. 755; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 3ª edição, Coimbra, pág. 377; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 261/04).»
- Acórdão n.º 76/2013, reiterando o decidido pelo Acórdão n.º 302/2009:
« [A] Comissão Constitucional, ainda na vigência do primitivo texto constitucional, logo evidenciou que a referida norma apenas se dirigia ao “estatuto geral” da função pública, abraçando o que “é comum e geral a todos os funcionários e agentes”, tal como “a definição do sistema de categorias, de organização de carreiras, de condições de acesso e de recrutamento, de complexo de direitos e deveres funcionais que valem, em princípio, para todo e qualquer funcionário público e que, por isso mesmo, favorecem o enquadramento da função pública como um todo, dentro das funções do Estado”, cabendo, por seu turno, na competência legislativa do Governo a “concretização” desse estatuto geral, a sua “complementação, execução e particularização” (cf. pareceres n.ºs 22/79 e 12/82, Pareceres da Comissão Constitucional, vols. 9.º, p. 48, e 19.º, p. 119, respetivamente), tendo este Tribunal mantido idêntica posição em arestos posteriores (cf. Acórdão n.º 142/85, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6.º vol.).» (itálico aditado).
A doutrina acompanha, no essencial, este entendimento:
- As bases do regime e âmbito da função pública “começam logo por integrar a definição do regime jurídico da Função Pública e as circunstâncias em que o mesmo pode eventualmente ser substituído por outra normação. Depois, as bases compreenderão igualmente a disciplina fundamental de todas as matérias cuja regulamentação a Constituição remeta para a lei, nomeadamente o regime de acumulação de funções, o sistema de incompatibilidades, o direito de regresso sobre os funcionários e agentes. Por fim, assumirá a natureza de base do regime a tipicização das formas de constituição, modificação ou extinção da relação de emprego público, o sistema de carreiras ou categorias da Função Pública, as condições gerais para ingressar e aceder aos lugares superiores, os direitos reconhecidos e os deveres impostos, o sistema retributivo e as suas componentes, o regime sancionatório, as garantias jurídicas e os meios de resolução de conflitos” (v. Paulo Veiga e Moura, A Privatização da Função Pública, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 101; itálico aditado);
- “O regime e âmbito da função pública constituem reserva de competência legislativa parlamentar desde a versão originária da Constituição, circunscrita, desde a primeira revisão, às respetivas bases. De acordo com a leitura da Comissão Constitucional, à intervenção parlamentar cabia a definição dos aspetos ou elementos identificativos do regime da função pública, daquilo que era «comum e geral a todos os funcionários e agentes, o que, nestes termos, era menos do que a «reserva integral das volições primárias» do regime. As bases constituem os princípios, as opções político-legislativas essenciais, a «regulamentação de princípio» das respetivas relações de trabalho […] (v. Ana Fernanda Neves, “O Direito da Função Pública”, cit., pp. 386-387);
- A alínea t) “reserva à AR a matéria das «bases» do regime e âmbito da função pública (ou seja, o estatuto próprio da função pública como organização e como relação jurídica de emprego específica), bem como a delimitação do seu âmbito (ou seja, a demarcação das áreas em que os organismos e os servidores do Estado estão sujeitos àquele regime). Esta delimitação nem sempre é fácil […], mas deve interpretar-se no sentido da extensão da reserva da AR, sobretudo quando estiverem em causa, direta ou indiretamente, direitos fundamentais (acesso à função pública e cargos públicos, direito de exercício de profissão), […]. (v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, II, cit., anot. XX ao artigo 165.º, p. 333; itálicos aditados).
Deste modo, o conceito constitucional de «base do regime da função pública» é um conceito aberto a conteúdos diversos, caracterizados pela sua importância para a estruturação do regime jurídico das relações de emprego público.
12. O artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, veio fixar um novo período normal de trabalho de referência de oito horas por dia e quarenta horas por semana, substituindo os períodos normais anteriormente fixados nos artigos 7.º, n.º 1, e 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 259/98 e no artigo 126.º, n.º 1, do RCTFP. Consequentemente, caso seja de atribuir à fixação do período normal de trabalho, enquanto referência para a determinação da duração máxima do tempo de trabalho (cfr. o artigo 120.º do RCTFP e os citados artigos do Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto), uma importância estruturante da relação de emprego público – é essa referência que estabelece o patamar relevante para a definição dos diferentes limites máximos da duração do trabalho diário e semanal dos trabalhadores em funções públicas e a duração do trabalho de tais trabalhadores constitui, pelas suas conexões com o funcionamento dos serviços e a gestão dos recursos humanos da Administração Pública, uma dimensão essencial da relação de emprego público relativamente à qual se justificam opções tendentes a fixar padrões uniformes por parte do empregador -, fica demonstrada a natureza de «base» da estatuição contida no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto.
13. No que se refere à amplitude do conceito de função pública relevante para efeitos do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição, está fundamentalmente em causa, como referido, saber se o mesmo, além de abranger as relações jurídicas constituídas por nomeação – e que respeitam aos trabalhadores cuja carreira esteja diretamente adstrita ao exercício de poderes de autoridade ou de soberania (cfr. o artigo 10.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiros) -, se estende aos trabalhadores da Administração Pública vinculados por via do contrato de trabalho em funções públicas (cfr. o artigo 20.º do mesmo diploma).
O conceito restrito de função pública foi defendido com base na caracterização da Administração Pública segundo a lógica dos princípios fundamentais da organização e da atividade administrativa (artigo 266.º e seguintes da Constituição), e na caracterização do Estado segundo as tarefas que constitucionalmente deve cumprir (artigos 9.º e 81.º da Constituição). Da vigência de tais princípios e tarefas retirava-se, depois, a conclusão da existência constitucional de um estatuto específico da função pública - um estatuto de mais firme vinculação e menor precariedade do que o regime geral das relações laborais comuns. Esse estatuto justificar-se-ia, seja pelo cariz próprio da Administração Pública (dirigida como está para a realização do interesse público segundo os princípios da justiça e da imparcialidade), seja pela sua estrutura desconcentrada e descentralizada que a Constituição consagra. E tal estatuto deveria conferir aos trabalhadores da Administração Pública garantias efetivas do rigoroso exercício do interesse público que servem e dos princípios a que se subordinam.
Esta posição invocava apoio literal no n.º 1 do artigo 269.º (e também no artigo 271.º) da CRP, que determina que “no exercício das suas funções, os trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas estão exclusivamente ao serviço do interesse público”. Desta adstrição exclusiva ao interesse público decorreria a necessária especificidade dos vínculos do trabalho no âmbito da Administração Pública. No mesmo sentido concorreriam ainda a epígrafe do artigo 269.º e a previsão do artigo 165.º, n.º 1, alínea t).
Contudo, este entendimento restritivo foi já afastado pelo Tribunal Constitucional. Afiguram-se particularmente incisivos os argumentos expendidos, a este propósito, no Acórdão n.º 154/2010:
«[8.] Em 1982, na primeira revisão constitucional, decidiu o legislador constituinte substituir, no n.º 1 do artigo 269.º da Constituição, a expressão “funcionários públicos” pela alternativa “trabalhadores da Administração Pública”. O intuito terá sido o de deixar claro que aos “funcionários” seriam também aplicáveis os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, então autonomizados (Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 125, pp. 5269-5280). É, pois, à luz desta disposição constitucional e das outras, com ela sistematicamente relacionadas, que deve analisar-se a bondade da tese que acabou de ser explanada, segundo a qual existe uma reserva constitucional de função pública. […]
8.1. Em primeiro lugar, não pode dizer-se que a alteração do regime de nomeação (por ato de autoridade unilateral da Administração) para um regime contratual (por conjugação do interesse público que a Administração Pública serve com a autonomia privada do particular) ofenda, em si mesmo, a ideia de um estatuto específico da função pública. Na verdade, nenhuma das regras e princípios que vimos caracterizarem esse estatuto (sejam elas relativas a concurso no acesso e na carreira; direito de reclamação; garantias em processo disciplinar, responsabilidade por ações e omissões ou acumulações e incompatibilidades) é posta em causa pela mera alteração da modalidade de vínculo em causa e todas elas são compatíveis com um regime jurídico de matriz contratual. O estatuto específico da função pública existe constitucionalmente, mas não é atingido apenas pelo facto de haver formas contratuais de recrutamento de trabalhadores da Administração Pública.
Como esclarecem Jorge Miranda e Ana Fernanda Neves (loc. cit.[ Jorge Miranda em artigo conjunto com Ana Fernanda Neves (sub artigo 269.º, in Constituição da República Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda /Rui Medeiros, Tomo III, p. 620 e ss.], pág. 621):
“ Estes elementos irredutíveis [que compõem o estatuto da função pública e que acima se enumeraram] encontram-se tanto nas situações (mais correntes até hoje) de sujeição dos trabalhadores da Administração pública e demais funcionários e agentes a um regime estatutário como nas situações de contrato individual de trabalho”.
8.2. Em segundo lugar, não parece pertinente, à luz da evolução constitucional portuguesa, a alegação […] segundo a qual o modelo de Estado social que a Constituição consagra exigiria que se mantivesse o regime de nomeação definitiva e excluiria que a Administração Pública se regesse por critérios de contratualidade laboral. […]
Na verdade, a “democracia económica, social e cultural”, que sustenta a ideia constitucional de Estado de direito democrático, não corresponde a um modelo ideológico predefinido de organização e atuação do Estado e da Administração Pública, mas a uma transcendental exigência de juridicidade constitucional, exigência esta que se compadece com modelos estruturalmente diversos de organização administrativa pública e com formas heterogéneas de realização do interesse público, que o Estado visa servir.[…]
8.3. Em terceiro lugar, a função pública não é um estatuto que obrigatoriamente seja marcado pela homogeneidade. Mesmo quem mais enfaticamente defende a existência de uma especificidade constitucional inerente ao regime da função pública, como sucede com Paulo Veiga e Moura (A Privatização da Função Pública, Coimbra 2004, p. 80 a 84 e 257 a 261), reconhece que há no interior da Administração Pública diferenciações a fazer e especificidades a ter em conta (ob. cit., pág. 85-94), fazendo inclusivamente, como corolário da posição diferenciadora, a referência àquilo que designa como “núcleo duro da Função Pública” (p. 94), do qual naturalmente - acrescente-se - não farão parte todos os trabalhadores da função pública.
