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Proc. nº 239/01 TC – Plenário Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
1 – No recurso interposto por J... e M..., identificados nos autos, foi proferida a seguinte decisão sumária:
A – Recurso de J... :
1 – J..., com os sinais dos autos, interpõe recurso para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 19730 e segs., pretendendo que se declare a inconstitucionalidade material das normas ínsitas nos seguintes preceitos legais:
“(1) o artigo 313º nº 1 do Código Penal, incriminador da burla, quando interpretado e aplicado em termos, como o foi no caso, de fazer o requisito típico da astúcia coincidir com o conceito jurídico civilístico da reserva mental de incumprimento” que se diz ser materialmente inconstitucional “por violação do artº 29º nº 1 da CRP, da CRP, na parte em que este tutela a regra da legalidade incriminatória, pois projecta o âmbito material do tipo incriminador para além dos limites consentidos por aquele princípio”;
“(2) os artigos 358º e 359º do CPP – quando interpretados e aplicados, como o foram no caso, em termos de se considerar como uma alteração meramente não substancial de factos a decorrente de um arguido, pronunciado de modo expresso por burla cometida por um modus operandi, o da reserva mental de incumprimento da prestação de serviços proposta e paga antecipadamente na totalidade, vir ser condenado por outros factos, não descritos de modo expresso na pronúncia, pelos quais se lhe imputou um engrandecimento do preço proposto e pago”, que se entende serem materialmente inconstitucionais, “por violação dos artigos 32º nº
1 e nº 5 da CRP”;
“(3) o artigo 359º nº 1 do CPP, quando interpretado e aplicado, como o foi no caso, de modo a que uma alteração de natureza substancial implique, não uma comunicação ao MP, para efeitos de procedimento penal, “não podendo ser tomada em conta pelo tribunal para efeito de condenação”, mas sim, como se fez no caso em apreço, o reenvio do processo para um outro julgamento sobre o mesmo objecto” que se diz ser materialmente inconstitucional, “por violar o disposto no artigo
32º nºs 1 e 5 da CRP”;
“(4) o artigo 374º nº 2 do CPP, na redacção em vigor à data em que foi proferido o aresto de primeira instância, de cuja falta de fundamentação se trata, anterior por isso à da Lei nº 59/98, de 25.08, quando interpretado e aplicado, como o foi no caso, em termos de se contentar em matéria de fundamentação e quanto às “provas que serviram para formar a convicção do tribunal” com o mero enunciado dos meios de prova testemunhal, pericial e documental, sem mais qualquer referência” que se defende ser materialmente inconstitucional “por violação do disposto no artigo 205º nº 1 da CRP”.
O recurso foi admitido por despacho de fls 19817, o que nos termos do artigo 76º nº 3 da LTC não vincula este Tribunal.
Vejamos se, relativamente a cada uma das referidas questões de constitucionalidade, deve o Tribunal conhecer do seu objecto.
2 – Resulta do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC e é jurisprudência pacífica deste Tribunal que as normas (ou uma sua interpretação), cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, tenham sido efectivamente aplicadas, como ratio decidendi, pela decisão judicial impugnada.
Impõe-se, com efeito, que o julgamento da questão de constitucionalidade a proferir pelo Tribunal Constitucional se repercuta na decisão recorrida, implicando o juízo de inconstitucionalidade pretendido, no caso do recurso interposto ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC, a reformulação daquela decisão (artigo 80º nº 2 da LTC).
Mas essa reformulação, dada a instrumentalidade do recurso para o Tribunal Constitucional, há-de ter um sentido útil; devendo incidir, apenas, na parte da decisão recorrida que se fundamenta na norma cuja inconstitucionalidade se pretende que venha a ser declarada (e, eventualmente, noutras que daquela decorram), não poderá ela ser prejudicada pela solução dada, na mesma decisão, a outras questões que, por não abrangida no âmbito do recurso de constitucionalidade, se irá manter incólume; esta manutenção determinará, pois, que a parte decisória fundamentada na norma (ou normas) em causa no recurso de constitucionalidade não tenha, utilmente, que ser reformulada.
