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Processo n.º 493/00
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. A..., Ldª, foi autuada em 11 de Novembro de 1999 por ter permitido que um veículo de que é proprietária circulasse sem ter sido submetido a inspecção periódica obrigatória, tendo, de acordo com o auto, infringido as normas constantes do 'art. 1º do Dec-Lei 254/92 conj. n.º 1 da Portaria Regional 63/96 de 26 Set.' e sendo condenada ao pagamento de coima de 50.000$00. Notificada desta decisão, apresentou impugnação sustentando a inconstitucionalidade da Portaria Regional n.º 63/96, de 26 de Setembro. Por decisão de 18 de Janeiro de 2000, o Coordenador dos Transportes Terrestres da Região Autónoma dos Açores condenou a impugnante no pagamento de coima no valor de 60.000$00 acrescida de custas, alegando que 'à Administração não lhe compete apreciar a constitucionalidade de normas aplicáveis à ordem jurídica nacional'. Não se conformando, a impugnante interpôs recurso desta decisão junto do Tribunal Judicial da Povoação invocando a nulidade da mesma por não indicar a norma violada, e por omissão de pronúncia em relação à questão de constitucionalidade invocada previamente. Para além disso, suscitou novamente a questão da conformidade com a Lei Fundamental da Portaria Regional n.ºs 9/94 e
63/96, nos seguintes termos:
'22. E não se diga que a norma invocada implicitamente na decisão e que consta do próprio auto de notícia indicada como a Portaria Regional n.º 63/96 que foi publicada no Jornal Oficial n.º 39, I Série de 26 de Setembro, ‘não põe em causa o merecimento dos autos’
23. Tal portaria, ou melhor, essa Portaria e aquela que é por ela alterada – a
9/94 publicada no Jornal Oficial n.º 16, I Série de 21 de Abril são inconstitucionais.
24. Com efeito, invocam tais Portarias Regionais a competência conferida às Regiões Autónomas na alínea g) do n.º 1 do artigo 229º da Constituição.
25. Ora, dispõe aquele preceito constitucional (ao tempo da publicação das Portarias):
1. As regiões autónomas são pessoas colectivas de direito público e têm os seguintes poderes, a definir nos respectivos estatutos: ... g) Exercer poder executivo próprio.
26. Não obstante a pretensão de exercer poder executivo próprio, o que, no fundo se faz com aquelas Portarias Regionais é a regulamentação do Dec. Lei n.º 254/92 de 20 de novembro, derrogando os diplomas legais emanados do Ministro da Administração Interna em regulamentação aquele Decreto-Lei ao abrigo do disposto no n.º 2 do seu artigo 1º.
27. E, o Dec. Lei n.º 254/92 não prevê a sua regulamentação específica pelos
órgãos próprios de Governo da Região e muito menos por Portaria de um Secretário Regional.
28. Não restando quaisquer dúvidas de que à face da Constituição e do Estatuto Político Administrativo o poder de regulamentação exercido por aquelas Portarias, não se insere em poder executivo próprio.
29. Existe assim manifesta inconstitucionalidade orgânica e material das Portarias Regionais atrás identificadas.
30. Eventualmente, o poder regulamentar do Dec. Lei n.º 254/92, como lei geral, poderia ser exercido pela Assembleia legislativa Regional nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 229º, conjugado com o n.º 1 do art. 234º ambos da Constituição da República (com a redacção ao tempo da publicação das Portarias regionais) mas nunca por um membro do Governo Regional – um Secretário Regional.
31. Porém, aquelas Portarias não tratam de matéria do interesse específico para a Região Autónoma dos Açores ou sequer o invocam.
32. Com efeito, o interesse específico não é evidente, nem tampouco os próprios diplomas o invocam ou de qualquer forma o justificam, pelo que nem sequer ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art. 229º da Constituição o poder de legislar dos órgãos de governo próprio da Região, nomeadamente um Secretário poderia Ter sido exercido.
31. Por isso, ainda que fosse invocada tal disposição da Constituição da República Portuguesa, sempre estaria presente a inconstitucionalidade material das Portarias Regionais n.ºs 9/94 e 62/96.'
