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Proc. nº 532/00 TC – Plenário Relator: Consº. Artur Maurício
NOTA: Este Ac. está rectificado pelo Acórdão nº 491/01
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
1 – O Ministro da Administração Interna interpõe recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 79º-D nº 1 da LTC, do acórdão nº 91/2001, proferido a fls. 311 e segs., que julgou inconstitucionais, por violação do princípio dos artigos 2º, 18º nº 2, 29º nº 1, 47º, 53º e 266º da Constituição, as normas constantes do artigo 94º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei nº 231/93, de 26 de Junho (com excepção do seu nº 3 e do segmento do nº 1 referente à dispensa de serviço a perdido do militar) e do artigo 75º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei nº 265/93, de 31 de Julho (com excepção das alíneas b) e c) do seu nº 1) e concedeu provimento ao recurso interposto por Carlos Alberto Gonçalves Ferreira, identificado nos autos.
Invoca, para o efeito, divergência com o decidido nos acórdãos nºs
504/2000, de 28 de Novembro (de que junta cópia da respectiva publicação em Diário da República), 505/2000, da mesma data e 26/2001, de 30 de Janeiro.
Admitido o recurso, foram produzidas alegações, concluindo o recorrente nos termos seguintes:
1 – O douto acórdão nº 91/2001, ora impugnado, consubstancia um entendimento de sentido divergente e contraditório relativamente ao do Acórdão nº 504/2000, transitado em julgado e confirmado pelos Acórdãos nº 505/2000, da
2ª Secção, e 26/2001, da 1ª Secção, todos desse Venerando Tribunal, sendo certo que o objecto de apreciação, em tais decisões, foi sempre o da conformidade constitucional das mesmas normas – artigo 94º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana e artigo 75º do Estatuto dos Militares da GNR – e que não houve qualquer alteração, quer naqueles preceitos quer na lei fundamental, entre a data da primeira decisão e a data da decisão ora impugnada;
2 – Pelas razões perfunctoriamente aduzidas atrás e, sobretudo, pelos fundamentos doutamente expostos no Acórdão-fundamento – nº 504/2000 -, nos Acórdãos que o secundaram – nºs 505/2000 e 26/2001 – e nos dois votos de vencido exarados no Acórdão ora impugnado, afigura-se que este deve ser revogado”.
Contra-alegou o recorrido, apresentando as seguintes conclusões:
1 – O douto acórdão recorrido consubstancia, sem sequer ter apreciado a invocada matéria da inconstitucionalidade orgânica das normas sub judicio, um muito bem fundamentado e notabilíssimo entendimento quanto à inconstitucionalidade material daquelas.
2 – Na verdade, ao permitirem a aplicação da medida de dispensa de serviço independentemente da prova do cometimento de uma gravíssima infracção disciplinar que a justifique e sem ser em processo disciplinar, tais normativos são inconstitucionais porque violam o princípio da proibição do excesso e, desse modo, o direito à segurança no emprego consagrado no artigo 53º da CRP.
3 – Acresce, no entender do ora recorrido, que tais normas violam também o princípio da igualdade, ao admitirem o processo próprio de dispensa de serviço na GNR, inexistente na força de segurança PSP que por essencial natureza constitutiva proxérrima lhe está, ademais não assegurando sequer as garantias de defesa existentes no processo admitido nas Forças Armadas.
4 – Ainda, no entender do ora recorrido, tais normas estão também feridas de inconstitucionalidade orgânica, em virtude de o Governo ter invadido a esfera da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, notoriamente inovando e impondo aos agentes militarizados da GNR um regime de excepção sequer existente para os verdadeiros militares das Forças Armadas.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – O recurso previsto no artigo 79º-D da LTC cabe de decisão que julgar “a questão de constitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma” por qualquer das secções do Tribunal.
Visa-se com este meio impugnatório a uniformização da jurisprudência do Tribunal Constitucional, sem prejuízo da sua revisibilidade nos termos definidos pelo Acórdão nº 533/99, publicado in Diário da República, II Série, de
22/11/99.
