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Processo n.º 262/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, com o n.º 263/13, o arguido A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, 15 de novembro (LTC), do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que o condenou, pela prática de um crime de desobediência previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.º3, do Código da Estrada, e 348.º, n.º1, alínea c), do Código Penal, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de €6,00, perfazendo o montante de €450,00, bem como na sanção acessória de proibição de condução de veículos motorizadas pelo período de 5 anos.
2. Pela decisão sumária n.º 191/213, proferida ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, decidiu-se não tomar conhecimento do recurso, por o seu objeto não incidir sobre questão de inconstitucionalidade normativa.
Exarou-se nessa decisão:
“1. Nos presentes autos, por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 19 de fevereiro de 2013, foi negado provimento ao recurso e confirmada a sentença proferida pelo 1.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Oeiras que condenou o arguido e ora recorrente A. pela prática de um crime de desobediência previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, e 348.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00, perfazendo o montante de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros), bem como, ao abrigo do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer espécie, na via pública, por um período de 5 (cinco) meses.
2. Inconformada, o arguido A. interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pela 5ª Secção do tribunal da Relação de Lisboa que, mantendo a decisão de primeira instância, indeferiu a arguição de inconstitucionalidades, suscitada pelo ora recorrente, nas alegações e conclusões do recurso.
Pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 355 do Código de Processo Penal e 70, 71 e 348 do Código Penal.
Tais normas, as dos artigos 355 do Código de Processo Penal e 70, 71 e 348 do Código Penal interpretadas no sentido de permitir que se condene o arguido pela pratica de um crime de desobediência, consubstanciam a violação dos Princípios constitucionais da Confiança, do In Dúbio Pro Reo, enquanto corolário do P. da Presunção de Inocência do Arguido, consagrado no art 32 n.º 2 da Constituição da República.
O disposto nos art. 355 do Código de Processo Penal e 70, 71 e 348 do Código Penal, tal qual foram interpretados, no sentido de permitir que se condene o arguido pela pratica de um crime de desobediência, violam os Princípios constitucionais da Confiança, do In Dúbio Pro Reo, enquanto corolário do P. da Presunção de Inocência do Arguido, consagrado no art 32 n.º 2 da Constituição da República.
As questões de inconstitucionalidade foram expressamente suscitadas, no requerimento de interposição de recuso, nas motivações e nas conclusões do recurso interposto da decisão de primeira instância.
13: Ao ter condenado o arguido pela pratica de um crime de desobediência, o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 355 do CPP, 70, 71 e 348 do CP, preceitos que foram interpretados em violação do art 32 da Constituição e do Princípio Constitucional da Confiança.
14: Ao não tendo absolvido o arguido, o Tribunal recorrido violou o art 355 do CPP, tendo o interpretado o aludido preceito em violação do P. In Dúbio Pro Reo, enquanto corolário do P. da Presunção de Inocência do Arguido, consagrado no art 32 nº 2 da Constituição da República.”
3. O recurso foi subsequentemente admitido.
II. Fundamentação
4. Sabido que a decisão que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional) e, entendendo-se que, no caso em apreço, o recurso não é admissível, cumpre proferir decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
5. No sistema português, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm necessariamente objeto normativo, devendo incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, e não sobre a apreciação de alegadas inconstitucionalidades imputadas pelo recorrente às decisões judiciais, em si mesmas consideradas, atenta a inexistência no nosso ordenamento jurídico-constitucional da figura do “recurso de amparo” contra atos concretos de aplicação do Direito.
Nas palavras do Acórdão n.º 138/2006 (acessível em www.tribunal constitucional.pt), a “distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.”
Daí que, quando se pretenda questionar a constitucionalidade de uma dada interpretação normativa, é indispensável que a parte identifique essa interpretação com o mínimo de precisão. Com efeito, segundo jurisprudência pacífica deste Tribunal e utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94 (acessível em www.tribunal constitucional.pt), “esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito, ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, afrontar a Constituição.”