8.4. Em quarto lugar, […] não é de todo possível estabelecer um nexo de causalidade necessária entre a segurança da relação de emprego público (artigos 53.º e 58.º da Constituição) e o correto exercício da atividade administrativa pública no quadro dos princípios constitucionais (artigo 266.º da Constituição). De facto, como se sabe, há diversas modalidades de constituição da relação de emprego público. Existem, para além dos trabalhadores nomeados a título definitivo e em regime de contrato administrativo de provimento, trabalhadores em regime de “contrato a termo” e em regime de “comissão de serviço”.
Ora seria ilegítimo pensar que estes últimos teriam necessariamente menor empenho na realização do interesse público (que constitui a razão fundamental de ser e o “norte” da Administração Pública) e dos princípios jurídicos fundamentais (enquanto parâmetros normativos que balizam a prossecução de tal interesse público) do que os funcionários ou agentes com um vínculo menos precário e mais estável.
É certo que a estabilidade promove o compromisso, mas não é legítimo presumir que os trabalhadores com contrato por tempo indeterminado terão menor empenhamento na prossecução do interesse público do que os trabalhadores definitivamente nomeados.
Além disso, convém notar que qualquer uma das modalidades de constituição da relação jurídica de emprego público está, nos termos da lei, submetida às mesmas garantias de imparcialidade, quer se trate de nomeação (definitiva ou transitória) quer se trate de contrato (por tempo indeterminado ou a termo resolutivo, certo ou incerto). Tal significa que, pelo menos na perspetiva do legislador, inexiste uma correlação de causalidade necessária entre a modalidade de constituição da relação jurídica de emprego público e o grau de cometimento na prossecução do interesse público por parte do trabalhador. Com efeito, se assim não fosse, teria optado a lei por limitar o âmbito de aplicação das garantias de imparcialidade aos vínculos constituídos por contrato e não por nomeação definitiva, já que, quanto a estes últimos, se presumiria, pela própria natureza das coisas, um indiscutível comprometimento com o interesse público.
Nada, no entanto, legitima essa presunção. Como diz Pedro Gonçalves (Entidades privadas com Poderes Públicos, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 424-5), a propósito do que deva entender-se o que são, para efeitos de delimitação subjetiva do exercício privado de poderes públicos, entidades privadas “[i]ndependentemente do título de investidura – eleição, nomeação, contrato de provimento ou contrato de trabalho –, esses indivíduos [trabalhadores, funcionários, agentes ou titulares de órgãos políticos], agindo como membros da Administração e em nome de uma entidade pública, não são particulares. Desenvolvem uma atividade profissional, exercem um mandato, por eleição ou por nomeação, em qualquer caso, com uma legitimação democrática ou na dependência de pessoas com legitimação democrática”.
Significa isto que a Administração Pública, desenvolvendo-se num quadro institucional democraticamente legitimado, detém uma estrutura tal que possibilita que quem age em nome dela o faça em nome do interesse público, independentemente do modo pelo qual – nomeação ou contrato – se constituiu o vínculo laboral. E a imposição constitucional é justamente essa: a vinculação exclusiva da administração ao interesse público (artigo 266.º, n.º 1, da CRP).
[8.6. Mais: n]ada obsta a que, no âmbito das relações de emprego público, a regra geral seja a da “contratação” e que a “nomeação” seja a exceção, especialmente justificada em razão da especificidade das funções públicas a exercer.
Foi neste sentido que se chegou mesmo a afirmar no acórdão n.º 4/03:
“ [A] nossa Constituição não afirma qualquer garantia de vitaliciedade do vínculo laboral da Função Pública. Os trabalhadores da Função Pública não beneficiam de um direito à segurança do emprego em medida diferente daquela em que tal direito é reconhecido aos trabalhadores em geral”.
É certo que a Administração Pública está, na sua autonomia pública e privada, sujeita a parâmetros de juridicidade que não vinculam, na mesma medida, a generalidade dos cidadãos, na específica margem de liberdade decorrente da sua autonomia privada (sobre esta diferença de limitações entre a autonomia pública e privada da Administração Pública e a autonomia privada dos particulares, veja-se, por todos, Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, p. 532 e segs.).
Todavia, uma tal diversidade estrutural não constitui, de modo nenhum, obstáculo ou impedimento à adoção de modelos contratuais no âmbito das relações laborais existentes no seio da Administração Pública. Pelo contrário. As específicas limitações constitucionalmente impostas à autonomia da Administração Pública deverão constituir garantia constitucional suficiente da justa e ponderada realização do interesse público. E a interferência da liberdade de celebração e de estipulação dos particulares, na determinação de tais relações – não colidindo com as exigências nucleares da justiça, da imparcialidade, da igualdade e da proporcionalidade –, só potencia a melhor prossecução do interesse público, ao serviço do qual os trabalhadores da Administração Pública, e a própria Administração Pública, exclusivamente se encontram.»
O corolário lógico desta jurisprudência é a interpretação atualista da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de “bases do regime e âmbito da função pública” (artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição), em termos de a mesma se reportar à relação jurídica de emprego público, independentemente desta última se constituir, ao abrigo da legislação ordinária, por nomeação ou por contrato de trabalho em funções públicas.
É também nesse sentido que se pronunciam Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, cit., anot. XX ao artigo 165.º, p. 333:
« O regime da função pública estende-se também ao contrato de trabalho em funções públicas (cfr. L n.º 59/2008, de 11-09), pois a teleologia da reserva de lei da AR, inspirada em primeiro lugar, pelo estatuto próprio da função pública parece manter-se no contexto do contrato de trabalho individual nas pessoas coletivas públicas.»
E, outrossim, Ana Fernanda Neves, “O Direito da Função Pública”, cit., pp. 439-440:
« O mínimo denominador comum de regime juspublicístico funda-se na especificidade do empregador público, enquanto garante da satisfação de necessidades coletivas e de tutela de direitos fundamentais, como visto. Corresponde aos princípios constitucionais em matéria de emprego na Administração Pública, como […] o da reserva de Lei quanto às bases do seu regime e o do exercício das funções no respeito dos princípios gerais da atividade administrativa. As “particularidades de disciplina” do emprego público privatizado parecem colocar tais relações de trabalho a “meio caminho entre o modelo publicístico e o privatístico”, ou, talvez melhor, no âmbito do segundo mas enquadrado pelo primeiro.»
14. A importância da disciplina do tempo de trabalho, numa ótica subjetiva, é óbvia (cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho. Parte II - Situações Laborais Individuais, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 445 e seguintes): por um lado, porque contribui para delimitar a subordinação do trabalhador perante o empregador (o “tempo de trabalho” corresponde ao período durante o qual o trabalhador está a desempenhar a atividade ou permanece adstrito à realização da prestação, assim como certas interrupções ou intervalos compreendidos nesse mesmo período – cfr. o artigo 117.º do RCTFP); por outro lado, porque tutela a sua saúde, assegurando o seu descanso e a sua recuperação física. Mas, por isso mesmo, também não é de estranhar que os temas do limite da jornada de trabalho e do direito ao repouso (descanso semanal e férias) tenham sido dos primeiros a merecer a atenção do legislador, continuando até hoje a ser objeto de intensa atividade normativa, tanto no plano nacional (por um lado, incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente a fixação a nível nacional dos limites da duração do trabalho; e, por outro, o direito à saúde também deve ser realizado “pela melhoria sistemática das condições […] de trabalho” – cfr., respetivamente, o artigo 59.º, n.º 2, alínea b), e o artigo 64.º, n.º 2, alínea b), ambos da Constituição); como a nível internacional e da União Europeia (com particular destaque para a Diretiva n.º 2003/88/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, aplicável, à luz do seu artigo 1.º, n.º 3, “a todos os sectores de atividade, privados e públicos”).
Há outras dimensões objetivas a considerar, designadamente a qualidade da prestação de serviços aos cidadãos, dada a interdependência com os horários de funcionamento dos serviços e de atendimento ao público. Acresce que as limitações legais ao tempo de trabalho também podem ser relevantes, enquanto instrumentos de políticas de emprego, já que a diminuição ou aumento daquela duração tende a exercer uma influência direta sobre as necessidades de pessoal.
É, por isso, natural que o sentido da autorização legislativa para a primeira regulação do regime geral da duração e horário de trabalho na Administração Pública – o artigo 16.º, alínea b), da Lei n.º 2/88, de 26 de Janeiro – apontasse para a aproximação ao regime de contrato de trabalho, às soluções vigentes na Administração dos países comunitários e salientasse as obrigações decorrentes das convenções internacionais. Do mesmo modo, compreende-se que tal regulação – contida no Decreto-Lei n.º 187/88, de 27 de maio – se preocupasse especialmente com a flexibilidade do regime, em particular do ponto de vista da fixação da duração máxima diária e semanal do trabalho e das diferentes modalidades de horário que podem ser adotadas, numa perspetiva de maior racionalização da gestão e funcionamento dos serviços e de clarificação e defesa dos interesses dos seus utentes (cfr. o respetivo preâmbulo).
Por ocasião da aprovação do Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto – também aprovado ao abrigo de lei de autorização legislativa (a Lei n.º 11/98, de 24 de fevereiro) -, ainda que sem esquecer o lado subjetivo, voltaram a avultar as dimensões objetivas da disciplina do tempo de trabalho. Nesse sentido, pode ler-se no respetivo preâmbulo:
« Decorridos cerca de 10 anos sobre a sua aplicação, impõe-se adaptar este regime [- o constante do Decreto-Lei n.º 187/88 -] às transformações sócio-laborais que se têm vindo a verificar, bem como às alterações que a experiência vem ditando, no sentido de melhorar o funcionamento e a operacionalidade dos serviços e organismos da Administração Pública, tendo em vista a sua adequação às necessidades e à disponibilidade dos cidadãos.
De entre as alterações introduzidas merecem realce: a distinção entre o período de funcionamento e o período de atendimento, com a obrigatoriedade de afixação pública deste, a uniformização da duração do horário de trabalho […], a faculdade da abertura dos serviços em dias de feiras e mercados relevantes, a criação do regime de prestação de trabalho sujeito apenas ao cumprimento de objetivos, situação que facilita a concretização do designado «teletrabalho», o alargamento do âmbito de aplicação do trabalho a meio tempo e a atribuição dos dirigentes máximos dos serviços da responsabilidade de gestão dos regimes de prestação de trabalho, entre outras.»