No caso, é patente a divergência entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento (Acórdão nº 504/2000) no ponto em que o primeiro, em contrário do segundo, decidiu que as supra citadas normas da LOGNR e do EMGNR, enquanto permitem a aplicação da medida de dispensa de serviço
“independentemente do cometimento de uma infracção disciplinar que a justifique e sem ser em processo disciplinar (...) violam o princípio da proibição do excesso e (...) o direito à segurança no emprego” .
Tal determinou que o acórdão recorrido julgasse inconstitucionais as referidas normas e o acórdão-fundamento, apreciando as mesmas normas também na perspectiva da sua constitucionalidade orgânica e material, por violação do princípio da igualdade, formulasse juízo em sentido divergente.
3 – Depois de qualificar a sanção de dispensa de serviço como sanção estatutária, sustenta o acórdão recorrido que ela não pode ser aplicada senão para punir uma infracção disciplinar muito grave, fundamentalmente por ser inaceitável que, implicando a perda dos direitos à qualidade de militar da GNR,
“possa concluir-se que o comportamento do militar indicia “notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função” (ou seja, que o militar revela não possuir
“bom comportamento militar e cívico, espírito militar ou aptidão técnico-profissional”) – e concluir-se em termos de justificar a aplicação de uma sanção que afecta tão gravemente o seu estatuto profissional – sem, previamente, se fazer prova de que ele praticou uma infracção disciplinar muito grave”; isto, desde logo, porque a pena disciplinar de separação de serviço previsto no artigo 28º alínea f) do Regulamento Disciplinar da GNR – com a qual o acórdão de algum modo identifica a sanção em causa – só pode ser aplicada pela prática de infracções muito graves nos termos do artigo 42º nº 1 alínea c) daquele Regulamento.
Qualificando o direito à segurança no emprego, consagrado no artigo 53º da CRP – direito que seria posto em causa com a aplicação da sanção – como direito fundamental, gozando da protecção conferida pelo artigo 18º nº 2 da CRP, o acórdão sustenta, depois, a inadmissibilidade de “uma lei que permita que, independentemente do cometimento de uma infracção disciplinar muito grave, se expulse da Guarda Nacional Republicana um militar que, aos olhos do seu comandante-geral, dê provas de “notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função”, lei essa que não encontraria credencial em qualquer preceito constitucional, designadamente no artigo 270º da CRP, a isto acrescendo o incumprimento da exigência de que toda a restrição se deve limitar “ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente previstos”
E conclui:
“Há-de, pois, convir-se que as normas legais aqui sub iudicio, ao permitirem a aplicação da medida de dispensa do serviço independentemente do cometimento de uma infracção disciplinar que a justifique e sem ser em processo disciplinar, são inconstitucionais: antes de mais, porque violam o princípio da proibição do excesso e, desse modo, o direito à segurança no emprego, consagrado no artigo
53º da Constituição, que dispõe que “é garantido aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”. Esta garantia – que vale, naturalmente também para os militares da Guarda Nacional Republicana [sobre a aplicação da garantia da segurança no emprego aos trabalhadores da Administração Pública – e isso são os militares da Guarda Nacional Republicana – cf. os acórdão nºs 154/86 e 285/92 (publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 7º, tomo I, páginas 185 e seguintes, e volume 22º, páginas 159)] – significa, pelo menos, que eles não podem ser expulsos das fileiras, salvo apurando-se, em processo próprio, com observância das garantias de defesa, que cometeram infracção disciplinar de gravidade tal que torne impossível a sua manutenção ao serviço e a sua pertença
à corporação”.
Ora, o acórdão-fundamento não deixa de admitir que a sanção de dispensa de serviço afecte o direito á segurança no emprego. Simplesmente nele se diz também – e com razão - que “aquela medida não está conceptualizada de molde a poder-se concluir que a mesma é ou pode ser aplicável ad libitum, antes só o podendo ser se ocorrerem causas precisas, indicadas nas normas em questão”.