2. Por decisão de 14 de Abril de 2000, o Tribunal a quo considerou não ter existido o vício de omissão de pronúncia por nenhuma das duas razões invocadas, e julgou inconstitucionais as Portarias Regionais n.ºs 9/94, de 21 de Abril e
63/96, de 26 de Setembro, 'por violação dos artigos 229º, n.º 1, alínea d), 2ª parte e 234º, da C.R.P, na redacção vigente à data da publicação dessas Portarias', recusando a sua aplicação e absolvendo, por conseguinte, a arguida da prática da contra-ordenação em causa.
É desta decisão que vem interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso obrigatório de constitucionalidade, no qual o recorrente concluiu da seguinte forma a suas alegações:
'1º - Os governos regionais apenas dispõem de competência regulamentar relativamente à legislação regional, não podendo a invocação do genérico poder executivo próprio a que alude a alínea g) do n.º 1 do artigo 229º da Constituição da República Portuguesa, na redacção anterior à emergente da última revisão constitucional, servir de suporte à edição de verdadeiros regulamentos de execução de legislação da República, adaptando a regulamentação e os regimes jurídicos vigentes em todo o País a pretensas especificidades regionais.
2º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade orgânica constante da decisão recorrida.' A recorrida, nas suas alegações, referiu apenas 'acompanhar integralmente as alegações produzidas pelo Ilustre Senhor Procurador-Geral Adjunto'. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Constituição, tem como objecto a apreciação da constitucionalidade das Portarias n.ºs 9/94, de 21 de Abril e 63/96, de 26 de Setembro, aprovadas pelo governo regional dos Açores, através da Secretaria Regional da Habitação, Obras Públicas, Transportes e Comunicações, invocando o seu 'poder executivo próprio' ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 229º (actual artigo 227º) da Constituição da República. O governo da Região Autónoma dos Açores estabeleceu, por tais portarias, normas relativas às inspecções periódicas, nessa região, para verificação das condições de segurança dos veículos e sua conformidade com o modelo aprovado. O tribunal recorrido recusou, na verdade, a aplicação das normas constantes das referidas portarias, por considerar estes diplomas feridos de inconstitucionalidade orgânica (e formal), 'por violação dos artigos 229º, n.º
1, alínea d), 2ª parte, e 234ºda C.R.P.', por esse motivo tendo absolvido a arguida da prática da contra-ordenação pela qual havia sido administrativamente sancionada. Verificam-se, pois, os requisitos indispensáveis para se tomar conhecimento do recurso.
4. Das portarias regionais em causa, emitidas ao abrigo do artigo 229º, n.º 1, alínea g) da Constituição, a Portaria n.º 9/94 invoca expressamente, como lei que visa regulamentar, o Decreto-Lei n.º 254/92, de 20 de Novembro (o qual foi, entretanto, revogado pelo artigo 42º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 550/99, de 15 de Dezembro, que estabeleceu o novo regime jurídico da actividade de inspecções técnicas de veículos a motor e seus reboques designadamente quanto à autorização para o exercício da actividade de inspecção, à aprovação, abertura, funcionamento, suspensão e encerramento de centros de inspecção e ainda ao licenciamento dos técnicos de inspecção; as inspecções técnicas periódicas foram reguladas pelo Decreto-Lei n.º 554/99, de 16 de Dezembro). Visava o governo regional estabelecer, para a Região Autónoma, normas distintas das adoptadas nas portarias do Ministério da Administração Interna emitidas ao abrigo daquele decreto-lei (v. os artigos 1º, n.º 2, 5º e 6º, n.º 1 deste diploma) – designadamente, das Portarias n.ºs 267/93, de 11 de Março e 117-A/96, de 15 de Abril (que aprovou o Regulamento de Inspecções Periódicas Obrigatórias). Trata-se, pois, de um diploma que visava regulamentar, não legislação regional, mas uma lei geral emanada de um órgão de soberania – o Decreto-Lei n.º 254/92, de 20 de Novembro. Este, conjuntamente com a respectiva 'legislação regulamentadora', era expressamente referido na Portaria n.º 9/94, dizendo-se que o respectivo regime jurídico 'não se encontra adequado à conjuntura existente na Região Autónoma dos Açores' (nestes termos, o preâmbulo da citada Portaria). Por sua vez, a Portaria n.º 63/96, 'considerando a experiência verificada, na Região Autónoma dos Açores, com um ano de realização de inspecções periódicas obrigatórias a veículos', e considerando 'conveniente harmonizar a periodicidade, relativa às inspecções subsequentes, com a necessidade de a orientar no sentido de garantir um acréscimo de segurança para todos os veículos em circulação', alterou o âmbito e periodicidade das inspecções obrigatórias previstas na citada Portaria Regional n.º 9/94, de 21 de Abril. Quanto às sanções, eram previstas contra-ordenações nas portarias (assim, o artigo 68º, n.º 1, da citada Portaria n.º 9/94), estabelecidas 'sem prejuízo do disposto no artigo 16º do Decreto-Lei n.º 254/92, de 20 de Novembro' (que igualmente previa sanções contraordenacionais), sendo certo, porém, que se regulava em termos especiais (assim, nos artigos 40º e segs. da Portaria n.º
9/94), no que ora interessa, o 'âmbito e periodicidade das inspecções obrigatórias'.