Idênticas preocupações de uma gestão racionalizada dos recursos humanos e de servir melhor o público estão também presentes na disciplina da duração e organização do tempo de trabalho constante do artigo 117.º e seguintes do RCTFP.
15. Como resulta do próprio artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, este diploma veio estabelecer um período normal de trabalho diário e semanal de referência para todos os trabalhadores em funções públicas - nomeados e contratados. A importância de tal período projeta-se quer em relação aos trabalhadores, uma vez que baliza a duração máxima do tempo de trabalho diário e semanal; quer em relação ao funcionamento dos próprios serviços e ao atendimento ao público, porquanto os períodos correspondentes estão correlacionados com o período normal de trabalho (cfr. os artigos 2.º, 3.º e 17.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto; e os artigos 122.º, 123.º e 133.º do RCTFP).
É em função da redefinição de tal período operada pelo artigo 2.º, n.º 1, da citada Lei que, depois, deve ser feita a adaptação dos horários específicos (artigo 2.º, n.º 2); e que são determinadas as alterações a preceitos dependentes, seja do RCTFP (artigo 3.º), seja do Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto (artigo 4.º). Não por acaso, aquele período é referido como “período normal de trabalho de referência” (artigo 2.º, n.º 2). Com efeito, o RCTFP e o Decreto-Lei n.º 259/98 consagram diversos mecanismos de organização do tempo de trabalho que permitem adequar o tempo de trabalho às variações registadas quanto às necessidades dos serviços (v.g. a adaptabilidade e o banco de horas).
Em especial, no tocante à definição do limite máximo do tempo de trabalho diário e semanal, importa considerar, em primeiro lugar, que da conjugação do citado período normal de trabalho de referência previsto no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013 com o n.º 3 do mesmo preceito, só resulta que esse limite máximo não é rígido e fixo, dado que a fixação do período normal de trabalho em oito horas por dia e quarenta horas por semana não prejudica a previsão, por diploma próprio, de períodos superiores.
Para além disso, e considerando especificamente o regime do Decreto-Lei n.º 259/98, verifica-se que o citado período normal de trabalho corresponde à duração máxima do período normal de trabalho diário, não podendo o trabalho extraordinário – que é, em regra, de prestação obrigatória (artigo 26.º, n.os 2 e 3) – exceder duas horas por dia nem determinar um período de trabalho diário superior a nove horas (cfr. os artigos 8.º, n.º 1, e 27.º, n.os 1 e 2). Os horários flexíveis e rígidos tomam em consideração o período normal de trabalho diário (cfr. os artigos 16.º, n.os 3 e 5, e 17.º, n.º 2). Quanto à duração semanal do trabalho, rege o artigo 7.º, que prevê quarenta horas (nova redação do n.º 1), sem prejuízo da admissão de regimes de duração semanal inferiores (cfr. o n.º 2).
Já no que se refere ao regime do RCTFP, o respetivo artigo 126.º, n.º 1, estabelece que o período normal de trabalho diário é de oito horas por dia e quarenta horas por semana. Os limites máximos da duração do trabalho extraordinário são fixados com referência ao período normal diário (cfr. o artigo 161.º, n.º 1). Além disso, prevê-se um regime de flexibilização do tempo de trabalho similar ao regulado no Código do Trabalho. Essa previsão é, basicamente, a de um regime flexível de tempo de trabalho, constando do artigo 127.º e seguintes do RCTFP. Mas também esse regime está submetido a limites máximos, diários e semanais. Na verdade, o que releva é o cálculo do período de trabalho em termos médios, num período pré-determinado. O período normal de trabalho pode, deste modo, deixar de ser igual em todos os dias e em todas as semanas do ano, sendo antes adaptado às necessidades do serviço, de modo a dosear o esforço e a disponibilidade exigidos aos trabalhadores em função do interesse público. Consequentemente, e em regra, o trabalhador poderá prestar mais horas de trabalho num determinado dia ou semana, desde que noutro dia ou semana trabalhe menos, de modo a que a média do tempo de trabalho num período pré-definido – o «período de referência» (cfr. o artigo 128.º do RCTFP) – não ultrapasse um limite máximo fixado a partir da duração do período normal de trabalho de referência.
Pode, assim, concluir-se que, dentro do regime «normal» de duração de trabalho, o limite máximo é o fixado no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013. Esse limite só pode ser excedido pelos mecanismos de flexibilização taxativamente fixados na lei. E, mesmo o regime «extraordinário» de duração de trabalho é balizado em função da duração do tempo de trabalho «normal». Por isso, ainda que a normação aplicável aos trabalhadores em funções públicas não contenha a indicação de um limite expressamente designado como limite máximo (absoluto), de forma alguma pode sustentar-se que existe na ordem jurídica portuguesa um vazio legal, facultativo de um livre poder decisório da Administração, enquanto empregador: o período normal de trabalho de referência fixado no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2013 é um período que não pode ser excedido, pelo que a sua duração baliza simultaneamente um limite máximo da duração do tempo de trabalho, ressalvados os casos em que diploma próprio venha fixar períodos de maior duração (cfr. o n.º 3 do citado artigo 2.º). Tal período funciona, assim, como um patamar (ou como uma «bitola») em função do qual se apuram os diferentes limites máximos da duração do tempo de trabalho. Nesse sentido, é correta a metáfora de que se socorre o requerente: o disposto no n.º 1 do artigo 2.º daquela Lei representa “a âncora em torno da qual todos esses regimes secundários giram”; toda a “regulamentação do tempo de trabalho tem o seu epicentro na norma que, hoje, fixa o período normal de trabalho em oito horas por dia e em quarenta horas por semana”.
Ou seja, no que respeita aos trabalhadores em funções públicas – nomeados e contratados -, a ordem jurídica portuguesa estabelece, a partir da referência do período normal de trabalho fixado no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2013, limites máximos, quer do período normal de trabalho, quer dos períodos previstos em regimes especiais, como é o caso do banco de horas, da adaptabilidade individual ou da adaptabilidade grupal, quer ainda da duração do trabalho extraordinário. Nem outra coisa seria admissível, não só em face do imperativo constitucional constante do artigo 59.º, n.º 2, alínea d), como também do disposto na Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho. Esta Diretiva é aplicável, à luz do seu artigo 1.º, n.º 3, “a todos os sectores de atividade, privados e públicos”. E, nos termos do seu artigo 6.º, alínea b), a duração média do trabalho em cada período de sete dias não pode exceder as 48 horas, incluindo as horas extraordinárias.
16. Decorre do exposto, que a definição do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, enquanto termo de referência para a fixação dos limites máximos da duração do tempo de trabalho de tais trabalhadores, é um aspeto nuclear e estruturante do regime próprio da relação de emprego público, quer em razão da sua importância para os próprios trabalhadores, em especial devido à conexão com os seus direitos fundamentais à saúde, à conciliação da atividade profissional com a vida familiar, ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho e ao descanso semanal – artigo 59.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), e n.º 2, alínea b), da Constituição); quer como condição relevante para garantir a eficácia, eficiência e qualidade da ação da Administração na prossecução do interesse público (artigo 266.º, n.º 1, da Constituição). Como tal, aquela definição constitui uma «base do regime da função pública», nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição. Assim, o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013, ao estabelecer ele próprio um período normal de trabalho de referência aplicável apenas aos trabalhadores da Administração Pública da Região Autónoma dos Açores, está a disciplinar uma matéria que integra a reserva de competência legislativa da Assembleia da República. Consequentemente, aquele preceito do Decreto n.º 22/2013 é organicamente inconstitucional, conforme sustenta o requerente.
B.2. A violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias
17. A mencionada interferência do limite máximo da duração do tempo de trabalho em função do estabelecimento de um período normal de trabalho de referência com os citados direitos dos trabalhadores, em especial os referidos pelo requerente no seu pedido – o direito ao repouso e o direito a um limite máximo da jornada de trabalho (artigo 59.º, n.º 1, alínea d), da Constituição) – justifica a análise do segundo vício de inconstitucionalidade invocado: sendo tais direitos análogos a direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, devido à sua determinabilidade material logo ao nível dos preceitos constitucionais que os consagram, ocorre uma violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República quanto à conformação normativa desta segunda categoria de direitos prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
Com efeito, e diferentemente do que parece entender a ALRAA, não vem questionada a violação dos direitos ao repouso e a um limite máximo da jornada de trabalho pelo Decreto n.º 22/2013; a questão suscitada pelo requerente é apenas a da legitimidade constitucional da ALRAA para aprovar um diploma contendo disciplina inovatória sobre os citados direitos.
A resposta a tal questão passa, assim: (i) por confirmar que aquele Decreto interfere com os citados direitos dos trabalhadores; (ii) em caso afirmativo, por esclarecer se os mesmos direitos possuem uma natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias; e (iii) igualmente em caso afirmativo, por determinar se a matéria dos direitos fundamentais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias integra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição).
18. O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a matéria das condições e dos limites da duração do trabalho – na altura, a propósito dos limites de duração do «trabalho suplementar» -, concluindo tratar-se de matéria cuja disciplina legislativa incumbia aos órgãos da República. Com efeito, entendeu-se no Acórdão n.º 212/92, além do mais, que:
- O carácter unitário do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses exigem que a legislação sobre matéria com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos seja produzida pelos órgãos de soberania (Assembleia da República ou Governo), devendo ser estes a introduzir as especialidades ou derrogações que se mostrem necessárias, designadamente, por, no caso, concorrerem interesses insularmente localizados; e
- A fixação das condições e dos limites da duração do trabalho suplementar é um daqueles domínios em que a Constituição reclama a intervenção do legislador nacional, pelo que não podem as assembleias legislativas regionais editar, validamente, normação sobre esta matéria; e ainda
- Acresce que neste particular domínio resulta do artigo 59.º, n.º 2, alínea b), da Constituição, que incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente a fixação a nível nacional, dos limites da duração do trabalho.