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, como ocorre no presente caso, a jurisprudência constitucional vem entendendo, de modo reiterado e uniforme, que são pressupostos específicos deste tipo de recurso, de verificação cumulativa, a suscitação pelo recorrente da questão de inconstitucionalidade “durante o processo” e “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional); a efetiva aplicação, expressa ou implícita, da norma ou interpretação normativa, em termos de a mesma constituir “ratio decidendi” ou fundamento jurídico da decisão proferida no caso concreto, pressuposto decorrente da instrumentalidade da fiscalização concreta; e o esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam.
6. No caso presente, como decorre do requerimento de interposição de recurso, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional dos artigos 355.º do Código de Processo Penal e 70.º, 71.º e 348.º do Código Penal quando interpretados no sentido de permitir que se condene o arguido pela pratica de um crime de desobediência.
Assim delineado, o objeto do recurso não foi configurado como questão normativa, mas sim como um mero dissídio face à pronúncia judicial recorrida.
De facto, o recorrente não enunciou, em termos de generalidade e abstração, um qualquer critério normativo extraível dos preceitos legais que identifica e perfeitamente autonomizável das concretas operações subsuntivas feitas pelo julgador no caso concreto. Ao invés, ressalta que o recorrente se limita a colocar em crise a própria decisão judicial recorrida, enquanto ponderação concreta e casuística das circunstâncias próprias e específicas do caso concreto, que não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar.
Nestes termos, não tendo o recorrente enunciado uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, única passível de constituir objeto idóneo do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, impõe-se concluir pela impossibilidade de conhecer do objeto do presente recurso.
7. Sempre se diga que ainda que se descortinasse natureza normativa ao objeto do recurso, este não seria de conhecer porquanto o recorrente não suscitou, perante o tribunal recorrido, de forma processualmente adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
De facto, se atentarmos nas conclusões da motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde se faz menção aos princípios constitucionais alegadamente infringidos - conclusões 13ª e 14ª, verifica-se que o recorrente se limita a invocar a violação, no caso concreto, do disposto nos artigos 355.º do Código de Processo Penal e 70.º, 71.º e 348.º do Código Penal e, simultaneamente, a violação do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, sem que tenha enunciado qualquer interpretação normativa extraída das referidas normas legais, definida com o mínimo de precisão e dotada de generalidade e abstração.
A esse propósito, pode ler-se do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 489/04 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt): “se se utiliza uma argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito legal ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios constitucionais, tem-se por certo que a questão de desarmonia constitucional é imputada à decisão judicial, enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao ordenamento jurídico infraconstitucional que se tem por violado com essa decisão (…)”.
E, assim, inverificado o seu pressuposto específico de prévia suscitação, sempre estaria afastado o conhecimento do recurso.
III. Decisão
8. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, decide-se:
a) Não conhecer do recurso interposto para este Tribunal Constitucional pelo arguido A.; e
b) Condenar o recorrente nas custas, que se fixam, atendendo à dimensão e complexidade do objeto do recurso, em 7 (sete) Ucs.”
3. Inconformado, o recorrente apresentou reclamação para a Conferência, nos seguintes termos:
“O recorrente recorreu para o Tribunal Constitucional, do Acórdão proferido pela 5ª Secção do tribunal da Relação de Lisboa que, mantendo a decisão de primeira instância, indeferiu a arguição de inconstitucionalidades, suscitada pelo ora recorrente, nas alegações e conclusões do recurso
Para não variar, foi proferida a Decisão Sumária 191/2013, que decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso para o Tribunal Constitucional.
O Tribunal Constitucional deveria ter conhecido o recurso interporto pelo recorrente, por se verificarem, no caso concreto, os pressupostos de facto de direito da recorribilidade para este Tribunal.