5. Nos termos do artigo 229º, n.º 1, alínea d), da Constituição, na redacção em vigor à data da aprovação dos diplomas regionais em questão – que era a anterior
à resultante da IV revisão constitucional –, um dos poderes das regiões autónomas é justamente, 'regulamentar a legislação regional e as leis gerais emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar.' Ora, no presente caso, poder-se-ia, desde logo, discutir se a regulamentação do Decreto-Lei n.º 254/92, de 20 de Novembro foi reservada ao Governo, uma vez que, nos artigos 1º, n.º 2 (relativos aos veículos sujeitos a inspecção periódica obrigatória) e 6º, n.º 1 (prazos de inspecção obrigatória) deste diploma, em questão no presente caso, se remete para 'portaria do Ministério da Administração Interna'. Seja, porém, como for quanto a esta questão, resultava do artigo 234º, n.º 1
(actual artigo 232º, n.º 1), da Constituição, à data da aprovação das portarias
9/94 e 63/96, em questão, que o exercício das atribuições previstas na segunda parte do artigo 229º, n.º 1, alínea d), da Constituição – regulamentar as leis gerais emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar – era da exclusiva competência da assembleia legislativa regional, e não do governo regional. Ou seja: mesmo admitindo que a regulamentação do Decreto-Lei n.º 254/94, de 20 de Novembro, se incluía nos poderes da Região Autónoma dos Açores, é certo que não poderia ser efectuada, nos termos dos artigos 229º, n.º 1, alínea d) e 234º, n.º 1, da Constituição, pelo governo regional, ao qual competia apenas competência para 'regulamentar a legislação regional'. A competência para o exercício dos poderes regulamentares da regiões autónomas, relativos apenas à legislação regional e à legislação geral emanada dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar, encontra-se, na verdade, constitucionalmente dividida pela assembleia legislativa regional e pelo governo regional. Nos termos da Constituição, à assembleia legislativa regional compete exclusivamente regulamentar leis gerais emanadas de órgãos de soberania, enquanto o governo regional tem competência apenas para regulamentação da legislação regional. E tal divisão de competências resulta, também, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (aprovado pela Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto e revisto pela Lei n.º 9/87, de 26 de Março) – artigos 32º, n.º 1, alínea i), e 56º, alínea c).