Saber se isto se verifica no caso impõe que se analise, com a brevidade possível, o julgamento de inconstitucionalidade proferido pelo Tribunal Constitucional no acórdão de fls. 19572 e segs. e o que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu no acórdão ora recorrido em cumprimento daquele julgamento.
O julgamento de inconstitucionalidade traduziu-se nesta fórmula decisória:
“b) Julgar inconstitucionais as normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP quando interpretadas no sentido de se não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial – a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificamente enunciados, descritos ou discriminados, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados nos artigo 32º nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.”
Unificando o que o ora recorrente José Beleza e o co-arguido Costa Freire, então também recorrente, impugnavam (“a questão abordada pelos recorrentes é no essencial a mesma”) entendeu-se no acórdão em análise que “o que ambos contestam, face às garantias constitucionais em matéria de processo penal, é a possibilidade de inclusão, no acórdão condenatório, entre os factos dados como provados, de factos que não constavam especificadamente da pronúncia, muito embora se pudessem eventualmente extrair de documentos juntos aos autos – designadamente das propostas e facturas, bem como dos relatórios periciais nºs
1/90 e 13/90, constantes do apenso M – que suportavam essa mesma pronúncia”.
Esses factos reportavam-se ao modus operandi do crime de burla por que os então recorrentes tinham sido condenados e que, no acórdão condenatório, se traduziria no “empolamento de preços, pelo seu artificial agravamento de custos e manipulação da base de incidência sobre a qual haveria de recair uma devida comissão de agência” quando nos termos da pronúncia aquele crime fora cometido
“através da (...) intenção de não cumprir a totalidade da prestação””.
Tendo o STJ entendido que tais factos, embora não textualmente descritos na pronúncia, se retiravam nomeadamente dos elementos contidos nos relatórios periciais para os quais remetiam quer a acusação, quer a pronúncia - pelo que não poderiam ser considerados “factos novos” nem constituir alteração dos factos constantes da pronúncia - decidiu-se no acórdão do Tribunal Constitucional que as garantias de defesa do arguido e os princípios do acusatório e do contraditório consagrados no artigo 32º nº e 5 da CRP impunham que a consideração daqueles mesmos factos na sentença condenatória se entendesse como
“alteração dos factos”, para efeitos do disposto nos artigos 358º e 359º do CPP,
Deixou-se, porém, claro que não competia ao Tribunal Constitucional decidir, perante os factos em causa, quais as alterações que deveriam ser consideradas substanciais e quais as que deveriam ser qualificadas como não substanciais – o julgado imporia apenas que se não repetisse a decisão de não haver “alteração dos factos”.
Remetidos os autos, o STJ elabora então novo acórdão, ora recorrido, que se pronuncia sobre as seguintes questões que respeitam só, ou também, ao recorrente José Beleza
- Contradições na matéria de facto
- Alterações da matéria de facto no acórdão condenatório
- Falta de fundamentação da matéria de facto
Sobre a primeira questão, “recuperando” o que no anterior acórdão tinha constituído um voto de vencido, a decisão agora impugnada reconheceu, no acórdão condenatório de 1ª instância, a existência de “contradições insanáveis” que enumerou, o que “implicará a anulação do julgamento e o decretamento do reenvio dos autos, a determinar no momento oportuno”.
Quanto à segunda questão, decidiu o STJ, relativamente aos factos que eram concretamente apontados pelos recorrentes no recurso para aquele Tribunal, que ocorriam alterações substanciais e alterações não substanciais – as quais concretiza; no que concerne ao recorrente escreve-se:
“E, relativamente ao que foi referido pelo arguido José Beleza de um suposto engrandecimento de preços, constitutivo de uma alteração dos factos descritos na pronúncia, há a notar que o cotejo de toda a matéria constante da pronúncia, relacionado com os preços da campanha, como o que sobre esse assunto, foi dado como provado, só permite encontrar a seguinte matéria que não pode ser considerada como divergência: Enquanto na pronúncia se afirmou (vd fls. 12559), que os arguidos se apoderaram, logo em 5 de Agosto de 1987, da quantia de 17588204$00, como comissão de agência, pela realização das campanhas publicitárias, no acórdão veio a consignar-se que os arguidos (anteriormente identificados e que não são todos os que foram pronunciados por esse facto) se apoderaram imediatamente de
17402782$80 (IVA incluído) como comissão de agência pela realização de todas as campanhas publicitárias. Quanto a este ponto, por conseguinte, não se verifica a apontada contradição”.
No que respeita à última questão, o acórdão decidiu não ocorrer violação de lei pois “basta comprovar o que foi apontado no mesmo acórdão como fundamento da convicção do Tribunal para se concluir que ao arguido falece razão, tanto mais que a lei não impõe que se diga expressamente em relação a cada testemunha e de forma discriminada, quais os meios de prova que serviram casuisticamente de base para a convicção do julgador”.
Escreveu-se ainda no mesmo acórdão:
“A circunstância de se verificarem os já apontados vícios torna inútil a apreciação dos seguintes pontos dos recursos:
........................................................................................................... Requisitos da burla (aproveitamento de situação existente etc, e a burla quanto ao Estado e falta de engano da Ministra da Saúde...A reserva mental de não incumprimento e o artifício fraudulento para a burla...). Conceito de astúcia, para a burla.
..........................................................................................................”
Convém, por último, extractar do mesmo acórdão alguns passos relevantes, onde se pretende justificar o conhecimento do vício de contradição entre os factos dados como provados e os dados como não provados:
“Poder-se-ia defender que, por na sequência do decidido pelo Tribunal Constitucional, se ter de aceitar a existência de o acórdão de primeira instância ter incorrido no vício da alteração (se substancial, se não substancial é problema que ficou cometido a este Supremo determinar e que será oportunamente apreciado) só caberia, agora, determinar a natureza da alteração para se poder saber se haveria apenas que anular a parte final do julgamento, isto é, a prolação do acórdão de primeira instância, para poder ser dado cumprimento, ou ao preceituado no artigo 359º, ou ao artigo 358º do Código do Processo penal, mas não parece que a questão seja tão simples. Na verdade, ao ter sido determinada a reformulação do acórdão deste Supremo Tribunal, para apuramento da natureza da alteração dos factos, torna-se necessário proceder, na medida do possível, à reapreciação do objecto dos recursos na parte respeitante às matérias não afectadas pelas consequências daquela ou daquelas alterações de factos, uma vez que o mencionado acórdão deste Supremo deixou necessariamente de produzir quaisquer efeitos, pelo menos quanto
à parte criminal, por força da decisão do Tribunal Constitucional, já que a decisão de primeira instância, como já foi referido terá de ser anulada (total ou parcialmente) a fim de ser dado cumprimento aos já aludidos artigos 359º ou
358º”.(sublinhados nossos)
E, mais diante, diz-se:
“(...) a existência dos vícios apontados pelo Tribunal Constitucional está intimamente conexa com situações susceptíveis, eventualmente, de enquadramento em vícios processuais que, a verificarem-se, implicam a anulação do julgamento e o reenvio dos autos para outro Tribunal, isto é a primeira pode implicar que, no exacto cumprimento do decidido pelo Tribunal Constitucional, se possa ter de questionar a própria determinação do Tribunal que deve decidir, a final, o caso trazido a julgamento, situação que esta se traduz, como é óbvio, no suscitar de um problema prévio ao da determinação da natureza da mencionada alteração dos factos.” (sublinhados nossos)
A parte decisória do acórdão expressa-se nos seguintes termos:
“Desta forma e em função do que fica exposto, para além da ocorrência, no acórdão recorrido, de vícios de alteração substancial e não substancial de factos constantes da pronúncia, consagrados, respectivamente, nos artigos 359º e 358º do Código do Processo Penal que conduziriam à aplicação da sanção processual da anulação da decisão para ser dada oportunidade aos arguidos de deduzirem e organizarem a sua defesa, por se verificarem as apontadas contradições insanáveis de fundamentação, anulam o julgamento, na parte respeitante aos arguidos Costa Freire, José Beleza, Eduardo Figueiredo, José Correia e Agostinho Cruz, e à demandada cível PA, Lda, e determinam o reenvio dos autos para o Tribunal mais próximo, de composição e categoria idênticas às do Tribunal recorrido que, na mesma comarca, resultar da distribuição (artigo
426º-A nºs 1 e 2 do Código do Processo Penal).” (sublinhados nossos).
Colhe-se, assim, do acórdão recorrido uma ideia central, de decisiva relevância no julgamento do presente recurso: dando lugar a alteração substancial ou não substancial dos factos à anulação (total ou parcial) do acórdão condenatório (“da decisão”), a verificação do vício de “contradições insanáveis de fundamentação”, matéria que o STJ entendeu dever reapreciar, na reformulação do seu anterior acórdão, determina outro tipo, mais radical, de decisão: a anulação do próprio julgamento e o reenvio para outro tribunal de 1ª instância.
É, pois, e desde logo, errada a leitura que o recorrente José Beleza faz do acórdão recorrido quando imputa a sanção processual de anulação do julgamento e reenvio dos autos à ocorrência de alteração substancial dos factos
– nos próprios termos do acórdão recorrido, a esta corresponderia a anulação da
“parte final do julgamento, isto é a prolação do acórdão de primeira instância”, decorrendo aquela sanção, repete-se, de contradições insanáveis na matéria de facto, o que, de resto, se mostra de acordo com o disposto no artigo 379º nº 1 alínea b) do CPP.
Tal significa que o Tribunal não pode conhecer do recurso com este objecto – a decisão impugnada não interpreta a norma do artigo 359º nº 1 do CPP nos termos apontados pelo recorrente.
E é igualmente errada a mesma leitura quando o recorrente põe em causa uma interpretação das normas dos artigos 358º e 359º do CPP no sentido de que constitui uma alteração não substancial dos factos a condenação por um suposto “empolamento de preços”, pois, o acórdão recorrido, como se viu, tendo em conta o cotejo da matéria dada como provada com o que consta da pronúncia e analisando o que se considerou ser o único ponto “relacionado com os preços da campanha” entendeu não haver “divergência”, substancial ou não substancial.
Mas, se o que se deixou dito, quanto à ideia central do acórdão recorrido, faria, de imediato, soçobrar a possibilidade de conhecimento da questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente assente em que aquele aresto fez corresponder à alteração substancial dos factos a sanção de anulação do julgamento – esta foi determinada, repete-se, pelas citadas “contradições insanáveis” – outra consequência decorre da decisão de anulação do julgamento e de reenvio com o apontado fundamento: a absoluta inutilidade do conhecimento de outras questões de constitucionalidade que constituem o objecto do recurso interposto por José Beleza..
Isto – diga-se em parêntesis – com prejuízo da questão de saber se ocorreu um incumprimento do acórdão do Tribunal Constitucional de fls. 19572 e segs. quando o STJ, ao reformular integralmente o seu acórdão anterior, e relativamente à alteração que consistiria no citado “empolamento de preços”, coteja a decisão condenatória com matéria que expressa e discriminadamente constava da pronúncia
Com efeito, tendo sempre que se proceder a novo julgamento (com a amplitude resultante do disposto no citado artigo 426º nº 1 do CPP) já que nenhuma questão de constitucionalidade foi suscitada com pertinência em relação
à norma ou normas em que assentou a decisão de anulação do julgamento, fica, desde logo, sem qualquer sentido apreciar (para além do referido eventual incumprimento de julgado) a constitucionalidade das normas dos artigos 358º e
359º do CPP bem como daquela em que se terá alicerçado a fundamentação da matéria de facto provada ou não provada (artigo 374º nº 2 do CPP).
É que, com a realização do novo julgamento, nova matéria de facto será dada como provada ou não provada, e com nova fundamentação, como novo será também o enquadramento jurídico-penal dos factos, pelo que todo o juízo agora a formular sobre aquelas questões, tal como elas resultaram do julgamento anulado, deixa de ter sentido útil.
Já, finalmente, no que concerne à questão da constitucionalidade da norma do artigo 313º nº 1 do Código Penal, quando interpretada no sentido de fazer coincidir o requisito típico da “astúcia” com o conceito civilístico da reserva mental de incumprimento, ela não poderá ser apreciada por este Tribunal pela simples razão de o acórdão recorrido não ter feito aplicação da norma em causa, nos termos apontados, pois julgou, expressamente, prejudicado o seu conhecimento.
Mas mesmo que assim não fosse, sempre acresceria – e ainda pela mesmas razões supra apontadas – o fundamento da inutilidade do conhecimento da questão.
Por último e quanto ao que o recorrente diz, no requerimento de interposição do recurso, sobre o modo como o STJ procedeu à reformulação do seu anterior acórdão, cumpre deixar claro que os poderes de cognição do Tribunal Constitucional a respeito dessa matéria não habilitam este Tribunal a qualquer censura para além da que inere à verificação do incumprimento do seu juízo de constitucionalidade.
E a verdade é que, mesmo a admitir-se como fundado o comentário crítico do recorrente relativamente a tal reformulação, esta é alheia, no caso, a um eventual incumprimento daquele juízo: o STJ teria ido, porventura, para além do que lhe impunha o acórdão do Tribunal Constitucional, conhecendo de outras matérias que acabaram por justificar a anulação do julgamento e o reenvio do processo. Com estes contornos, tal, porém, só poderia ser apreciado pelo Tribunal Constitucional, no presente recurso, se o recorrente tivesse suscitado qualquer questão de constitucionalidade relativa à norma ou normas que supostamente habilitaram o STJ a proceder como procedeu - e não o fez.
Em suma, pois, e pelas razões expostas, o Tribunal não pode conhecer do objecto do recurso:
a) Quanto à norma do artigo 313º nº 1 do Código Penal, por não ter sido aplicada no acórdão recorrido – este decide, expressamente, não conhecer da questão; b) Quanto à norma do artigo 359º nº 1 do Código de Processo Penal, por não ter sido interpretada no acórdão recorrido nos termos indicados pelo recorrente; c) Quanto às normas dos artigos 358º, 359 e 374º nº 2 do Código de Processo Penal, por inutilidade do seu conhecimento, razão que, também no caso da questão supra referida em a), sempre acresceria à que ali foi indicada.
B – Recurso de M...
Disse o recorrente no requerimento de interposição de recurso:
“O recorrente pretende que o Tribunal “ad quem” aprecie a conformidade constitucional da norma ou normas ao abrigo das quais foi decretada a anulação do julgamento e que não foram mencionadas no douto Acórdão recorrido nem posteriormente, não obstante o pedido de aclaração por si formulado, considerando que esta omissão não pode ser impeditiva da admissibilidade do recurso nos termos do artº 70º nº 1 al b) da Lei do Tribunal Constitucional, até porque como já referiu o seu requerimento entrado em 8 de janeiro de 2001 entende que qualquer norma legal, se interpretada concretamente em termos de permitir a anulação decidida será inconstitucional, traduzindo-se numa reformatio in pejus, violadora das garantias processuais asseguradas pelo artº
32º nº 1 da Constituição da República”.
Em contrário do disposto no artigo 75º-A nº 1 da LTC o recorrente não indica a norma ou normas cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie.