E acrescenta-se:
“Na verdade, como aliás se escreveu no acórdão ora sub iudicio, o militar da Guarda Nacional Republicana só será abatido aos respectivos quadros após se ter concluído, em processo próprio, que não reúne as condições essenciais para o exercício das respectivas funções, sendo que, pela natureza das suas atribuições e pelo modelo de organização daquele corpo especial de tropas, são de exigir dos seus militares condições especiais de permanente aptidão física, psíquica e psicológica, comportamentos pautados por estritos rigores éticos de coesão interna e acentuado espírito de disciplina, condições e comportamentos estes que, a não serem seguidos, são justificativos da não manutenção efectiva da acima indicada «relação laboral».
Não poderá, desta sorte, equiparar-se a medida de dispensa de serviço a um caso de despedimento sem justa causa.
A exigência de uma causa adequada à cessação da efectiva «relação laboral» e a exigência de um processo que assegure plenamente garantias de defesa em relação ao militar está amplamente consagrada nas normas em apreciação.”
Isto mesmo se repete no Acórdão nº 26/01, quando nele se diz:
“Não se afigura forçado admitir que a medida de dispensa do serviço ponha em causa a segurança no emprego. Simplesmente, o que parece claro, face ao disposto nas referidas normas do EMGNR93 e da LOGNR, é que ela não é aplicável sem que se verifiquem as condições nelas previstas, embora com a utilização de conceitos indeterminados. O tipo de funções que o militar da GNR exerce, enquadrado num modelo organizacional próprio, exige que a esse militar se imponham especiais condições de aptidão física e psíquica e a observância de rigorosos padrões comportamentais e éticos, sem os quais se não pode deixar de justificar a quebra do “vínculo laboral”. E é precisamente a falta dessas condições e desses requisitos que as normas em causa prevêem como justificativas da imposição da medida.
No caso, pois, existindo uma causa adequada à cessação da “relação laboral”, não é legítima a identificação da dispensa de serviço com observância do disposto nas citadas normas com um despedimento sem justa causa, sendo ainda certo que no processo em que a medida é aplicada se asseguram “todas as garantias de defesa” (artigo 94º nº 2 da LOGNR93).”
De facto, para além da sanção só poder ser aplicada em processo próprio (mesmo o acórdão recorrido não deixa de aceitar que ele seja um
“processo disciplinar especial” quando nele se considera “não se contesta(r) que o “processo próprio de dispensa de serviço” cumpra as funções do processo disciplinar”) com todas as garantias de defesa – e o processo concretamente em causa revela-o de modo claro – ela assenta sempre em factos concretos, por força do artigo 75º nº 2 do EMGNR, cuja inegável gravidade resulta da circunstância de eles revelarem um “comportamento (...) incompatível com a condição de “soldado da lei” ou que o sancionado não possui “bom comportamento militar e cívico”, ou
“espírito militar” ou “aptidão técnico-profissional” (nº 1 do citado artigo
75º).
Não é assim lícito concluir, como se faz no acórdão recorrido, que a sanção pode ser imposta a infracções que se não revelem muito graves, pedra angular e decisiva (até, como se disse, pelo facto de se aceitar que o processo em que se aplica a sanção não deixa de ser um processo disciplinar especial) na fundamentação do julgamento de inconstitucionalidade.
Especificamente sobre a violação do princípio da proporcionalidade
(acórdão recorrido aprecie a questão na vertente da “proibição do excesso), escreveu-se no acórdão-fundamento:
“5. Refira-se, por último, que se não lobriga que a consagração legal da medida de dispensa de serviço se revele, em si, desproporcionada quando estejam em causa comportamentos que, objectivamente, são de considerar acentuadamente graves, como é o caso daquele que foi prosseguido pelo recorrente e que ditaram a aplicação da medida na vertente situação.