Neste aresto a natureza destes direitos foi abordada, mas o Tribunal não tomou nenhuma decisão sobre a mesma:
« [N]o particular domínio da matéria em causa, resulta do disposto no artigo 59.º, n.º2, alínea b), da Constituição, que incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente “a fixação a nível nacional, dos limites da duração do trabalho”.
Independentemente da questão de saber se todos os direitos dos trabalhadores reconhecidos naquele preceito (sejam dirigidos contra as entidades patronais, sejam dirigidos ao Estado) dispõem de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (e a resposta haveria de ser certamente negativa), deve dizer-se que a fixação dos limites da duração do trabalho, no caso, a fixação das condições de prestação e dos limites quantitativos da duração do trabalho suplementar (e estas duas realidades interpenetram-se entre si), há-de pertencer aos órgãos da República.»
19. A doutrina de uma «reserva legislativa da República ou do Estado» implícita e referente a matérias que, apesar de não se encontrarem identificadas nas listas dos artigos 164.º e 165.º da Constituição, ainda assim, e devido a extravasarem o âmbito regional, devem ser objeto de legislação emanada pelos órgãos de soberania, permanece válida, mesmo depois da sexta revisão constitucional (2004), que alargou significativamente o âmbito objetivo possível da competência legislativa primária das regiões autónomas (cfr., em especial, os Acórdãos n.os 258/2007, 423/2008 e 304/2011). No entanto, a sua aplicabilidade só deve ser equacionada depois de se verificar que não têm aplicação as reservas de competência legislativa da Assembleia da República expressamente consagradas no texto constitucional.
In casu tal implica uma apreciação da natureza dos direitos ao repouso e a um limite máximo da jornada de trabalho – são estes os direitos que o requerente reputa análogos aos direitos, liberdades e garantias, para o efeito de considerar a fixação da duração máxima do período normal de trabalho como uma matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República - previstos no artigo 59.º, n.º 1, alínea d), da Constituição. O pressuposto desta análise – já demonstrado a propósito da respetiva qualificação como base do regime da função pública – é o de que o artigo 3.º n.º 1, do Decreto n.º 22/2013, ao fixar um período normal de trabalho de referência, estabelece simultaneamente os limites máximos da duração do tempo de trabalho dos trabalhadores da Administração Pública da Região Autónoma dos Açores.
No sentido da exigência da análise da natureza daqueles direitos concorre igualmente a circunstância, já referida, de que a incumbência do Estado de assegurar, a nível nacional, os limites da duração do trabalho referida no artigo 59.º, n.º 2, alínea b), da Constituição é instrumental relativamente aos direitos fundamentais previstos no n.º 1, alíneas a) e d), do mesmo artigo, (cfr. supra o n.º 7, em especial, as referências a Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, cit., anot. XI ao artigo 59.º, p. 776; e Rui Medeiros em Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, cit., anot. XXI ao artigo 59.º, p. 1165).
20. Liminarmente importa recordar que, como referido no Acórdão n.º 154/2010, e sem prejuízo de uma situação estatutária com um denominador comum a todos os trabalhadores em funções públicas, a substituição no artigo 269.º da Constituição da locução «funcionários e agentes» pela de «trabalhadores da Administração Pública» operada na sequência da primeira revisão constitucional visou deixar claro que são também aplicáveis àqueles trabalhadores os direitos fundamentais previstos para os demais trabalhadores. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 474/2002:
«[A]ssinale-se que o artigo 59.º da Constituição tem como destinatários todos os trabalhadores, abrangendo também, obviamente, os trabalhadores da Administração Pública – designação expressamente usada no artigo 269.º da Lei Fundamental. Aliás neste sentido se pronunciam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição..., citada, nota III ao artigo 53.º, 286), como resulta do passo onde indicam que os “direitos previstos neste capítulo (bem como no artigo 59.º) são direitos específicos dos trabalhadores, e só a eles são constitucionalmente reconhecidos e garantidos. Saber qual é a noção constitucional de trabalhador é, por isso, de importância primordial. Não contendo a Constituição nenhuma definição expressa, o conceito há-de ser definido a partir do conceito jurídico comum, sem prejuízo das qualificações que a Constituição exigir. Haverá por isso de considerar-se trabalhador para efeitos constitucionais o trabalhador subordinado, ou seja, aquele que trabalha ou presta serviços por conta e sob direção e autoridade de outrem, independentemente da categoria deste (entidade privada ou pública) e da natureza jurídica do vínculo (contrato de trabalho privado, função pública etc.). Estão assim seguramente abrangidos pelo conceito os funcionários públicos («trabalhadores da Administração Pública», é a expressão utilizada no art. 269.º)”.»
E são várias as decisões em que o Tribunal fez aplicação desta doutrina, mormente no que se refere ao direito à segurança no emprego (artigo 53.º da Constituição): v., entre outros, os Acórdãos n.os 285/92, 295/92, 4/2003, 302/2009, 76/2013 e 474/2013.
21. A inter-relação do período normal de trabalho de referência fixado pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013 com os direitos ao repouso e a um limite máximo da jornada de trabalho é óbvia, já que a delimitação recíproca do tempo de trabalho (qualquer período durante o qual o trabalhador está a desempenhar a atividade ao serviço do empregador ou permanece adstrito à realização de tal prestação, incluindo as interrupções e os intervalos legalmente previstos) e do período de descanso (todo aquele período de tempo que não seja «tempo de trabalho»), assim como a definição dos limites à duração do trabalho diário e semanal pressupõem a fixação de um período normal de trabalho, entendido como “o tempo de trabalho que o trabalhador se obriga a prestar, medido em número de horas por dia e por semana” (cfr. o artigo 120.º do RCTFP; v. também, nos artigos 117.º, 119.º e 126.º do mesmo diploma, as noções legais dos conceitos referidos no texto; por outro lado, os mecanismos de flexibilização do tempo de trabalho tomam como referência precisamente o «período normal de trabalho» – cfr. ibidem o artigo 127.º e seguintes; cfr., finalmente, a disciplina homóloga constante dos artigos 7.º e 8.º do Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto).
De resto, a simples leitura dos artigos do RCTFP e do Decreto-Lei n.º 259/98 que são objeto de alteração, respetivamente, pelos artigos 3.º e 4.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, em consequência da redefinição do período normal de trabalho de referência operada pelo artigo 2.º, n.º 1, da mesma Lei – e que o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013 visa afastar relativamente à Administração Pública regional – é, só por si, elucidativa.
22. A Constituição da República Portuguesa funda-se na dignidade da pessoa humana, pelo que não pode surpreender a atenção e o desenvolvimento que concede aos direitos dos trabalhadores, direitos decorrentes da dignidade do trabalho enquanto atividade concebida como destinada a prover às necessidades de uma vida digna. O Tribunal Constitucional tem por isso sublinhado – como, por exemplo, no Acórdão n.º 368/97 - que a permanente disponibilidade do trabalhador para acorrer a uma qualquer solicitação decorrente da sua atividade profissional consubstanciaria uma privação do período de autodeterminação e de descanso, constitucionalmente inadmissível:
« Com efeito, o dever principal que cabe ao trabalhador por força da celebração do contrato de trabalho não compreende apenas o desenvolvimento da atividade laboral, abrange também o seu estado de disponibilidade, para o recebimento de uma concreta indicação no sentido do exercício de uma qualquer prestação conexa com o trabalho devido […].
Assim, esta disponibilidade do trabalhador tem de ter uma dimensão temporal, o que significa que tem de ter limites, nomeadamente um limite máximo.»
Deste modo, e considerando a respetiva função de referência para a definição dos limites máximos da duração do tempo de trabalho (cfr. supra o n.º 15), ao estatuir sobre o período normal de trabalho, o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013 a ALRAA está, desde logo e num primeiro momento, a editar uma norma concretizadora do conteúdo dos direitos ao repouso e a um limite máximo da jornada de trabalho, indispensável ao seu exercício efetivo.
23. Os direitos em apreço, embora previstos num preceito relativo aos direitos económicos dos trabalhadores – o artigo 59.º, n.º 1, alínea d), da Constituição - têm sido considerados pela jurisprudência constitucional como análogos aos direitos, liberdades e garantias, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º da Constituição (cfr. os Acórdãos n.os 373/91, 368/97 e 635/99). E a doutrina tem apoiado tal entendimento (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, cit., anots. I e VI ao artigo 59.º, p. 770 e pp. 773-774); Rui Medeiros em Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, cit., anot. XIII ao art. 59.º, p. 1157; e Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 187).
A primeira função dos direitos fundamentais, em especial dos direitos, liberdades e garantias, é a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes públicos e de outros esquemas políticos coativos (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, p. 407). Essa função de direitos de defesa é cumprida, num plano jurídico-subjetivo, mediante a atribuição do “poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)” (v. Gomes Canotilho, ibidem, p. 408; sobre o «estatuto constitucional» dos cidadãos fundado na titularidade de direitos fundamentais e as respetivas dimensões negativa e positiva, subjetiva e objetiva, – a «natureza dupla» (Doppelcharakter) dos direitos fundamentais -, cfr. Konrad Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 20. Aufl., C.F. Müller, Heidelberg, 1995, p. 127 e seguintes). Nesse sentido, pode afirmar-se, com Vieira de Andrade, que os direitos, liberdades e garantias se caracterizam “por terem uma função primária de defesa da autonomia pessoal, ainda que […] a própria função de defesa e sobretudo a necessária proteção e a adequada promoção dos direitos impliquem prestações estaduais positivas, [que] constituem dimensões instrumentais, ao passo que nos direitos económicos, sociais e culturais constituem o respetivo conteúdo principal” (v. Autor cit., ob. cit., p. 174).