Refere a Decisão Reclamada que, recorrente não enunciou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
Salvo o devido respeito, o recorrente suscitou - questão de inconstitucionalidade normativa, em primeira instância, designadamente nas alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa:
As questões de inconstitucionalidade foram expressamente suscitadas, no requerimento de interposição de recuso, nas motivações e nas conclusões do recurso interposto da decisão de primeira instância.
13: Ao ter condenado o arguido pela prática de um crime de desobediência, o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 355 do CPP, 70, 71 e 348 do CP, preceitos que foram interpretados em violação do art 32 da Constituição e do Princípio Constitucional da Confiança.
14: Ao não tendo absolvido o arguido, o Tribunal recorrido violou o art 355 do CPP, tendo o interpretado o aludido preceito em violação do P. In Dúbio Pro Reo, enquanto corolário do P. da Presunção de Inocência do Arguido, consagrado no art 32 n.º 2 da Constituição da República.
Pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 355 do Código de Processo Penal e 70, 71 e 348 do Código Penal.
Tais normas, as dos artigos 355 do Código de Processo Penal e 70, 71 e 348 do Código Penal interpretadas no sentido de permitir que se condene o arguido pela pratica de um crime de desobediência, consubstanciam a violação dos Princípios constitucionais da Confiança, do In Dúbio Pro Reo, enquanto corolário do P. da Presunção de Inocência do Arguido, consagrado no art 32 n.º 2 da Constituição da República.
O disposto nos art. 355 do Código de Processo Penal e 70, 71 e 348 do Código Penal, tal qual foram interpretados, no sentido de permitir que se condene o arguido pela pratica de um crime de desobediência, violam os Princípios constitucionais da Confiança, do In Dúbio Pro Reo, enquanto corolário do P. da Presunção de Inocência do Arguido, consagrado no art 32 n.º 2 da Constituição da República.
Assim sendo, não pode o Tribunal Constitucional deixar de conhecer o Recurso interposto pelo recorrente.”
4. Notificado, o Ministério Público tomou posição pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
5. Confrontada com decisão sumária de não conhecimento do recurso, fundada na ausência de colocação de questão normativa de constitucionalidade - antes na procura da sindicância do ato de julgamento, na vertente aplicativa do direito infraconstitucional -, vem o recorrente reclamar para a Conferência, o que fez através de requerimento despido de qualquer argumento dirigido a contrariar os fundamentos em que assentou a decisão sumária reclamada.
Na verdade, e como refere o Ministério Público, o recorrente limita-se a recolocar a questão inscrita no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e a transcrever parte da motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, nada mais oferecendo em apoio da afirmação de que enunciou questão de inconstitucionalidade normativa.
6. Ora, verifica-se que o recorrente não colocou à apreciação do Tribunal Constitucional qualquer critério ou padrão normativo, enunciado com vocação de generalidade e abstração, autonomizável da pura atividade subsuntiva e dissociável das particularidades do caso em apreço. Em questão, como expressamente se indica, foi colocada o juízo condenatório do arguido pela prática de um crime de desobediência, isto é, a concreta subsunção dos factos valorados como provados à norma típica do artigo 348.º do Código Penal e a verificação de erro de julgamento.
A chamada à colação do que consta da motivação de recurso em nada infirma essa asserção. Pelo contrário, ao articular juízo de violação pela decisão condenatória do disposto nos artigos 355.º do CPP e 70.º, 71.º e 348.º do Código Penal, resulta ainda mais nítido que a imputação de desconformidade constitucional é dirigida ao ato de julgamento, em si mesmo considerado, e não a ilegitimidade constitucional de regra ou padrão orientador e regulador de condutas e comportamentos. E, como se refere na decisão sumária, não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar o mérito da interpretação e aplicação do direito infraconstitucional feita pelos demais tribunais.
Merece, pois, confirmação a decisão sumária que, com fundamento na sua inidoneidade, não conheceu do objeto do recurso.
III. Decisão
7. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária reclamada.
8. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido.
Notifique.
Lisboa, 10 de maio de 2013. – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.