Efectivamente, como já se assinalou acima, muito embora essa medida acarrete uma cessação do efectivo desempenho de uma «relação laboral», não deixará de se reconhecer que os pressupostos de facto que legalmente são estipulados para que a mesma seja tomada, são de tal monta que, para um corpo especial de tropas tal como a Guarda Nacional Republicana, com as características a que já se fez alusão, seria inexigível a manutenção ao serviço de militares que adoptaram comportamentos indiciadores de notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que têm de ser apanágio do respectivo desempenho de serviço, sob pena de não poderem ser prosseguidos os objectivos cometidos àquele corpo especial de tropas.”
A conclusão não poderia ser outra, aceite – como se aceitou – que os factos que justificam a aplicação da medida são necessariamente de acentuada ou muita gravidade, em contrário do que se decidiu no acórdão recorrido.
O mesmo aliás se entendeu no Acórdão nº 26/01, quando nele se afirma:
“E também se não vislumbra que a medida de dispensa do serviço seja desproporcionada ou viole o princípio da proporcionalidade.
Com efeito, pelo que se deixou dito quanto às funções que a GNR exerce e tendo em conta os objectivos cometidos a este corpo especial de tropas, não se vê até como a verificação dos pressupostos de facto legalmente previstos para a aplicação da medida – designadamente os que no caso ocorreram – não preenchendo o militar da GNR as condições previstas nos Artigos 94º nº 2 da LOGNR93 e 75º nº 1 do EMGNR93, pudesse permitir a continuação desse militar ao serviço; não há, assim, qualquer inadequação entre a medida de dispensa do serviço e a gravidade da conduta a que ela corresponde”.
A este entendimento, intenta o acórdão recorrido responder, com o apoio na tese seguida no Acórdão nº 666/94 in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 29º vol., p. 349, argumentando que, em tal conformidade, violado seria o princípio da determinabilidade das leis, nos seguintes termos::
“Há-de convir-se, no entanto, que, ao mandar aplicar a medida de dispensa de serviço a “factos que levam à invocação da falta” de “bom comportamento moral e cívico”, de “espírito militar” ou de “aptidão técnico-profissional” (cf. os nºs
1 e 2, do citado artigo 75º) – é dizer: que levam à conclusão de que “o comportamento do militar” indicia “notórios desvios dos requisitos morais,
éticos, técnico-profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função” (cf. o nº 2 do mencionado artigo 94º) -, as normas sub iudicio não cumprem aquele mínimo de determinabilidade que é de exigir a normas legais que prevejam a aplicação de penas disciplinares expulsivas. E, desse modo, tais normas violam o princípio que se extrai das disposições conjugadas dos artigos 2º, 18º, nº 2, 29º, nº 1, 47º, 53º e 266º da Constituição, que o acórdão nº 666/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 29º, página 349) enunciou como segue: “as normas de direito disciplinar que prevejam medidas expulsivas [...] têm que conter um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos a que elas podem aplicar-se”. Nesse acórdão nº 666/94, o Tribunal recordou a jurisprudência da Comissão Constitucional sobre a matéria e citou o acórdão nº 282/86, no qual se sublinhara que, “quando as penas envolvidas implicarem a privação ou restrição de um direito fundamental”, “as regras constitucionais que condicionam e limitam tais restrições – designadamente o princípio da proporcionalidade (artigo 18º, nº 2) – implicam que tais penas só sejam previstas para situações que justifiquem a sua gravidade”. E, depois de referir que a regra da tipicidade das infracções só vale, qua tale, no domínio do direito penal, pois as suas exigências fazem-se sentir em menor grau no domínio do direito disciplinar, em que as infracções não têm que ser inteiramente tipificadas, acrescentou o aresto: Simplesmente, num Estado de Direito, nunca os cidadãos (cidadãos-funcionários incluídos) podem ficar à mercê de puros actos de poder. Por isso, quando se trate de prever penas disciplinares expulsivas – penas, cuja aplicação vai afectar o direito ao exercício de uma profissão ou de um cargo político
(garantidos pelo artigo 47º, nºs 1 e 2) ou a segurança no emprego (protegida pelo artigo 53º) -, as normas legais têm que conter um mínimo de determinabilidade. Ou seja: hão-de revestir um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamentos capazes de induzir a inflicção dessa espécie de penas – o que se torna evidente, se se ponderar que, por força dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, elas só deverão aplicar-se às condutas cuja gravidade o justifique (cf. o artigo 18º, nº 2, da Constituição). No Estado de Direito, as normas punitivas de direito disciplinar que prevejam penas expulsivas têm de cumprir uma função de garantia. Têm, por isso, que ser normas delimitadoras.