Impor-se-ia, pois, o convite a que aludem os nºs 5 e 6 daquele preceito legal.
Sucede que, no caso, não se trata de uma mera omissão do recorrente
– o recorrente invoca, “expressis verbis”, o seu desconhecimento sobre qual a norma em que o acórdão recorrido, omitindo-a (supostamente), se fundou para decretar a anulação do julgamento, circunstância que tornaria absurdo aquele convite.
A verdade, porém, é que não cumpre ao Tribunal substituir-se ao recorrente na indicação em causa, sendo certo – adiante-se – que o acórdão recorrido não inviabiliza o cumprimento do ónus que recai sobre o recorrente, razão por que é impertinente afirmar-se que a admissibilidade do recurso não pode ser prejudicada pela hipotética omissão da decisão impugnada.
Esta, desde logo, uma razão decisiva para não admitir o recurso.
Sem conceder, e dados os contornos com que o recorrente desenha a
“questão de constitucionalidade” – a ocorrência de uma reformatio in pejus – adianta-se, ainda, que o recurso, a ser admissível, sempre seria manifestamente infundado.
Com efeito, a violação da Constituição residiria no facto de o recorrente ter sido condenado em primeira instância numa pena de prisão suspensa na sua execução e o acórdão recorrido ter anulado o julgamento quando, entretanto, já decorrera o prazo de suspensão daquela pena.
Ora, por um lado, tal decisão condenatória não transitara em julgado
(desde logo porque o próprio recorrente a impugnou para o STJ) pelo que, não estando, assim, a correr o prazo de suspensão da pena (cfr. artigo 50º nº 5 do Código Penal), não pode o recorrente fazer valer o decurso desse prazo para cotejar a situação que dele decorreria (extinção da pena, nos termos do artigo
57º do Código Penal) com a que resultou da anulação do julgamento e daí concluir que esta é mais gravosa do que aquela.
Por outro lado, a anulação do julgamento, de que o recorrente beneficiou em resultado de outros recursos (ao recurso do recorrente foi negado provimento) não pode, em si mesma, considerar-se um agravamento da posição de um arguido condenado em pena de prisão, com execução suspensa.
Não estão, assim, em causa quaisquer garantias de defesa do arguido asseguradas pelo disposto no artigo 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
C – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto dos recursos interpostos por ambos os recorrentes.
Custas pelos recorrentes, fixando a taxa de justiça, para cada um, em 6 Ucs.
Desta decisão reclamou, apenas, o recorrente J..., assente nos seguintes três pontos:
a) Inconstitucionalidade material do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, por permitir a emissão pelo relator de decisões sem prévia audiência do recorrente, o que violaria o disposto no artigo 32º nº 1 da CRP, na parte em que esta norma assegura o direito de defesa e o direito de efectivo recurso;
b) Interpretação e aplicação pelo acórdão recorrido do artigo 359º do Código de Processo Penal de modo a que esta norma se torna materialmente inconstitucional, por violação do artigo 32º nºs 1 e 5 da CRP;
c) Consequente aplicação pelo mesmo acórdão de outras normas arguidas de inconstitucionalidade, como é o caso do artigo 313º do Código Penal, por violação do artigo 29º nº 1 da CRP.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido da total improcedência da reclamação.
Cumpre decidir.
2 - A questão da falta de audiência prévia do recorrente quando o relator usa dos poderes conferidos pelo artigo 78º-A da Lei nº 28/82, foi já apreciada por este Tribunal como questão quer de nulidade processual (Acórdão nº 714/98) quer de inconstitucionalidade; neste último caso por suposta violação dos direitos ao recurso e de acesso aos tribunais (Acórdão nº 550/99) ou dos artigos 222º, 224 e
280º da CRP (Acórdão nº 80/99)
Pese embora os diferentes parâmetros de aferição da legalidade ou constitucionalidade daquela norma nas duas primeiras decisões citadas do Tribunal Constitucional sempre esteve substancialmente em causa a aludida falta de audiência prévia do recorrente.