E este Autor prossegue:
« [O] recorte do âmbito de aplicação do regime de direitos, liberdades e garantias deve justamente ter em conta os elementos característicos desse regime, na medida em que revelam a sua razão de ser. E, nesta perspetiva, são particularmente significativas as disposições que, no artigo 18.º [da Constituição], estabelecem a aplicabilidade direta dos direitos, liberdades e garantias e impõem, como limite material ao poder de restrição do legislador ordinário, o conteúdo essencial dos direitos: estas disposições pressupõem que o conteúdo dos direitos respetivos é determinado pelos próprios preceitos constitucionais. [Assim,] ao estabelecer dois regimes diferentes para os direitos fundamentais, a Constituição pressupõe dois tipos de direitos: aqueles cujo conteúdo principal é essencialmente determinado ou determinável ao nível das opções constitucionais e aqueles outros cujo conteúdo principal terá de ser, em maior ou menor medida, determinado por opções do legislador ordinário, ao qual a Constituição confia poderes de determinação ou concretização. […]
Do que se trata é, então, de surpreender uma diversidade de convicção (determinação) na intenção normativa dos direitos fundamentais: em relação a alguns deles, deve entender-se que as normas constitucionais são capazes de fornecer todos os elementos e critérios necessários e suficientes para a sua aplicação, ou seja, os direitos são determinados por opções constitucionais; em relação a outros, só a intervenção autónoma do legislador ordinário pode definir o seu conteúdo, concretizando os preceitos respetivos e desenvolvendo assim a intenção normativa em termos de produzir direitos certos e determinados.
[A] linha de separação introduzida por este critério leva a incluir no âmbito de aplicação do regime dos direitos, liberdades e garantias, além dos direitos a abstenções, imediatamente aplicáveis, os direitos (faculdades) a prestações que tenham por objeto um comportamento estadual que possa dizer-se de execução vinculada da Constituição; pelo contrário, exclui os direitos a prestações materiais ou jurídicas a que corresponda um comportamento mais ou menos livre do legislador, enquanto poder estadual autónomo.» (v. ibidem, pp. 175-177).
Daí que a analogia de natureza a estabelecer nos termos do artigo 17.º da Constituição respeite, segundo o mesmo Autor, cumulativamente a dois elementos: “tratar-se de uma posição subjetiva individual […] e poder essa posição subjetiva […] ser determinada a um nível que seja considerado materialmente constitucional” (v. ibidem, p. 186). A determinação ou determinabilidade “significam apenas uma densidade essencial autónoma ao nível constitucional, que exclui a liberdade de conformação política pelo legislador do conteúdo principal” do direito em causa – mas já não a interpretação concretizadora jurisprudencial (v. idem, ibidem, p. 178; no mesmo sentido essencial, v. também, o critério estrutural proposto por Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, cit., anot. II ao art. 17.º, p. 304).
Precisando o critério da determinabilidade ao nível constitucional dos direitos fundamentais a que é aplicável o regime dos direitos, liberdades e garantias, refere ainda Vieira de Andrade:
« [Tal] determinação ou determinabilidade ao nível constitucional não significa, no entanto, que haja uma suficiência incondicional dos preceitos constitucionais relativos aos direitos, liberdades e garantias. Ao invés, a intervenção legislativa é indispensável […] para a acomodação, proteção e promoção dos direitos e pode sê-lo, em grau maior ou menor, para assegurar procedimentalmente o seu exercício ou até para concretizar o respetivo conteúdo.
A determinação ou determinabilidade significam apenas uma densidade essencial autónoma ao nível constitucional, que exclui a liberdade de conformação política pelo legislador do conteúdo principal dos direitos, liberdades e garantias.» (v. ibidem, pp. 177-178).
Com efeito, uma coisa é a “necessidade de uma concretização jurídico-política da Constituição ou de uma conformação do conteúdo dos direitos fundamentais” a prestações materiais ou jurídicas; outra coisa é serem prestações desse tipo “necessárias ou indispensáveis ao exercício efetivo dos direitos de participação política (designadamente do direito de voto) ou de direitos de liberdade, em especial nos direitos dependentes de um procedimento. Por exemplo, […] no nosso sistema, o legislador não pode decidir se estabelece, ou não, um horário máximo de trabalho diário […]. Em todos estes casos, a Constituição vincula apertadamente o legislador e, expressa ou implicitamente, determina no essencial as soluções que este deve consagrar. Não está, assim, em causa apenas […] a obrigatoriedade da intervenção legislativa, mas também sobretudo o grau de determinação do conteúdo da intervenção legislativa organizadora ou prestadora, ou seja a sua vinculação. [Trata-se, nestes casos,] de «atos legislativos constitucionalmente devidos», que configuram uma concretização jurídico-interpretativa da Constituição” (assim, v. Vieira de Andrade, ibidem, pp. 181-183).
No mesmo sentido, também já decidiu este Tribunal no Acórdão n.º 373/91:
« As normas dos artigos 9.º (conceito e modalidades de retribuição), 13.º (duração do trabalho), 15.º (descanso semanal) e 16.º (direito a férias) [- todos do diploma então sob fiscalização, o Decreto aprovado pelo Conselho de Ministros, respeitante ao regime jurídico do serviço doméstico, alterando o Decreto-Lei n.º 508/80, de 21 de outubro] constituem o segundo dos blocos normativos autonomizados por conveniências metodológicas.
Todas elas têm de comum respeitarem a«direitos sociais», vinculativos para o legislador que lhes deve dar execução,«concretizando-os».
Também outros traços comuns lhe assistem: consagram direitos constitucionalmente reconhecidos (artigo 59.º, n.º1, alíneas a) e b), da CR), cuja mediação legislativa não lhes retira a aplicabilidade directa, são vinculativos genericamente, só podem ser restringidos por lei nos casos expressamente previstos na Lei Fundamental e à luz de interesses públicos constitucionalmente relevantes, restrições essas de carácter geral e abstracto, em princípio, sem efeitos retroactivos e, de qualquer modo, sempre proporcionadas e adequadas.
Os preceitos citados respeitam, em primeira linha, ao direito à retribuição do trabalho, ao direito a um limite máximo da jornada de trabalho, ao direito a descanso semanal e a férias periódicas, sendo certo que a doutrina constitucionalista nacional os elenca como «direitos análogos» com impressivo consenso: v. g., Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., Coimbra, 1984, pp. 129 e 322, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 1988, pp. 143 e 144, e Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 212.
Estes direitos são dotados de um núcleo essencial intocável que, nessa dimensão, se configura como uma verdadeira garantia, pelo que, ao menos no que a esse núcleo se refere, não se vê motivo bastante para nos afastarmos da posição expressa da doutrina quanto à sua qualificação como «direitos análogos»aos «direitos, liberdades e garantias» […].» (itálicos aditados)
Esse núcleo essencial traduz-se, no que se refere aos direitos invocados pelo requerente, na delimitação positiva da duração máxima do trabalho diário e semanal. Tal delimitação pode variar quantitativamente – mais ou menos horas -, mas a mesma não pode deixar de existir – o legislador tem de fixar, direta ou indiretamente, um número máximo de horas de trabalho diário e semanal – e ser definida em termos razoáveis – a duração máxima do tempo de trabalho tem de possibilitar, no mínimo, o repouso diário e semanal e deixar ainda tempo livre destinado à realização pessoal do trabalhador e à vida familiar. Quanto ao núcleo essencial assim definido, existe manifestamente uma analogia com outros direitos fundamentais qualificados como direitos, liberdades e garantias (como, por exemplo, o direito à segurança no emprego: neste caso, também se exige que na disciplina normativa do despedimento com justa causa o legislador acautele o valor constitucional da segurança no emprego).
24. Esta analogia substancial entre direitos fundamentais expressamente qualificados pela Constituição como «direitos, liberdades e garantias» e os «direitos fundamentais de natureza análoga» a que se refere o artigo 17.º da mesma Lei Fundamental – ao menos quando uns e outros constem da própria Constituição – justifica a aplicação aos segundos não só do regime material dos primeiros, como também do respetivo regime orgânico-formal, em especial no que se refere à reserva de competência legislativa da Assembleia da República prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição (nesse sentido, v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, cit., anot. IV ao artigo 17.º, pp. 372-373; e Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa, cit., p. 187).
O entendimento consolidado deste Tribunal vai igualmente no sentido da amplitude máxima da reserva de competência parlamentar ínsita na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, de modo a abranger também os direitos análogos do artigo 17.º: cfr., por exemplo, os Acórdãos n.os 373/91 (respeitante, entre outros, ao direito à jornada máxima de trabalho e ao direito ao descanso semanal), 231/2000, 563/2003 e 258/2006. Veja-se igualmente a reafirmação de tal entendimento no Acórdão n.º 75/2013: “a jurisprudência consolidada deste Tribunal (a título de exemplo, ver os Acórdãos n.º 329/99, n.º 187/01, n.º 491/02, n.º 358/05 e n.º 304/10) […], que se reitera, entende que a redação daquela norma de reserva relativa abrange igualmente os «direitos análogos»”.
25. O artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013, ao estabelecer o período normal de trabalho de referência aplicável aos trabalhadores da Administração Pública da Região Autónoma dos Açores, define um novo patamar a partir do qual são fixados os limites temporais do direito ao repouso e o limite máximo da jornada de trabalho aplicável a esses trabalhadores. Ou seja, aquele diploma vem inovar quanto à definição legislativa do conteúdo principal desses dois direitos, os quais, como referido, têm natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Por isso, a conformação do respetivo conteúdo principal só pode ser feita por lei ou decreto-lei autorizado (cfr. os artigos 165.º, n.º 1, alínea b), e 227.º, n.º 1, alínea b), ambos da Constituição). Consequentemente, também por esta perspetiva se confirma a inconstitucionalidade orgânica imputada pelo requerente àquele diploma regional.
C) Consequências do juízo de inconstitucionalidade relativo ao artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013
26. Considerando a relação de precedência dos vícios de inconstitucionalidade arguidos pelo requerente relativamente à mesma dimensão normativa do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013, verifica-se que a procedência das inconstitucionalidades orgânicas por violação do artigo 165.º, n.º 1, da Constituição, prejudica o interesse no conhecimento das demais inconstitucionalidades arguidas (cfr. supra o n.º 7).
27. Por outro lado, a inconstitucionalidade do citado artigo 3.º, n.º 1, importa não só a inconstitucionalidade consequente dos n.os 2 e 3 do mesmo artigo - que expressamente se lhe referem, pressupondo-o -, como, atenta a centralidade daquele preceito na economia de todo o diploma, também a inconstitucionalidade consequente dos demais artigos do Decreto n.º 22/2013 (cfr. supra o n.º 6).
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013, aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, em 21 de outubro de 2013, enviado para assinatura ao Representante da República para a Região Autónoma dos Açores, por violação das alíneas b) e t) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição;
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade consequente das restantes normas do mesmo diploma.
