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Processo n.º 791/2011
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Por decisão de 21 de julho de 2009 do Tribunal Judicial de Monchique, A. e B. Lda., foram condenados, no que ora importa, pela prática de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete euros), a que corresponde a pena de prisão subsidiária de 80 (oitenta) dias, e na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €20,00 (vinte euros) (fls. 130 e seguintes).
Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Évora, este negou-lhe provimento. O primeiro arguido liquidou o valor correspondente à pena de multa em que fora condenado, tendo a mesma sido declarada extinta. Já a segunda arguida não procedeu ao pagamento voluntário. Uma vez que não lhe eram conhecidos bens penhoráveis, o Ministério Público promoveu que se notificasse o arguido A., enquanto gerente da citada sociedade, para proceder ao pagamento da multa em que a mesma havia sido condenada.
2. Em apreciação dessa promoção, a Juíza do Tribunal Judicial de Monchique recusou a aplicação, por inconstitucionalidade, da norma «contida na alínea a) do artigo 8.º do RGIT», por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade (fls. 320 e seguintes).
Na sequência desta decisão, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório, com fundamento na alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida como “LTC”), para apreciação da «inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1, al. a), do Regime Geral das Infrações Tributárias (aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de junho)» (fls. 332). Notificado para alegar, o recorrente Ministério Público pugnou pela não inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1, alínea a) do Regime Geral das Infrações Tributárias (doravante, “RGIT”), concluindo nos seguintes termos:
« 1. Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes consagrada no artigo 8º, nº 1, alínea a), do RGIT é de cariz ressarcitório e funda-se numa conduta própria, posterior e autónoma relativamente àquela que motivou a aplicação da sanção à pessoa coletiva.
2. Assim, aquela norma, na parte em que estabelece a responsabilidade subsidiária dos gerentes pelas multas aplicadas a pessoa coletiva em processo crime, pela prática de crime, não é inconstitucional, não violando os princípios da culpa, da igualdade, da proporcionalidade e da intransmissibilidade das penas.
3. Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso.»
Os recorridos não apresentaram contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
3. O Plenário do Tribunal Constitucional apreciou, no seu Acórdão n.º 389/2013 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), a constitucionalidade das normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT à luz dos mesmos parâmetros considerados na sentença recorrida. Na parte relevante da respetiva fundamentação, pode ler-se o seguinte:
« 3. O Tribunal Constitucional, em Plenário, pronunciou-se já sobre essa questão, ainda que por referência à correspondente norma do artigo 7º-A do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA).
No acórdão n.º 561/2011 decidiu-se não julgar inconstitucional a referida norma do artigo 7º-A do RJIFNA, com base na argumentação transposta de precedente acórdão da secção tirado a propósito das normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 8º do Regime Geral das Infrações Tributárias, e que assenta essencialmente na seguinte ordem de considerações:
O que o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT prevê é uma forma de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento da multa ou da coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento quando a sociedade ou pessoa coletiva foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo.
O que está em causa não é, por conseguinte, a mera transmissão de uma responsabilidade contraordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa coletiva; mas antes a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.
A simples circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional; e de nenhum modo permite concluir que tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da responsabilidade contraordenacional.
Por outro lado, o facto de a execução fiscal poder prosseguir contra o administrador ou gerente é uma mera consequência processual da existência de uma responsabilidade subsidiária, e não constitui, em si, qualquer indício de que ocorre, no caso, a transmissão para terceiro da sanção aplicada no processo de contraordenação (cfr. artigo 160º do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
Acresce que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes assenta, não no próprio facto típico que é caracterizado como infração contraordenacional, mas num facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal.
É esse facto, de caráter ilícito, imputável ao agente a título culpa, que fundamenta o dever de indemnizar, e que, como tal, origina a responsabilidade civil.
Tudo leva, por conseguinte, a considerar que não existe, na previsão da norma do artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, um qualquer mecanismo de transmissibilidade da responsabilidade contraordenacional, nem ocorre qualquer violação do disposto no artigo 30º, n.º 3, da Constituição, mesmo que se pudesse entender - o que não é líquido - que a proibição aí contida se torna aplicável no domínio das contraordenações. […].»
Tais argumentos são transponíveis para o quadro problemático em apreço, em que a responsabilidade subsidiária do gerente encontra expressão em pena de multa imposta em processo criminal, como, de resto, já se entendeu nos Acórdãos n.ºs 249/2012 e 405/2013 (igualmente disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Na verdade, está em causa apenas uma responsabilidade de natureza civilística – trata-se de efetivar uma responsabilidade de cariz ressarcitório, fundada numa conduta própria, posterior e autónoma relativamente àquela que motivou a aplicação da sanção à pessoa coletiva. O chamamento do terceiro a responder pela quantia que não foi possível obter mediante execução do património do primitivo devedor resulta de ser imputada a uma sua conduta culposa a não satisfação das 'relações de crédito emergentes da aplicação de multas ou coimas' às pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados a que a sanção foi aplicada. Não é a sanção aplicada pelo ilícito contraordenacional ou penal que se transmite, mas a responsabilidade culposa pela frustração da satisfação do crédito correspondente que se efetiva contra o gerente ou administrador que, incumprindo deveres funcionais, não providenciou no sentido de que a sociedade efetuasse o pagamento da coima ou multa em que estava definitivamente condenada e deixou criar uma situação em que o património desta se tornou insuficiente para assegurar a cobrança coerciva.
Fazendo a aplicação deste entendimento ao caso dos autos, resta concluir pela não inconstitucionalidade do disposto no artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT, na parte em que consagra a responsabilidade subsidiária dos gerentes por multas aplicadas a pessoas coletivas em processo criminal.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional o artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT, na parte em que consagra a responsabilidade subsidiária de gerentes por multas aplicadas a pessoas coletivas em processo de contraordenação; e, em consequência,
b) Conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da sentença recorrida de harmonia com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 10 de outubro de 2013. – Pedro Machete – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.