6. Os diplomas em análise no presente recurso foram, porém, emanados com invocação expressa, não da alínea d), mas sim da alínea g) do n.º 1 do artigo
229º da Constituição, segundo o qual as regiões autónomas dispõe de 'poder executivo próprio', sendo que o governo regional é o seu órgão executivo (de certa forma no mesmo sentido, o artigo 56º, alínea c) do citado Estatuto Político-Administrativo refere-se também à elaboração dos regulamentos necessários 'ao bom funcionamento da administração da Região'). O que seja materialmente este 'poder executivo próprio', é algo que não se encontra expressamente definido na Constituição. É claro, porém, que tal genérico poder executivo próprio das regiões autónomas (que seria exercido pelo governo regional enquanto seu órgão executivo) não pode ser invocado para se subverterem as regras constitucionais de reserva de competência, à assembleia legislativa regional, para regulamentar as leis gerais emanadas dos órgãos de soberania. A noção de 'poder executivo próprio' referida na alínea g) do n.º 1 do artigo
229 (actualmente 227º) da Constituição foi recentemente tratada por este Tribunal no Acórdão n.º 120/99 (publicado no Diário da República, II série, n.º
154, de 5 de Julho de 1999), no qual estava em causa uma resolução de um governo regional que formulava determinados requisitos ou condições para progressão na carreira na função pública. Como então se salientou:
«Poderia, no entanto, objectar-se que o 'desenvolvimento' do DL nº 248/85 – pressuposto de toda a expendida argumentação – não foi objectivo da 'Resolução', como decorreria da expressa invocação do artigo 229º nº 1 alínea g) da CRP, ao abrigo do qual aquela fora emitida pelo Governo Regional. Mas, sem razão. Atribui o artigo 229º nº 1 alínea g) da CRP às regiões autónomas o exercício de
'poder executivo próprio'. Indefinido na CRP o conteúdo material deste poder, ele aponta, porém, para o exercício da função administrativa pelo órgão superior da administração regional
– o governo regional. No caso da Região Autónoma dos Açores, o respectivo estatuto politico-administrativo atribui ao governo poderes que se integram, claramente, no âmbito da função administrativa; é p. ex. o caso do disposto nas alíneas b) a f) do artigo 56º do dito Estatuto. Sem necessidade de enunciar positivamente o complexo desses poderes, parece líquido que neles se não compreende o de 'legislar', matéria reservada à assembleia legislativa, com as limitações decorrentes do disposto nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 229º da CRP, só podendo os governos regionais produzir normas regulamentares, emitindo regulamentos de diplomas legislativos regionais (cfr. neste sentido Gomes Canotilho e Vital Moreira in ob. cit., p .
856). Ora, por um lado, o conteúdo normativo da Resolução nº 179/91 não traduz qualquer regulamentação de decreto legislativo regional (suposto que, no caso, a assembleia legislativa regional pudesse legislar sobre a matéria, o que, vimos já, não seria constitucionalmente admissível). Por outro, visando produzir efeitos externos e introduzir no ordenamento jurídico, com inovação, uma alteração essencial às regras de acesso em carreira de função pública, a mesma Resolução acaba, substancialmente, por assumir as características de acto legislativo, cuja emissão a CRP proíbe aos governos regionais. O respaldo que procura no artigo 229º nº 1 al. g) da CRP não faz, assim, subtrair a Resolução nº 179/91 ao juízo de inconstitucionalidade orgânica, que antes se reforça pelo acrescido fundamento da violação daquele preceito constitucional. Alcançada esta conclusão, desnecessário se torna o Tribunal averiguar se a Resolução enferma também de inconstitucionalidade formal, como se julgou na sentença recorrida.» (itálico aditado)
7. As considerações transcritas – com a ressalva, irrelevante para se reconhecer competência regulamentar ao governo regional, de que não está no presente caso em questão matéria reservada à Assembleia da República, mas apenas a regulamentação de um decreto-lei – afiguram-se transponíveis para o caso vertente. Também aqui o respaldo expresso na alínea g) do n.º 1 do artigo 229º da Constituição, relativo genericamente ao poder executivo próprio das regiões autónomas não pode servir para fundamentar, em contravenção às regras constitucionais (então o artigo 234º, n.º 1) de reserva de competência regulamentar à assembleia legislativa regionais, uma competência do governo regional para emanar regulamentos executivos da legislação nacional. Como bem salienta o Ministério Público nas suas alegações, tal poder executivo próprio,
'quando se deva concretizar na edição de um regulamento de execução e desenvolvimento da legislação nacional, terá naturalmente de ser exercido pela respectiva assembleia legislativa regional, nos termos do disposto no artigo
234º, n.º 1, conjugado com a segunda parte da alínea d) do n.º1 do artigo 229º da Constituição da República Portuguesa, na versão então em vigor.'
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar organicamente inconstitucionais as normas constantes das Portarias Regionais n.ºs 9/94, de 21 de Abril e 63/96, de 26 de Setembro, da Região Autónoma dos Açores, por violação do artigo 234º, n.º 1, conjugado com o artigo 229º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, na redacção anterior à Lei Constitucional n.º 1/97; b. Em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita. Lisboa, 26 de Junho de 2001 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa