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Proc. nº 15/99 Acórdão nº
302/01
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
(Cons.º Luís Nunes de Almeida)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Judicial de Castelo Branco, S... e mulher, M..., instauraram acção declarativa na forma sumária contra C..., Lda., pedindo a condenação da ré a despejar imediatamente a cave, o rés-do-chão e o 1º andar do prédio urbano sito na Av. 1º de Maio, nºs 8 a 14, em Castelo Branco, de que era arrendatária. Os autores haviam adquirido o referido prédio por sucessão testamentária e por compra aos co-legatários do anterior senhorio, J....
Como fundamentos para o pretendido despejo invocaram os senhorios:
– a existência de subarrendamentos não autorizados e não comunicados, quer aos actuais senhorios, quer ao anterior;
– a cobrança pela locatária de rendas, relativamente a esses subarrendamentos, em montantes superiores ao legalmente permitido;
– por fim, a existência de empréstimos ou cedências gratuitas relativamente a algumas salas do 1º andar, nomeadamente a sala nº 5, esta realizada já após o falecimento do anterior senhorio, igualmente não autorizadas nem comunicadas aos senhorios.
A inquilina contestou, alegando, em suma, que os subarrendamentos e/ou cedências em causa, para além de se encontrarem autorizados por cláusula expressa do contrato de arrendamento, tinham também sido expressamente autorizados pelo anterior senhorio e eram do seu conhecimento. Quanto àquela sala nº 5, a respectiva cedência teria sido comunicada ao administrador do prédio, tendo, de resto, os senhorios dela conhecimento pelo menos desde data anterior à da sua aquisição do prédio, pelo que em todo o caso caducara, à data da propositura da acção, o direito de resolução do contrato com tal fundamento.
2. A resolução do contrato de arrendamento foi decretada por sentença de
19 de Dezembro de 1997 (fls. 151 e seguintes).
Tendo ficado provado que 'o anterior senhorio, J..., autorizou os subarrendamentos e a cedência gratuita', mas que, no que à sala nº 5 do 1º andar diz respeito, a sua cedência gratuita foi efectuada sem que os autores a autorizassem e sem que lhes tivesse sido efectuada qualquer comunicação, a decisão considerou verificado, no caso, o fundamento constante da alínea f) do nº 1 do artigo 64º do Regime do Arrendamento Urbano (abreviadamente designado RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro; ou seja, porque aquela cedência gratuita da sala nº 5 do primeiro andar do prédio em causa não fora autorizada pelos senhorios, nem lhes fora comunicada, nunca os mesmos tendo reconhecido o beneficiário de tal cedência, foi decretado o despejo de todo o locado. Com efeito, no tocante aos restantes fundamentos invocados, a acção foi considerada não procedente.
Inconformada, a locatária C..., Lda. interpôs recurso dessa sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Nas suas alegações, suscitou a questão de inconstitucionalidade da norma constante da alínea f) do nº 1 do artigo 64º do RAU, nos termos seguintes:
'No caso dos autos decretar-se a resolução do contrato de arrendamento que tem por objecto o r/c e 1º andar afectos a fins diferentes com fundamento num incumprimento de uma obrigação que respeita tão somente a uma sala do 1º andar, a qual não representa uma vigésima parte do valor desse prédio, perfeitamente autonomizável, é impor ao inquilino uma sanção manifestamente excessiva e desproporcionada face à sua conduta em concreto, sendo evidente que nos deparamos com uma aplicação claramente ilegal e inconstitucional do disposto na al. f) do artº 64º do RAU. Ilegal porque a aplicação daquela norma tem que se subordinar numa perspectiva sistemática ao disposto nos artºs 292º e 1028º ambos do C. Civil e inconstitucional porque violadora do citado princípio da proporcionalidade. Devendo referir-se que o artº 64º do RAU viola claramente aquele princípio da proporcionalidade, pois deveria estipular, em termos expressos, a possibilidade de redução de negócio jurídico sempre que a violação em concreto do contrato importasse a sua subsistência na parte em que se não verificasse qualquer vício, porque assim é temos de concluir que se trata de uma norma inconstitucional porque viola o artº 8º da CRP.'
Os senhorios recorridos juntaram contra-alegações, em que afirmaram:
'Não faz sentido nem se entende que ao senhorio pudesse ser imposta a obrigação de manter um inquilino, que seria despejado, na tese da apelante, somente da sala emprestada ilicitamente a terceiro. Recorde-se a diferença de tratamento que a lei impõe em caso de incumprimento do senhorio e em caso de incumprimento do inquilino. Quanto àquele, o arrendatário pode resolver o contrato nos temos gerais do direito. [..] A resolução é possível sempre que o senhorio não cumpra o contrato
(incumprimento definitivo), podendo a mesma operar por mera declaração à outra parte. Quanto à resolução por incumprimento por parte do arrendatário, a mesma tem de ser decretada judicialmente. Acresce depois que nem todas as situações de incumprimento pelo arrendatário permitem ao senhorio resolver o contrato. O art. 64º é bem categórico: o senhorio só pode resolver o contrato nos casos previstos nas alíneas a) a j) do nº 1.
[...] Quer isto dizer, em nosso modesto parecer, que o nosso legislador teve de facto em conta o princípio da proporcionalidade quando deu corpo ao artº 64 do R.A.U..'
3. Por acórdão de 4 de Novembro de 1998, a Relação de Coimbra negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida (fls. 182 e seguintes).
No tocante à questão de inconstitucionalidade suscitada, entendeu-se nesse aresto:
'Segundo Gomes Canotilho, in Direito Constitucional, 4ª ed., págs. 315 e segs., parece líquido que este princípio [o princípio da proporcionalidade] não é máxima constitucional axiomaticamente derivada de um sistema ou ordem de valores mas um princípio normativo concreto da ordem constitucional portuguesa. Tem a sua expressão no nº 2 do artº 18 da Constituição da República Portuguesa, ao referir que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e aflora-se p. ex no artº 272 nº 2 da nossa Lei Fundamental, quando aí refere que as medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário. Quer com isto significar a nosso ver – e salvo melhor entendimento – que este princípio terá aplicação, quando se depara perante um cidadão um acto de natureza pública e não como é o caso, em que estão em análise meras relações jurídico privadas. Seja como for, mesmo que assim se não entenda não se vislumbra como é que a al. f) do RAU [sic] pode ofender aquele princípio, pois a levar-se ao fim o raciocínio expendido pela apelante, teríamos que em caso de cedência (ilegal) parcial do arrendado pelo locatário, o senhorio apenas poderia obter o despejo da parte ilicitamente ocupada, mantendo-se válido no restante o convénio. Cremos que é solução que não tem o arrimo de qualquer princípio da lei ordinária ou constitucional.'
4. É desta decisão que vem interposto o presente recurso pela ré, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 64º, nº 1, alínea f), do RAU, por violação do princípio da proporcionalidade.
Já neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
'a) O direito dos AA., com o decretamento total do despejo do locado, violou o princípio da proibição do excesso; b) A al. f) do nº 1 do artº 64º do RAU, com referência à al. g) do artº 1038º do C. Civil, ao não estabelecer uma solução que permita a manutenção de um contrato sempre que o princípio da proporcionalidade o imponha, configura-se inconstitucional; c) Na interpretação dada à al. f) do nº 1 do artº 64º do RAU que possibilitou a resolução do contrato foram violados os artºs 3º, 8º e 18º da CRP.'
Os recorridos juntaram contra-alegações, concluindo pela não inconstitucionalidade da norma em causa, nos termos da fundamentação que aduziram perante o Tribunal da Relação.
Tendo havido mudança de relator, por vencimento, cumpre, agora, apreciar e decidir.
II
5. A norma submetida à apreciação deste Tribunal dispõe: Artigo 64º
(Casos de resolução pelo senhorio)
1 – O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
[...] f) Subarrendar ou emprestar, total ou parcialmente, o prédio arrendado, ou ceder a sua posição contratual, nos casos em que estes actos são ilícitos, inválidos por falta de forma ou ineficazes em relação ao senhorio, salvo o disposto no artigo 1049º do Código Civil;
[...]
A recorrente entende que a norma deste artigo 64º, nº 1, alínea f), do RAU, ao não permitir a redução do contrato de arrendamento, nos casos de incumprimento ou violação de apenas parte do mesmo, e ao não prever a consequente subsistência da parte ou partes não afectadas pela violação verificada, viola o princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado.