É que a segurança dos cidadãos (e a correspondente confiança deles na ordem jurídica) é um valor essencial no Estado de Direito, que gira em torno da dignidade da pessoa humana – pessoa que é o princípio e o fim do poder e das instituições (artigos 2º e 266º, nºs 1 e 2, da Constituição).
As normas sub iudicio, mandando aplicar a medida de dispensa de serviço a comportamentos que indiciem “notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função” (artigo 94º, nº 2) – é dizer: a factos que levem “à invocação de falta” de “bom comportamento militar e cívico”, de “espírito militar” ou de “aptidão técnico-profissional” – não fornecem, pois, à entidade com competência para aplicar tal medida “um critério de decisão que lhe permita agir com segurança no momento de avaliar este ou aquele comportamento desviante”, do mesmo modo que
“não possibilitam, em termos razoáveis, o controlo judicial das decisões assim tomadas – o que tudo significa que não defendem os seus destinatários contra o arbítrio” (as palavras são do citado acórdão nº 666/94). Não cumprindo tais normas, em termos razoáveis, a função de garantia, elas são inconstitucionais, por violação do princípio que atrás se indicou.”
Mas sem razão.
Em primeiro lugar, deve salientar-se que a norma que estava em causa no citado Acórdão nº 666/94 era, no ponto que interessa, substancialmente diferente da que agora nos ocupa.
Tratava-se, com efeito, de norma contida num preceito do Regulamento Disciplinar aplicável ao pessoal da Caixa Geral de Depósitos, aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, que dispunha o seguinte:
“As infracções não especificadas nos artigos antecedentes são punidas do mesmo modo e em proporção da sua gravidade ou do dano por elas causado”.
E poderia, aí sem esforço, reconhecer-se um tipo totalmente aberto de infracção disciplinar em que a própria pena a aplicar ficava na discricionariedade do órgão competente para punir.
Não é o que acontece no caso em que a sanção está determinada e as condutas a ela sujeitas se reportam a deveres funcionais concreta e exaustivamente estabelecidos no EMGNR.
É o que, aliás, se diz, com inteira pertinência no voto de vencida da Exma Consª Maria dos Prazeres Beleza exarado no acórdão recorrido, chamando em particular a atenção para preceitos sancionatórios do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local:
“Pelo que toca à questão da não observância do “mínimo de determinabilidade” que seria de exigir à norma legal em apreciação, importa ter presente que não pode efectuar-se uma leitura isolada do nº 2 do artigo 94º, como se tal preceito não devesse conjugar-se com as normas que, no Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, estabelecem os deveres fundamentais dos respectivos militares (cfr., em particular, a al. m) do seu artigo 14º). Lembre-se, aliás, que o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local permite a aplicação da pena disciplinar de aposentação compulsiva perante “infracções que inviabilizarem a manutenção da relação funcional” (nº 1 do artigo 26º), “em caso de comprovada incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções” (nº 3 do artigo 26º).”
Não falta, pois, às normas em causa aquele mínimo de determinabilidade que as faria incorrer em violação do princípio invocado no acórdão recorrido, sendo certo que a caracterização do ilícito disciplinar, de modo a desejavelmente poder abranger uma multiplicidade de condutas censuráveis, exige, por vezes, o uso de conceitos indeterminados na definição do tipo.
Não é assim de sufragar a tese do acórdão recorrido quanto ao juízo de inconstitucionalidade, que nele se faz, e de acolher o que se decidiu, sobre a mesma matéria, no Acórdão nº 504/00.