Lisboa, 21 de Novembro de 2013. Pedro Machete – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro (votei a inconstitucionalidade da norma por violação, quer do parâmetro retirado da alínea t) do n.º 1 do Art.º 165º, quer do parâmetro dado pela alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 165º da CRP. Todavia, neste último caso, sem subscrever, na íntegra, a fundamentação, da qual, pontualmente, me afastaria). – Maria José rangel de Mesquita – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral – Lino Rodrigues Ribeiro – Carlos Fernandes Cadilha (com declaração de voto) – Ana Guerra Martins (com declaração de voto) – Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Pronunciei-me no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 3º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013, mas por considerar que estava aí em causa matéria reservada à intervenção do legislador nacional que não poderia ser regulada em sentido divergente pela Assembleia Legislativa Regional.
É desde logo discutível que a fixação do horário de trabalho para os trabalhadores da Administração Pública constituía, em si, um aspeto estruturante e nuclear da relação jurídica de emprego público, em termos de poder ser incluído nas bases do regime e âmbito da função pública para efeito de integrar a reserva de competência legislativa da Assembleia da República em aplicação do disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea t), da Constituição da República.
A lei de bases da função pública foi instituída, mais recentemente, pela Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, que regula as formas de constituição e cessação da relação de emprego público, o regime de carreiras, incluindo os aspetos atinentes ao recrutamento e aos mecanismos de mobilidade, bem como o respetivo sistema retributivo, mas que é inteiramente omissa quanto ao período normal de trabalho. Poderia dizer-se que constituem igualmente bases do regime da função pública as matérias cuja regulamentação a Constituição remete diretamente para a lei, aí podendo incluir-se os direitos dos trabalhadores a que se refere o artigo 59º da Lei Fundamental, onde se faz expressa menção ao direito ao limite máximo da jornada de trabalho e ao descanso semanal (alínea d) do n.º 1). No entanto, as normas e princípios constitucionais sobre as condições de trabalho não podem deixar de ser tidas também como referência para a delimitação positiva do direito de contratação pública, enquadrando o núcleo duro típico das matérias que constituirão o objeto próprio das convenções coletivas (VIEIRA DE ANDRADE/FERNANDA MAÇÃS, Contratação Coletiva e Benefícios Complementares de Segurança Social, Scientia Ivridica, Maio-Agosto de 2001, Tomo L, n.º 290, pág. 34). Nesse sentido aponta ainda o artigo 81º, n.º 2, da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, que, por remissão para a lei, identifica os acordos coletivos de trabalho como fonte normativa do contrato de trabalho em funções públicas, relativamente a aspetos relativos aos direitos e deveres recíprocos dos trabalhadores e das entidades empregadoras, em que deverá incluir-se necessariamente a duração do horário de trabalho (artigo 348º, alínea c), do Regime de Contrato em Funções Públicas), e que, na prática, tem sido sistematicamente objeto de contratação coletiva entre entidades empregadoras públicas e associações sindicais representativas de trabalhadores da Administração Pública (cfr., a título de exemplo, o acordo coletivo de trabalho n.º 1/2013 celebrado entre a Direção-Geral da Administração e Emprego Público e a Federação dos Sindicatos da Administração Pública).
Poderia contrapor-se que a contratação coletiva se encontra condicionada pela reserva de lei em matéria de regime e âmbito da função pública, e, definindo o legislador um certo estatuto legal sobre certos aspetos da relação jurídica de emprego, essa disciplina legal já não poderia ser alterada por via da celebração de acordos coletivos de trabalho. O ponto é que a opção jurídica fundamental que o legislador parlamentar poderia ter adotado no uso da competência legislativa definida na alínea t) do n.º 1 do artigo 165º da CRP foi já efetivada através da generalização do contrato de trabalho como modalidade de constituição da relação de emprego público e da consequente subordinação dos trabalhadores em contrato de trabalho em funções públicas a um regime de vinculação mais flexível do que aquele que decorria do anterior regime-regra de nomeação – e equiparável ao da relação laboral de direito privado –, e que pressupõe que aos trabalhadores contratados deva ser reconhecido o direito de contratação coletiva com uma certa dimensão material, que compreende a competência para a regulação de determinadas matérias, com a consequente proibição dessas matérias serem disciplinadas por normas estatutárias imperativas. E nessa reserva de contratação não pode deixar de incluir-se o horário normal de trabalho.
Neste pressuposto, não pode considerar-se como base um certo aspeto da regulamentação jurídica da função pública que o próprio sistema encara como sendo reconduzível a esquemas convencionais de autoregulação coletiva bilateral e que, como tal, não pode integrar o estatuto legal do trabalhador por efeito de uma definição legislativa unilateral.
O que sucede é que existe uma imposição constitucional de fixação do limite máximo da jornada de trabalho dirigida ao legislador (artigo 59º, n.º 1, alínea d)), que não pode deixar de ser aplicada à generalidade dos trabalhadores, independentemente do seu regime de subordinação jurídica, e que terá de revestir um âmbito nacional, e não apenas regional, local ou sectorial (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, Coimbra, pág. 776). E, nesse plano, independentemente da questão de saber se todos os direitos dos trabalhadores reconhecidos naquele preceito (sejam dirigidos às entidades patronais, sejam dirigidos ao Estado) dispõem de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, deve entender-se que a fixação dos limites quantitativos da duração do trabalho há de pertencer aos órgãos legislativos da República.
Acresce que o alargamento e uniformização do horário de trabalho na Administração Pública instituído pela Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, como resulta da respetiva exposição de motivos, corresponde a uma reforma estrutural destinada a estabelecer regras comuns para os trabalhadores do setor público, em convergência com o regime do setor laboral privado, e é justificada por razões de prossecução do interesse público em que releva o incremento da produtividade, a diminuição do custo do trabalho, a melhoria da prestação de serviços aos cidadãos, e que surge também enquadrada pela atual situação de emergência económica e financeira. Neste contexto, o que está em causa não é tanto a essencialidade do novo regime legal, mas a necessidade de uma aplicação uniforme em todos os serviços e organismos da Administração Pública, independentemente da sua localização geográfica ou dependência institucional, o que também justifica, por si, a intervenção do legislador nacional.
Nestes termos, e em conformidade com o que também se decidiu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 212/92, em caso similar, consideraria existir inconstitucionalidade orgânica por violação dos artigos 112º, n.º 4, e 227º, n.º 1, alínea a), da Constituição, por se tratar de reserva de competência implícita dos órgãos de soberania.
Lisboa, 21 de novembro de 2013
Carlos Fernandes Cadilha
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão de inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto n.º 22/2013, aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, em 21 de outubro de 2013, enviado para assinatura ao Representante da República para a Região Autónoma dos Açores, bem como a inconstitucionalidade consequente das restantes normas do mesmo diploma, não acompanhando, no entanto, a fundamentação constante do Acórdão.
I – Ao contrário do que aí se sustenta, considero que a duração do período normal de trabalho dos trabalhadores da Administração Pública não é uma matéria que se deva incluir na reserva de competência legislativa da Assembleia da República expressamente consagrada na alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição – «bases do regime e âmbito da função pública» – por três razões:
a) O conceito constitucional de lei de bases, do ponto de vista formal;
b) A Jurisprudência do Tribunal relativa às bases do regime da função pública;
c) A exclusão, pelo próprio legislador, da duração do período normal de trabalho da reserva relativa da Assembleia da República.
Começando pelo conceito constitucional de lei de bases, deve notar-se que a Constituição, do ponto de vista formal, define implicitamente a lei de bases como um acto legislativo que é pressuposto de outro acto legislativo – o decreto-lei de desenvolvimento – o qual se lhe subordina (artigo 112.º, n.º 2). Por ser pressuposto normativo necessário de outro acto legislativo, a lei de bases tem valor reforçado (artigo 112.º, n.º 3, da CRP).
Ora, o Tribunal tem vindo a entender que a ausência de remissão para futura lei de desenvolvimento, no texto da lei em causa, evidencia – com particular clareza – a ausência de natureza de “lei de bases”. É que, se uma lei dispensa a existência de lei futura que a desenvolva, isso significa que a mesma se encontra dotada de particular densidade normativa, ao ponto de não se limitar a uma mera fixação de “princípios básicos fundamentais”. Nesse sentido, o Acórdão n.º 620/2007 afirmou expressamente:
«Como vem sendo reconhecido, a Constituição não define o que são leis de bases (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 493/05). No caso de a lei se não autoqualificar como tal, são de presumir como leis de bases as leis da Assembleia da República naquelas matérias em que a reserva de lei se limita justamente às bases dos regimes jurídicos previstas no artigos 164º e 165º. Fora desses casos são de qualificar como leis de bases as leis que de facto se limitem aos princípios gerais dos regimes jurídicos e que não devolvam expressamente o seu desenvolvimento para diploma regulamentar, pois então deixa de existir um pressuposto necessário das leis de bases, que é o seu desenvolvimento legislativo. Inversamente, um indício seguro da existência de uma lei de bases é a exigência por ela estabelecida de desenvolvimento ou de regulamentação mediante decreto-lei (nestes precisos termos, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, citada, pág. 508).»
Ora, se analisarmos a Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, verifica-se que a mesma dispensa qualquer regulamentação expressamente ali prevista. Tal decorre, inequivocamente, do elevado grau de densidade e de concretização legislativa que decorre dos seus preceitos. No fundo, ela não se limita à fixação de um quadro-geral de determinação da duração do período de trabalho, antes descendo à definição concreta do tempo exato de prestação laboral. Por outras palavras, nada na Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, indicia que se trata de uma lei de valor reforçado, pressuposto normativo de outro ou outros actos legislativos, na medida em que não se verifica qualquer remissão para futura lei de desenvolvimento.
A Jurisprudência do Tribunal não se atém, contudo, aos aspectos formais do conceito constitucional de lei de bases, tendo procurado densificá-lo materialmente.