Neste sentido, perante o Tribunal da Relação, a recorrente argumentou que aquele princípio da proporcionalidade encontra 'aplicação concreta' nas disposições dos artigos 292º, 334º e 1028º do Código Civil, 'que estabelecem a manutenção de um contrato ou de uma situação jurídica na parte não afectada por qualquer vício em obediência precisamente aos princípios da proporcionalidade e da boa fé', sendo certo que daí resultaria, desde logo, a necessidade da aplicação, in casu, do referido artigo 1028º do Código Civil, decretando-se a resolução do arrendamento apenas em relação ao primeiro andar.
Dispõem os mencionados preceitos do Código Civil: Artigo 292º
(Redução) A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada. Artigo 334º
(Abuso do direito)
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Artigo 1028º
(Pluralidade de fins)
1. Se uma ou mais coisas forem locadas para fins diferentes, sem subordinação de uns a outros, observar-se-á, relativamente a cada um deles, o regime respectivo.
2. As causas de nulidade, anulabilidade ou resolução que respeitem a um dos fins não afectam a parte restante da locação, excepto se do contrato ou das circunstâncias que o acompanham não resultar a discriminação das coisas ou partes da coisa correspondentes às várias finalidades, ou estas forem solidárias entre si.
Ora, o acórdão recorrido, analisando os diversos argumentos que lhe foram apresentados, afastou o ponto de vista defendido pela ora recorrente.
Quanto à questão de saber se seriam aplicáveis ao caso dos autos estas normas invocadas pela então apelante, disse o Tribunal da Relação de Coimbra:
'[...] conforme resulta inequivocamente do contrato de arrendamento de fls. 27, o referido convénio apresenta características de unicidade no sentido de que teve por objecto não só o estabelecimento comercial ou armazém, como também o 1º andar do prédio. Não houve pois a celebração de dois convénios, que tivessem como objecto, um uma das partes do imóvel (o tal estabelecimento comercial) e outro o mencionado 1º andar. O que significa a nosso ver que 'prima facie' – e se não houver razões que a isso se venham a opor –, a violação de qualquer dos deveres do locatário, que origine a resolução do contrato e uma vez que este é único, é indiferente que se verifique quer a um quer a outro piso do imóvel. Socorre-se a recorrente do estabelecido no artº 1028º do CCv. A nosso ver sem razão contudo e pela simples razão que, como ressalta explicitamente do seu próprio texto, versa tal normativo as hipóteses de arrendamentos com pluralidade de fins (p. ex. para comércio e ao mesmo tempo habitação do inquilino-comerciante). Não é manifestamente o caso dos autos, pois e como está claramente escrito (e não foi posto minimamente em causa) qualquer dos andares em causa destinou-se ao mesmo fim – 'exercício de qualquer ramo de comércio e serviços'. Não estamos pois perante a situação descrita no aludido comando legal, caso em que então sim se poderia hipotisar a validade de uma das partes da locação. Igualmente ao socorrer-se do artº 292 do mesmo código, cremos que tal se deverá a manifesto lapso, já que este normativo prevê a redução sim, mas de negócio jurídico nulo ou anulado parcialmente. E o que aqui se trata é de resolução de contrato e não de declaração de nulidade de um qualquer negócio jurídico.
[...] E não se vislumbra como [...] possa ocorrer [...] abuso de direito da sua parte
(cfr. artº 334 do CCv), pois naturalmente o facto de ser legatário de alguém que fundou uma sociedade, não pode ser impeditivo de propor acção de despejo, caso a locatária viole os deveres que a lei lhe impõe, como é óbvio, pois tal actuação não fere a consciência ético-jurídico-social da comunidade.
[...]'.
A propósito da violação do princípio da proporcionalidade suscitada pela ora recorrente, o Tribunal da Relação de Coimbra, começando por afirmar que tal princípio 'terá aplicação, quando se depara perante um cidadão um acto de natureza pública e não como é o caso, em que estão em análise meras relações jurídico privadas', acrescentou que 'mesmo que assim se não entenda, não se vislumbra como é que a al. f) [do nº 1 do artigo 64º] do RAU pode ofender aquele princípio, pois a levar-se ao fim o raciocínio expendido pela apelante, teríamos que em caso de cedência (ilegal) parcial do arrendado pelo locatário, o senhorio apenas poderia obter o despejo da parte ilicitamente ocupada, mantendo-se válido no restante o convénio'. E concluiu que a solução propugnada 'não tem o arrimo de qualquer princípio da lei ordinária ou constitucional'.
6. Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 153), 'o princípio da proporcionalidade (também chamado «princípio da proibição do excesso») desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias
(tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias); (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos'.
Entre nós, a consagração constitucional do princípio da proporcionalidade não merece contestação, pelo menos desde 1982. Com efeito, a Constituição da República Portuguesa, desde a primeira revisão constitucional, consagra no seu artigo 2º o Estado de direito democrático, sendo certo que o princípio da proporcionalidade se encontra ínsito nesse conceito político-jurídico, do qual constitui uma necessária decorrência.
O mesmo princípio da proporcionalidade aflora, aliás, em várias disposições constitucionais relevantes: no artigo 18º, nº 2, relativo às restrições aos direitos, liberdades e garantias; no artigo 19º, nº 4, impondo expressamente o respeito pelo princípio da proporcionalidade na opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como nas respectivas declaração e execução; no artigo 19º, nº 8, no que concerne às providências a tomar pelas autoridades com vista ao restabelecimento da normalidade constitucional; no artigo 28º, nº 2, relativo à prisão preventiva; no artigo
30º, nº 5, prevendo as limitações a direitos fundamentais que decorram das exigências próprias da execução de penas ou medidas de segurança ou inerentes ao sentido da condenação; no artigo 266º, nº 2, que consagra expressamente a subordinação dos órgãos e agentes administrativos ao princípio da proporcionalidade; no artigo 270º, relativo às restrições ao exercício de direitos dos militares e agentes militarizados, bem como dos agentes dos serviços e forças de segurança; no artigo 272º, nº 2, referente às medidas de polícia.
De resto, o Tribunal Constitucional tem sucessivamente reconhecido o valor constitucional do princípio da proporcionalidade (cfr., entre muitos outros: Acórdão nº 25/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., pág. 7; Acórdão nº 85/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., pág. 245: Acórdão nº 64/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pág. 319; Acórdão nº 349/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., pág. 507; Acórdão nº 363/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., pág. 79; Acórdão nº 152/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., pág. 323; Acórdão nº 634/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26º vol., pág. 205; Acórdão nº 370/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., pág. 169; Acórdão nº 494/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., pág. 433; Acórdão nº 59/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., pág. 79; Acórdão nº 572/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., pág. 381; Acórdão nº 758/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., pág. 803; Acórdão nº 958/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol., pág. 397; Acórdão nº 1182/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35º vol., pág. 447).
É assim possível encarar o princípio da proporcionalidade como um princípio objectivo da ordem jurídica. E, se é certo que a aplicação do princípio da proporcionalidade se viu inicialmente restrita à conformação dos actos dos poderes públicos e à protecção dos direitos fundamentais, há que reconhecer que foi admitido o posterior e progressivo alargamento da relevância de tal princípio a outras realidades jurídicas, não se detectando verdadeiros obstáculos à sua actuação no domínio das relações jurídico-privadas.
Não se contesta portanto que o princípio da proporcionalidade seja princípio geral de direito, conformador não apenas dos actos do poder público mas também, pelo menos em certa medida, dos actos de entidades privadas e inspirador de soluções adoptadas pela própria lei no domínio do direito privado.
7. Tendo em conta esta perspectiva, vejamos se a norma do artigo 64º, nº
1, alínea f), do RAU – ao não permitir a redução do contrato de arrendamento, nos casos de incumprimento ou violação de apenas parte do mesmo, e ao não prever a consequente subsistência da parte ou partes não afectadas pela violação verificada – constitui, como sustenta a recorrente, uma violação do princípio da proporcionalidade.
Em rigor, trata-se afinal de saber se viola o princípio da proporcionalidade a norma do artigo 64º, nº 1, alínea f), do RAU, na medida em que permite a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio se o arrendatário subarrendar ou emprestar parcialmente o prédio arrendado, sem autorização do senhorio.
O problema de constitucionalidade suscitado no presente processo tem de equacionar-se em função do papel desempenhado pela norma do artigo 64º, nº 1, alínea f), do RAU no sistema em que a mesma se insere.