4 - Como se disse, o acórdão recorrido não aprecia a questão das invocadas inconstitucionalidades, material (por violação do princípio da igualdade) e orgânica, das normas em causa, sendo certo que nas suas contra-alegações, o ora recorrido continua a defender que tais inconstitucionalidades se verificam no caso
Fê-lo, porém, o acórdão-fundamento nos seguintes termos:
“2.1. Que os aludidos artigos 94º e 75º não podem, de todo em todo, ser considerados como algo respeitante às bases do regime e âmbito da função pública
(cfr., por entre outros, e no tocante ao que deve ser entendido em tal conceito, o Acórdão deste Tribunal nº 154/86, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7º volume, 185 a 218), é circunstância que se não pode pôr em dúvida.
De outro lado, parece que sempre se imporia saber se aqueles normativos respeitam, como defende o recorrente, a matéria disciplinar, e isto sem se entrar, desde já, no problema de saber se, mesmo a dar-se resposta afirmativa àquela questão, ainda assim, por se tratar, nessa hipótese, de uma medida disciplinar que seria específica de um determinado grupo de agentes do Estado (cfr., no sentido de que os militares e agentes militarizados são de considerar como agentes do Estado, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 949), a edição legislativa referente aos mesmos normativos haveria de ser submetida aos ditames constitucionalmente impostos para o regime geral de punição das infracções disciplinares.
A jurisprudência tomada pelo Supremo Tribunal Administrativo, de que
é exemplo o acórdão impugnado e que daquela se faz eco, tem sustentado, sem discrepâncias, que a medida de dispensa do serviço é uma medida de natureza estatutária que se não confunde com qualquer pena disciplinar.
Também essa postura foi defendida no Parecer exarado pela Procuradoria-Geral da República no Procº nº 54/79 e que se encontra publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 292, 148 a 158, relativamente a uma medida de conteúdo semelhante à ora em apreço, constante do Regulamento de Disciplina Militar aprovado pelo Decreto-Lei nº 142/77, de 9 de Abril, e interpretada autenticamente pelo Decreto-Lei nº 203/78, de 24 de Julho.
Não se poderá, porém, como faz o acórdão recorrido, dizer expressamente que o mesmo foi defendido no Parecer da Comissão Constitucional nº
32/79 (in Pareceres da Comissão Constitucional, 10º volume, 81 a 196).
É que, muito embora neste último Parecer se dissesse, por entre o mais, que, “... na verdade, a natureza autónoma das medidas estatutárias, com fundamentos e fins diversos dos das penas disciplinares, torna aquelas independentes da extinção, quer do procedimento disciplinar, quer do criminal; são realidades que nada lhes dizem e que se movem em campos diferentes, não se chocando entre si”, também se aceitava “que a constitucionalidade das medidas estatutárias possa ser discutida”, mas que, simplesmente, isso teria de ser posto à luz do Regulamento de Disciplina Militar, corte normativa que, então, estava fora do objecto daquele Parecer.
Convém-se que, de um ponto de vista lógico-jurídico e, até, não afastando a perspectiva constitucional, se apresenta como um caminho cheio de escolhos a questão de se afirmar, sem mais, que a denominada sanção estatutária representa uma realidade diferente das sanções disciplinares (para maiores desenvolvimento, cfr. o voto de vencido aposto ao mencionado Parecer da Comissão Constitucional pelo vogal Consº Luís Nunes de Almeida, no qual se defendeu que o que caracteriza as sanções estatutárias “não é o tipo de infracção que ela visa punir, nem o processo conducente à respectiva aplicação, nem a entidade que a pode aplicar”, mas sim o facto de ela “«afectar a situação jurídica» do agente,
«atingindo-o como tal»; isto é, uma certa sanção é sempre estatutária desde que afecte o estatuto profissional do agente, desde que o atinja «na sua carreira profissional ou situação funcional, modificando-as em seu prejuízo»”).