No que diz respeito às bases do regime da função pública, o Tribunal disse no Acórdão n.º 468/2010, o que se reitera no presente acórdão:
«O Tribunal tem jurisprudência consolidada no sentido de que a reserva de competência legislativa em matéria de bases do regime e âmbito da função pública – artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição –, se circunscreve à “definição das grandes linhas de inspiração da regulação legal da função pública e a demarcação do âmbito institucional e pessoal da aplicação desse específico regime jurídico. A reserva compreende, assim, o estabelecimento do quadro dos princípios básicos fundamentais daquela regulação, dos seus princípios reitores ou orientadores – princípios esses que caberá depois ao Governo desenvolver, concretizar e mesmo particularizar, em diplomas de espectro mais ou menos amplo – e dos princípios que constituirão, justamente, o parâmetro e o limite deste desenvolvimento, concretização e particularização” (cfr., por todos, Acórdão n.º 184/08). Neste âmbito, matérias reservadas ao Parlamento, salvo autorização ao Governo para sobre elas legislar, devem entender-se aquelas que, num acto legislativo, definam as opções político-legislativas fundamentais cuja concretização normativa se justifique que seja ainda efectuada por via legislativa (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, citado, pág. 755; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 3ª edição, Coimbra, pág. 377; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 261/04).»
De entre as diversas matérias que o Tribunal tem considerado que fazem parte desse núcleo de bases do regime da função públicas, contam-se: i) a definição de categorias; ii) a organização de carreiras; iii) as condições de acesso e de recrutamento e iv) o complexo de direitos e de deveres funcionais universais (cfr., entre muitos outros, os Acórdãos n.º 695/2005, n.º 491/2008, n.º 528/2008, n.º 74/2009 e n.º 302/2009).
O Tribunal nunca considerou, portanto, que a matéria da duração do tempo de trabalho na função pública fizesse parte das bases do regime e âmbito da função pública.
Em meu entender, da Jurisprudência do Tribunal relativa às bases da função pública decorre uma visão bastante restritiva quanto à amplitude da reserva relativa de competência legislativa prevista na alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, tendo-se excluído desta reserva, entre outras matérias, os regimes especiais de suplementos remuneratórios (Acórdão n.º 468/2010); as condições específicas de cessação do contrato administrativo de provimento (Acórdão n.º 74/2009); o regime de destacamento, de requisição e de transferência de trabalhadores da função pública das Regiões Autónomas para a administração direta do Estado (Acórdão n.º 528/2008); o regime de reafetação de funcionários e agentes, em caso de extinção, fusão ou reestruturação de serviços públicos concretos (Acórdão n.º 695/2005) e o regime de incentivos aos dirigentes da Inspeção-Geral de Finanças (Acórdão n.º 491/2008).
Acresce que o Tribunal Constitucional também já apreciou, por diversas vezes, normas constantes de decretos legislativos regionais, com vista a aferir da sua compatibilidade com a reserva de competência parlamentar relativa às bases do regime da função pública, em especial, no que diz respeito a matéria de regime de acesso, recrutamento e de seleção de funcionários públicos. Entre outros, deve ter-se em consideração o Acórdão n.º 246/2010, o qual considerou que a fixação, por via de Estatuto Político-Administrativo da regra de equiparação entre o regime de acesso à qualidade de trabalhador da função pública regional e aquele que se aplica à administração direta do Estado, não atenta contra a reserva relativa às bases do regime da função pública e que não era inconstitucional uma norma que se limita a proceder a um ajustamento temporal dos mecanismos de adaptação do novo regime de acesso à função pública, por concurso, tendo, no entanto, decidido que a transformação do regime de “nomeação definitiva” em regime de “contrato de trabalho por tempo indeterminado”, operado pela Lei n.º 12-A/2008, constituía um “princípio básico geral” do regime da função pública e que, como tal, o decreto regional (então) em causa não poderia desrespeitá-lo, instituindo um regime diferenciado. Além disso, também o Acórdão n.º 265/2011 que as especificidades da administração autónoma regional não invalidam a sujeição a um regime jurídico de âmbito geral e nacional, ainda que se circunscreva à matéria de acesso e recrutamento na função pública.
Por último, deve notar-se que a Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, que fixou a duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas em 40 horas foi aprovada ao abrigo da competência genérica da Assembleia da República, pois aquele ato legislativo invoca a alínea c) do artigo 161º da CRP, ao invés de invocar qualquer reserva de competência legislativa relativa, fosse ela a decorrente da alínea b) ou da alínea t) do n.º 1 do artigo 165º da CRP. E, aliás, o mesmo já havia sucedido com a aprovação das leis por si alteradas, que apenas invocaram a competência genérica parlamentar (vide Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro, que estabelece o estatuto do pessoal dirigente da administração central, regional e local, e da Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, que aprova o regime de contrato de trabalho em funções públicas).
Ora, a invocação da alínea c) do artigo 161º da CRP demonstra que o próprio órgão autor da norma não incluiu as vastas matérias reguladas naqueles diplomas legais como matérias integradas nas “bases do regime e âmbito da função pública”. Caso assim fosse, certamente teria invocado a competente alínea t) do n.º 1 do artigo 165º da CRP.
A confirmar este entendimento, refira-se que o próprio Governo, no âmbito dos Procs. n.º 935/2013 e n.º 962/2013 (de fiscalização sucessiva abstrata da Lei n.º 68/2013), veio apresentar uma “Nota Explicativa”, proveniente do Ministério das Finanças, através da qual procurou demonstrar que a Lei n.º 68/2013 não teria alterado as normas, constantes de outras leis, que “permitem, por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, a redução daqueles limites máximos (…)” (cfr. § 43), visto que a referida lei não impediria “a redução do novo limite máximo de duração de trabalho, continuando a proporcionar, à semelhança do que sucede no setor privado, a manutenção do espaço anteriormente concedido à autonomia coletiva para negociar períodos de trabalho abaixo daqueles limites (v. g. o referido artigo 130.º do RCTFP)” (§§ 47 e 48). Tudo isto para concluir que “já que a imperatividade do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013 não parametriza o comportamento futuro do legislador nem esta lei assume valor reforçado nos termos do artigo 112.º da CRP» (§ 48, sublinhado meu).
Ou seja, a argumentação do órgão proponente da norma naqueles autos veio no sentido de a Lei n.º 68/2013 não poder ser qualificada como uma lei de valor reforçado. Ora, na medida em que o n.º 3 do artigo 112º da CRP determina que são leis de valor reforçado, como já anteriormente se mencionou, aquelas que assumam uma natureza paramétrica – isto é, que “sejam pressuposto normativo de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas” – e que a Jurisprudência e a Doutrina constitucionais nelas incluem as leis de bases, parece que o legislador não quis qualificar as normas da Lei n.º 68/2013 como integrando as “bases do regime da função pública”. Caso assim não fosse, a Lei n.º 68/2013 não podia deixar de ser qualificada como verdadeira “lei de valor reforçado” por conter as bases que, constituindo pressuposto normativo dos demais atos legislativos, por estes deveriam ser respeitadas.
Em suma, a atuação processual do Governo e a atuação legislativa da Assembleia da República apontam igualmente no sentido da ausência de natureza de “bases do regime da função pública” das normas incluídas na Lei n.º 68/2013.
Na verdade, o Tribunal já teve oportunidade de estabelecer uma relação entre a qualificação conferida pelo próprio órgão parlamentar autor da norma e a ausência de natureza de princípios gerais integráveis nas bases das matérias ali reguladas precisamente a propósito da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de janeiro. Assim, afirmou-se no Acórdão n.º 528/2008:
«Ora, a matéria em causa não constitui uma cláusula que deva inscrever-se nas 'opções político-legislativas fundamentais', ou que respeite ao estabelecimento 'do quadro dos princípios básicos fundamentais' da regulação legal da função pública.
E o certo é que ainda recentemente, quando a Assembleia da República aprovou a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, já referida, que estabelece os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas, fê-lo ao abrigo da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, isto é, no exercício da competência legislativa genérica, conforme, aliás, tinha ocorrido com a aprovação da Lei n.º 53/2006, de 7 de Dezembro, (regime comum de mobilidade entre serviços dos funcionários e agentes da administração pública). E quando o Governo legislou especificamente sobre mobilidade entre administração regional e estadual, através do já referido Decreto-lei n.º 85/85, de 1 de Abril (como se disse, revogado pela Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro), fê-lo, também, ao abrigo da competência legislativa genérica definida no artigo 201.º n.º 1 alínea a) da Constituição.
Não pode, portanto, dizer-se que a norma do artigo 80.º do EPARAM discipline matéria relativa a 'bases do regime e âmbito da função pública' abrangida pela reserva prevista no artigo 165.º alínea t) da Constituição, o que significa que não é proibido que essa norma esteja sedeada no EPARAM.»
Acrescente-se ainda – apenas como argumento adjuvante – que a iniciativa do Governo da República, que corresponde à Proposta de Lei n.º 184/XII, a qual pretende instituir um regime geral do trabalho em funções públicas contem um preceito – o artigo 3.º da Lei geral do Trabalho em Funções Públicas anexa à Proposta de Lei n.º 184/XII – que estabelece as bases e âmbito da função pública, com o seguinte teor:
“Constituem normas base definidoras do regime e âmbito do vínculo de emprego público:
a) Os artigos 6.º a 10.º sobre as modalidades de vínculo;
b) Os artigos 13.º a 16.º, relativos às fontes e participação na legislação do trabalho;
c) Os artigos 19.º a 24.º, relativos às garantias de imparcialidade;
d) O artigo 33.º, sobre o procedimento concursal;
e) Os artigos 70.º a 73.º, sobre direitos, deveres e garantias do trabalhador e do empregador público;
f) Os artigos 79.º a 83.º, relativos às disposições gerais sobre estruturação das carreiras;
g) Os artigos 92.º a 100.º, sobre a mobilidade;
h) Os artigos 143.º a 145.º, sobre princípios gerais relativos às remunerações;
i) Os artigos 175.º a 239.º, sobre o exercício do poder disciplinar;
j) Os artigos 244.º a 274.º, relativos à reafectação e requalificação dos trabalhadores;
k) Os artigos 287.º a 312.º, relativos à extinção do vínculo;
l) Os artigos 346.º a 385.º, sobre a negociação coletiva.”
Como facilmente se verifica, deste preceito não consta a fixação do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, pelo que o proponente não parece considerar que essa matéria se inclua nas “bases do regime da função pública”.
Em conclusão, pelos fundamentos expostos, considero que a matéria da duração do período normal de trabalho dos trabalhadores da Administração Pública não se inclui na alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.
II – Considero, igualmente, em sentido oposto ao que se decidiu no Acórdão, que a matéria em apreço não está abrangida pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, essencialmente, porque tenho muitas dúvidas que as normas em apreciação se possam inserir na eventual dimensão análoga a direitos, liberdades e garantias dos direitos ao repouso e a um limite máximo da jornada de trabalho (artigo 59.º, n.º 1, alínea d) da CRP).
É verdade que a reserva relativa de competência parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias abrange tanto a sua restrição como a sua ampliação (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 5ª edição, 2012, p. 469; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4ª edição revista, p. 327). Também é certo que o Tribunal tem entendido que o regime orgânico dos direitos, liberdades e garantias se aplica aos direitos análogos, mas quando se trate de direitos económicos, sociais e culturais que possuam uma dimensão análoga a direitos, liberdades e garantias e outra que não comunga dessa analogia, só a primeira se deve considerar sujeita a reserva parlamentar.
Ora, não me parece nada consensual que os direitos em causa – direito ao repouso e a um limite máximo da jornada de trabalho (artigo 59.º, n.º 1, alínea d) da CRP) – inseridos no Título III relativo aos direitos económicos, sociais e culturais se possam configurar como “direitos análogos a direitos, liberdades e garantias” na sua totalidade, nos termos e para os efeitos do artigo 17.º da CRP.
Na verdade, a dimensão análoga a direitos, liberdades e garantias, de que gozam determinados direitos sociais, económicos e culturais, não abrange toda a amplitude potencial da esfera de proteção normativa do direito análogo em causa. Pelo contrário, essa natureza análoga só abrange a parcela do direito fundamental que beneficia de caraterísticas idênticas às dos direitos, liberdades e garantias. De entre essas caraterísticas contam-se, naturalmente, a dimensão negativa (ou “status negativus”) destes últimos, que reclamam – predominante, ainda que não exclusivamente – uma abstenção de interferência dos poderes públicos face ao seu conteúdo prescritivo de permissão de aproveitamento específico de determinado bem.
Em suma, os poderes públicos devem abster-se de perturbar o exercício desse direito fundamental, sob pena de interferência ilegítima na esfera de proteção normativa que envolve o particular.
A qualificação como direito análogo do direito ao repouso [artigo 59º, n.º 1, alínea d), da CRP] não implica que toda a regulação normativa desse direito fundamental beneficie do regime jurídico aplicável aos direitos, liberdades e garantias. Só faz sentido sujeitar a esse regime a específica parcela do direito ao repouso que envolva um mandado aos poderes públicos para que se abstenham de o perturbar, assim devendo omitir quaisquer atuações (legislativas ou outras) que o comprometam. Por outras palavras, só beneficia do regime aplicável aos direitos, liberdades e garantias a parcela do direito ao repouso que reclama um dever de abstenção do legislador, no sentido de privar o trabalhador desse mesmo direito fundamental.
Aliás, o Tribunal Constitucional, a propósito dos regimes de flexibilidade horária sucessivamente instituídos pela legislação laboral, tem vindo a considerar que apenas uma parcela do direito ao repouso goza de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, na sua vertente de comando negativo de proibição de adoção de condutas que afetem o seu núcleo essencial (cfr. Acórdãos n.ºs 338/2010 e 602/2010).
A esse propósito, deve chamar-se a atenção para o facto de que, ao contrário do que parece sustentar-se no presente acórdão, o direito ao repouso não tem sido, sem mais, caraterizado como um direito analógo pela Jurisprudência deste Tribunal. Assim, no Acórdão n.º 373/1991, sublinha-se que apenas o núcleo essencial desse direito beneficia de natureza análoga, conforme resulta da seguinte passagem: «Estes direitos são dotados de um núcleo essencial intocável que, nessa dimensão, se configura como uma verdadeira garantia, pelo que, ao menos no que a esse núcleo se refere, não se vê motivo bastante para nos afastarmos da posição expressa da doutrina quanto à sua qualificação como «direitos análogos» aos «direitos, liberdades e garantias», o que, aliás, se congraça com as considerações já tecidas no ponto III-2.2. Assente esta qualificação — seguramente quanto ao núcleo essencial dos direitos em causa, ou seja, quanto à sua dimensão garantística — seguir-se-ia, naturalmente, decidir se as consequências dessa qualificação se projectam apenas no regime material ou implicam também com o sistema orgânico vigente.». Por sua vez, no Acórdão n.º 368/1997, salienta-se que esse direito ao repouso só assume natureza análoga na medida em que se impeça o trabalhador do gozo desse direito, através de uma omissão de fixação de um limite máximo, a tal ponto que se exigisse uma permanente disponibilidade do trabalhador. Ora, em momento algum o referido acórdão afirma que esse direito subjetivo à defesa contra a omissão de fixação de um limite máximo da duração do trabalho impeça a fixação, por decisão administrativa ou legislativa (regional), de um limite inferior e, portanto, mais favorável ao trabalhador e, assim, mais garantístico desse direito fundamental. Por último, o Acórdão n.º 635/1999 reforça a ideia de que somente um núcleo essencial do direito ao repouso fica abrangido pelo regime dos direitos, liberdades e garantias, em função da sua natureza análoga, expressamente considerando – naquele caso, em que se discutia a remuneração de trabalho suplementar, para além do limite máximo da duração do trabalho – que o direito ao repouso só se revestiria de natureza análoga, porque se estaria a ultrapassar o limite máximo fixado por ato legislativo.
Não me parece, pois, que se possa extrair desta Jurisprudência – que não versou sobre opções legislativas que ampliassem a esfera de proteção do direito ao repouso, como sucede nos presentes autos – a conclusão de que o direito ao repouso assume sempre uma dimensão análoga aos direitos, liberdades e garantias.
E nem se diga que a afirmação, há muito consensualizada na Doutrina jusconstitucionalista, de que a esmagadora maioria dos direitos fundamentais (sejam eles direitos de liberdade ou direitos sociais) gozam de uma dupla dimensão (positiva, no sentido de exigirem uma atuação, e negativa, porque comportam sempre uma exigência de abstenção, enquanto instrumento de proteção do particular) põe em causa o que se acaba de sustentar.
No presente caso, o núcleo essencial do direito ao repouso exige que o Estado fixe um limite máximo da duração do trabalho, impondo-lhe uma conduta ativa, bem como que o Estado vele pelo respeito desse limite máximo, designadamente, através da sua atividade administrativa de tipo inspetivo – só assim se compreendem as funções atualmente conferidas à Inspeção-Geral do Trabalho –, com vista a reprimir a violação da legalidade democrática e a acautelar a implementação plena e efetiva do direito, se necessário através do exercício de poder sancionatório público e, em especial, de tipo contraordenacional.
Ora, no caso em apreço, a solução normativa constante do decreto não afeta a parcela do direito fundamental que goza de natureza análoga aos direitos, liberdades em garantias. Acresce ainda que a solução normativa adotada em nada colide com o direito a um limite máximo da jornada de trabalho.
Em conclusão, consideramos que não há violação da reserva de competência legislativa parlamentar decorrente da alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da CRP.
III – Do exposto, não se deve, porém, inferir que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores tenha competência para legislar sobre a matéria em causa.
Com efeito, o Tribunal já afirmou, em diversos Acórdãos, dos quais se destaca o Acórdão n.º 304/2011:
“(…) O poder legislativo das Regiões Autónomas é genericamente definido, nos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º1, da Constituição, através da verificação cumulativa dos três requisitos que deverá respeitar: “i) restringir-se ao âmbito regional; ii) estarem as matérias em causa enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo; e iii) e não estarem reservadas aos órgãos de soberania” (Acórdão n.º 423/08, na linha dos anteriores acórdãos n.ºs 258/07, 415/05 e 246/05).
Por outras palavras: para que possa intervir legislação regional não basta que a matéria esteja enumerada nos Estatutos. É ainda necessário que não incida no domínio reservado aos órgãos de soberania (seja por força das disposições gerais dos artigos 164.º e 165.º, seja por força de outras disposições específicas de que resulte a competência institucional do Estado). E é exigido que possa afirmar-se o “âmbito regional” da legislação, quer do ponto de vista territorial, quer do ponto de vista institucional. Pois como se esclarece no acórdão n.º 258/07, a expressão «âmbito regional» tem este duplo sentido. Repetindo as palavras desse aresto: “sem prejuízo de esta expressão ter antes de mais um sentido geográfico, traçando os limites espaciais de vigência dos decretos legislativos regionais, ela tem também forçosamente um sentido institucional, que impede os Parlamentos insulares de emanar legislação destinada a produzir efeitos relativamente a outras pessoas colectivas públicas que se encontram fora do âmbito de jurisdição natural das Regiões Autónomas”.
E não se vêm decisivos argumentos para rever, seja na sua substância, seja na sua formulação, este entendimento do Tribunal acerca dos limites do poder legislativo regional. Na verdade, admitir um critério puramente territorial do “âmbito regional” (e note-se que a Constituição não fala em “legislar para o território regional”, fala sim, através de uma expressão que revela uma intenção mais restritiva, em “legislar no âmbito regional”) seria retirar aos órgãos de soberania qualquer possibilidade de legislar para todo o país em matérias que reclamem um regime universalizado, nomeadamente, por força da unidade institucional do Estado.
(…)
Há, portanto, matérias em que a competência é reservada aos órgãos de soberania, embora não estejam enunciadas na lista dos artigos 164.º e 165.º da Constituição. Existe assim uma espécie de «reserva legislativa da República ou do Estado» implícita, isto é, há certos domínios que, pela sua natureza, devem ser objeto de legislação emanada pelos órgãos de soberania porque reclamam um tratamento nacional.
Ora, em meu entender, estabelecendo o artigo 59.º, n.º 2, alínea b), da CRP que incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso, a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente, a fixação, a nível nacional, dos limites da duração de trabalho, a matéria em apreço nos presentes autos deve configurar-se como uma matéria que necessita de uma legislação nacional, pelo que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores está impedida de legislar sobre ela.
Aliás, o Tribunal, tal como o presente Acórdão refere, já considerou que a matéria das condições e limites da duração de trabalho era da competência dos órgãos da República (Acórdão n.º 212/92).
É exclusivamente com este fundamento que adiro à pronúncia de inconstitucionalidade constante do presente Acórdão.
Ana Guerra Martins