Importa assim determinar o sentido e alcance da norma questionada no conjunto da ordem jurídica portuguesa e, designadamente, no contexto da legislação sobre arrendamento urbano e à luz da ideia de protecção do locatário que inspira o direito português nesta matéria.
7.1. As regras gerais sobre a resolução dos contratos não têm aplicação no domínio do contrato de arrendamento urbano, estabelecendo a lei causas tipificadas de resolução (artigo 1093º do Código Civil, posteriormente substituído pelos artigos 63º e 64º do RAU).
Ora, nos termos do artigo 51º do RAU, o disposto neste mesmo diploma em matéria de resolução (e também em matéria de caducidade e de denúncia do arrendamento) tem natureza imperativa.
A resolução disciplinada no RAU é, em princípio, a resolução fundada em incumprimento do contrato.
Mas, ao passo que, no caso de incumprimento por parte do senhorio,
'o arrendatário pode resolver o contrato nos termos gerais de direito' (nº 1 do artigo 63º), a resolução do contrato fundada na falta de cumprimento do arrendatário 'tem de ser decretada pelo tribunal' (nº 2 do mesmo artigo).
Além disso, nem todas as situações de incumprimento por parte do arrendatário permitem ao senhorio resolver o contrato. O artigo 64º do RAU – correspondente ao artigo 1093º do Código Civil – é categórico ao determinar que
'o senhorio só pode resolver o contrato' nos casos previstos nas alíneas a) a j) do nº 1.
Estes aspectos do regime da resolução do contrato de arrendamento – assim como, aliás, o regime estabelecido para as outras modalidades de cessação do contrato (maxime, para a denúncia por iniciativa do senhorio), sem esquecer o princípio da prorrogação automática do contrato, as regras sobre actualização das rendas, ou os regimes da transmissão do direito ao arrendamento – revelam a preocupação da lei em assegurar a protecção do arrendatário, atenta a função económico-social do arrendamento, ainda quando não tenha fins habitacionais.
Todavia, um dos objectivos afirmados pela legislação sobre o arrendamento urbano consiste em 'encontrar o equilíbrio socialmente justo, sem defender qualquer das partes, mas por forma a garantir as melhores condições para o cumprimento de um preceito constitucional – o direito à habitação' (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o RAU).
Como afirmava Baptista Machado, 'Resolução do contrato de arrendamento – prazo para propositura de acção', em João Baptista Machado – Obra dispersa, vol. I, Braga, 1991, págs. 3 e segs. (ainda a propósito do regime consagrado no Código Civil),
'[...] Se, por força da renovação imposta (art. 1095º), o arrendatário goza duma posição de privilégio – em detrimento do interesse do senhorio –, bem se compreende que, em contrapartida, sobre ele impenda um mais estrito dever de cumprir rigorosamente, ponto por ponto, as suas obrigações contratuais [...]. E é assim que nós vemos postas como fundamentos legais do arrendamento certas infracções contratuais que, nos quadros do regime comum da resolução legal, não seriam suficientes para a justificar [em nota: Efectivamente, em inúmeras hipóteses, particularmente fora dos grandes centros, os factos previstos nas als. a), e), f), g) e i), segunda parte, do art. 1093º, 1, atendendo ao interesse do credor terão «escassa importância». Representam, contudo, formas de inadimplemento e o senhorio não tem outro meio de reagir contra elas que não seja a acção de resolução] [...]. Sintetizando, deve pois dizer-se que, em princípio, só ao arrendatário cumpridor a lei pretende conferir tutela especial do regime proteccionista dos arrendamentos urbanos; e que, por isso, contra o arrendatário que é mau cumpridor ele põe um meio fácil de reacção, facultando-lhe amplamente o exercício do despejo imediato – ou seja, o direito de resolução.
[...]'.
Isto é, dentro de um objectivo de protecção do arrendatário, como parte contratual institucionalmente mais fraca, e em atenção ao direito à habitação, a lei procura, pelo menos em abstracto, assegurar o equilíbrio entre os interesses das partes quando esteja em causa o incumprimento de certas obrigações por parte do arrendatário.
7.2. Ora, o fundamento do direito de resolução previsto no artigo 64º, nº
1, alínea f), do RAU (que reproduz o antigo artigo 1093º, nº 1, alínea f), do Código Civil) deve antes de mais relacionar-se com a norma contida no artigo
1038º, alínea f), do Código Civil.
O artigo 1038º do Código Civil, integrado na disciplina geral da locação, enuncia as obrigações do locatário; na mencionada alínea f), estabelece-se a obrigação de o locatário não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa locada, através de cessão gratuita ou onerosa, excepto nos casos permitidos por lei ou autorizados pelo locador.
Alguma doutrina tem admitido que a disposição contida no artigo
1038º, alínea f), do Código Civil 'deve interpretar-se no sentido de que a enumeração que nela se faz dos actos relativos ao gozo da coisa locada que ao locatário é vedado praticar não reveste carácter taxativo', podendo portanto abranger qualquer situação jurídica criada sem o consentimento do senhorio e em tudo equiparável às que expressamente se mencionam no preceito (M. Henrique Mesquita, anotação ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30 de Março de 1993, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 126º, nº 3836, págs. 342 e segs.).
Seja como for, num sistema de resolução do contrato de arrendamento por iniciativa do senhorio caracterizado pela existência de causas tipificadas, e num sistema em que a resolução do contrato fundada no incumprimento por parte do arrendatário tem necessariamente de ser decretada pelo tribunal, não se afigura desrazoável, arbitrário nem excessivo que o incumprimento traduzido em cedência do imóvel pelo arrendatário, sem autorização do senhorio, constitua fundamento de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, ainda que se trate de mera cedência parcial.
Na verdade, a situação prevista no artigo 64º, nº 1, alínea f), do RAU como fundamento do direito de resolução pelo senhorio é 'reveladora de uma abdicação do locatário ao uso e fruição do arrendado' (Brandão Proença, 'A sublocação como fundamento de despejo', Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, Jan.-Abril 1983, págs. 179 e segs., pág. 187).
A solução consagrada na lei traduz afinal um meio de reacção colocado à disposição do senhorio contra o incumprimento das obrigações a que o arrendatário se encontra adstrito e constitui, de certo modo, uma medida de compensação atribuída ao senhorio perante numerosos pontos do regime que têm primariamente em conta a protecção do arrendatário.
Conclui-se assim que a norma constante do artigo 64º, nº 1, alínea f), do RAU, ao permitir a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio se o arrendatário subarrendar ou emprestar parcialmente o prédio arrendado, sem autorização do senhorio, não contraria o princípio da proporcionalidade.
8. Saber se, no caso dos autos, o tribunal a quo poderia ou deveria ter recorrido ao princípio contido no artigo 802º, nº 2, do Código Civil, não decretando a resolução do contrato, por considerar o incumprimento 'de escassa importância' (como, de resto, tem sido admitido por alguma jurisprudência – assim, como ratio decidendi: Supremo Tribunal de Justiça, acórdão de 3 de Julho de 1997, Boletim do Ministério da Justiça, nº 469, págs. 486 e segs.; em obter dictum: Tribunal da Relação do Porto, acórdão de 27 de Maio de 1993, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 126º, nº 3831, págs. 173 e segs.), é questão que já se não inclui no âmbito de competência do Tribunal Constitucional.
O mesmo se diga quanto às questões de saber se, no caso, seria de atender ao instituto do abuso de direito (artigo 334º do Código Civil) ou ao regime contido no artigo 1028º do Código Civil – soluções que, aliás, foram expressamente afastadas pelo acórdão recorrido – , sendo certo que, quanto a este último aspecto, o Tribunal da Relação de Coimbra qualificou o contrato de arrendamento discutido no processo como 'único', porque destinado ao mesmo fim, o 'exercício de qualquer ramo de comércio e serviços'.
Com efeito, não são questões de constitucionalidade normativa, susceptíveis de constituir objecto de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, nem a apreciação de um eventual erro de julgamento nem a apreciação de uma errada qualificação da matéria de facto (cfr., entre outros, os Acórdãos deste Tribunal, nºs 353/86 e 45/88, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, nº 83, de 9 de Abril de 1987, pág. 4573, e nº 107, de 9 de Maio de 1988, pág. 4188).
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 64º, nº
1, alínea f), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que diz respeito à questão de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta..
Lisboa, 27 de Junho de 2001 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta). José Manuel Cardoso da Costa