Mas, mesmo que se concluísse que as denominadas sanções estatutárias haveriam de ser entendidas como sanções disciplinares, ao menos para efeitos do seu tratamento constitucional, nem por isso se haveria de seguir inelutavelmente
à conclusão a que chega o recorrente.
2.2. De facto, esgrime este com a circunstância de as normas em apreciação terem sido editadas por diplomas governamentais que não foram precedidos de autorização concedida pela Assembleia da República.
É que, mesmo aceitando que a matéria regulada nos artigos 94º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana e 75º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana dissesse respeito a matéria disciplinar (e continuando a pôr de remissa o problema acima focado) ou a matéria conexionada com direitos, liberdades e garantias (enquanto criadores de situações que podem ser vistas como afectando a carreira ou situação profissional dos militares da Guarda Nacional Republicana e, por isso, com ligação à própria segurança no emprego), o que se torna nítido é que a medida de dispensa de serviço ali estatuída não é algo de inovatoriamente consagrado.
Na realidade, uma tal medida, com um figurino em tudo semelhante, encontrava-se já prevista no Regulamento de Disciplina Militar e com reporte ao Decreto-Lei nº 203/78 - um e outro editados pelo órgão então dotado de poderes constitucionais para tanto - Regulamento esse que veio a ser aplicável aos militares da Guarda Nacional Republicana [cfr. nº 1 do artº 69º e nº 1 do artº
32º, ambos da Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro, artigos 2º, alínea e), e 16º, estes da Lei nº 11/89, de 1 de Junho; hoje em dia, contudo, após a entrada em vigor da Lei nº 145/99, de 1 de Setembro, aquele corpo especial de tropas ficou dotado de um regulamento de disciplina próprio]. Justamente por isso, ou seja, porque essa medida já lhes era aplicável, se explicitou no Decreto-Lei nº
333/83, de 14 de Julho, ao sistematizar as normas referentes à orgânica da Guarda Nacional Republicana que o militar do quadro permanente da Guarda Nacional Republicana no activo ou na efectividade de serviço que não convenha ao serviço ou ainda por razões de ordem moral, física, militar e técnico-profissional poderá ser dispensado do serviço ou passar às situações de reserva, reforma ou separado do serviço, após o apuramento processual dos factos
(cfr. artº. 70º, nº 1), sendo uma tal decisão da competência do comandante-geral, mediante parecer favorável do Conselho Superior da Guarda (nº
2 do mesmo artigo).
Não se pode, assim, dizer que a medida a que se reportam as normas em causa trouxe, relativamente aos militares da Guarda Nacional Republicana, algo de novo ou, se se quiser, lhes impôs uma medida à qual não estavam anteriormente sujeitos, ou se inovou, com carácter interpretativo ou integrativo ou conferindo uma acrescida e qualificada dimensão de natureza substantiva quanto à respectiva natureza, quanto às linhas rectoras do procedimento conducente sua aplicação (cfr., sobre o ponto, por entre outros, o Acórdão deste Tribunal nº 174/93, nomeadamente o seu ponto 6.2., publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º volume, 57 a 164)”
E, especificamente, sobre a alegada violação do princípio da igualdade, escreveu-se no mesmo acórdão:
“4. Sustenta ainda o recorrente que a consagração da medida em análise viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, pois que, não havendo diferença “quanto à sua missão nem quanto à sua tutela entre a força de segurança GNR e a força de segurança PSP”, não se justificaria que os membros da primeira estivessem sujeitos à medida, enquanto os não estavam os da segunda.
No que concerne ao princípio da igualdade, é já muito abundante a jurisprudência deste Tribunal. Citam-se, assim, a título exemplificativo, os Acórdãos números 186/90, 330/93, 335/94 e 565/96 (publicados na 2ª Série do Diário da República de, respectivamente, 12 de Setembro de 1990, 30 de Julho de
1993, 30 de Agosto de 1994 e 16 de Maio de 1996), de onde se pode extrair que o princípio da igualdade postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento diverso a situações de facto desiguais.
O princípio da igualdade não proíbe a diversidade de tratamento. O que veda é o estabelecimento de distinções sem fundamento racional e objectivo, ditadas pela irrazoabilidade e, logo, pelo mero arbítrio (parafraseando Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, 299, o que importa
“é que não se discrimine para discriminar”).
Por isso, impõe-se - para apurar se o princípio da igualdade é violado quando se está perante soluções legislativas que regulam de forma diversa situações que, prima facie, podiam merecer o mesmo tratamento - saber se o legislador, ao adoptar essa solução, no exercício da sua liberdade de conformação, foi informado por situações de facto que reclamam diversos tratamentos, que parametrizados finalisticamente, encontram razoabilidade e adequação na respectiva consagração.
Em face destas considerações, há que reconhecer que são profundas as diferenças entre as forças de segurança Guarda Nacional Republicana e Polícia de Segurança Pública.
A primeira é, seguramente, uma força de segurança que, como deflui do artº 1º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, é constituída por militares organizados num corpo especial de tropas, tem dependência do Ministro da Defesa Nacional, no que respeita à uniformização e normalização da disciplina militar, do armamento e do equipamento, pode ser colocada na dependência operacional do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas em caso de guerra ou em situação de crise (cfr. artº 9º da mesma Lei Orgânica), está subordinada a princípios de comando e os seus militares estão sujeitos a aquartelamento e enquadramento hierárquico muito próximo do das Forças Armadas. Estas características aproximam, pois, os militares da Guarda Nacional Republicana e a respectiva organização daqueloutras típicas da instituição militar (cfr., quanto a estas, cfr. o Acórdão deste Tribunal nº 103/87, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º volume, 83 a 182).
O mesmo se não passa com a Polícia de Segurança Pública, acerca da qual se não pode dizer, como o recorrente diz, que dela fazem parte «agentes militarizados» dessa força de segurança que, por o serem, ou melhor, não obstante o serem, não estão sujeitos a medida idêntica à sub specie (o recorrente alude ainda a que os militares das Forças Armadas não estão também sujeitos a tal medida o que, viu-se já, não corresponde à realidade); por outro lado, não se pode sustentar que esta força de segurança seja uma força de segurança militar, pois que, indubitavelmente, está organizada e hierarquizada em termos acentuadamente diversos reportadamente à Guarda Nacional Republicana.
As características que informam esta Guarda e a aproximam da instituição militar, ao que há que aditar, além disso, o que foi referido numa parte do quarto parágrafo do antecedente ponto 3., constituem, desta arte, todo um condicionalismo que deverá ser considerado como suporte bastante para que se conclua que não se apresenta irrazoável ou desprovida de fundamento racional (ou seja, que se não apresente como arbitrária) a solução consistente na adopção da medida de dispensa do serviço em relação aos militares da Guarda Nacional Republicana (à semelhança do que existe para os militares das Forças Armadas) e que, relativamente aos membros da Polícia de Segurança Pública, uma medida de idêntico jaez não tenha consagração.
Não se vislumbra, por isso, violação do princípio da igualdade”.
Ora, nada o recorrido adianta nas suas contra-alegações que leve o Plenário a não sufragar, sem necessidade de outras considerações, o decidido no acordão-fundamento, que, de resto, foi igualmente seguido no Acórdão nº 26/01.
5 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se:
a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 94º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei nº. 231/93, de 26 de Junho (com excepção do seu nº. 3 e do segmento do nº. 1 referente à dispensa de serviço a pedido do militar, que não constituem objecto do recurso) e 75º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 265/93, de 31 de Julho (com excepção das alíneas b) e c) do seu nº. 1, que também não constituem objecto do recurso); b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido que por este deverá ser substituído.
Lisboa, 13 de Novembro de 2001 Artur Maurício Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito (vencido, por inverter a posição que tomou no acórdão recorrido) Alberto Tavares da Costa (vencido nos termos do decidido no acórdão nº 91/2001) José Manuel Cardoso da Costa