Escreveu-se no Acórdão nº 714/98:
“A decisão sumária reclamada foi proferida no uso dos poderes que o artigo 78-A nº. 1 da Lei nº. 28/82, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº. 13-A/98, de 26 de Fevereiro, confere ao relator. Este regime substituiu um outro em que o relator, verificando que se não podia conhecer do objecto do recurso ou que a questão a decidir era simples, elaborava uma sucinta exposição escrita do seu parecer e mandava ouvir cada uma das partes por cinco dias- seguidamente, o processo ou era logo julgado (pelo colégio dos juízes) ou continuado para alegações. O regime que passou a vigorar com a Lei nº. 13-A/98 visou uma maior celeridade na decisão dos recursos, sem perda dos direitos de audiência das partes. Estes direitos estão convenientemente assegurados com a faculdade que é dada às partes de reclamar para a conferência nos termos do artigo 78º-A nº. 3 da LTC, podendo, designadamente, o recorrente defender, nessa reclamação, que não deveria ter havido lugar a decisão sumária, caso em que, a obter vencimento, se seguirão os termos previstos no nº. 5 do mesmo artigo 78º-A. A própria razão de ser da norma contida no artigo 78º-A nº. 1 da Lei nº. 28/82 e o carácter provisório, ou precário, da decisão sumária (ela só se converte em definitiva se não for reclamada), afastam, pois, a aplicação do artigo 3º nº. 3 do CPC, no sentido pretendido pelo reclamante - a decisão do Tribunal, com a sua formação colegial, nunca constituirá, para o recorrente, uma decisão-surpresa.
Não se verifica, assim, a nulidade arguida.”
E no Acórdão nº 550/99:
“Quanto à alegada inconstitucionalidade da norma contida no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, que prevê a possibilidade de julgamento dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas através de uma decisão sumária, sem prévia alegação das partes, o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de a julgar improcedente, nomeadamente no seu acórdão
80/99, cuja cópia se junta. Escreveu-se naquele acórdão: “Perante o cada vez maior número de processos no Tribunal Constitucional, o legislador ordinário, sem descurar a necessidade de assegurar uma tutela plena dos direitos dos recorrentes, criou a figura da decisão sumária, para acelerar o processo decisório de determinadas questões. Pode e deve ser proferida decisão sumária relativamente a questões caracterizadas pela sua simplicidade, nesse grupo se incluindo, “designadamente”, aquelas que já tiverem sido objecto de julgamento anterior pelo Tribunal Constitucional (cfr. artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional). Prossegue-se, assim, o objectivo da mais célere administração da justiça, em função da menor complexidade do caso, sem esquecer as garantias de defesa das partes. É assegurado o princípio do contraditório, facultando-se ao recorrente a oportunidade de reclamar para a conferência (cfr. nº 3 do referido artigo 78º-A)
– oportunidade que aliás o recorrente utilizou no presente processo. A conferência decide definitivamente as reclamações, desde que haja unanimidade dos juízes intervenientes; não existindo unanimidade, a decisão cabe ao pleno da secção (cfr. nº 4 do mesmo preceito).”
Não se põe, assim, em causa, nem o direito ao recurso, nem o direito de acesso aos tribunais, como afirma o reclamante. Reitera-se, portanto, pelas razões indicadas neste acórdão nº 80/99, o juízo de não inconstitucionalidade da norma impugnada”.
Reiterando o que se decidiu nos acórdãos transcritos, tornam-se desnecesárias outras considerações para fundamentar a improcedência da arguição de inconstitucionalidade da norma do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
3 - Deixou-se claramente dito na decisão reclamada que o acórdão recorrido não interpretara a norma do artigo 359º nº 1 do CPP nos termos apontados pelo recorrente, ou seja, no sentido de a verificação de uma alteração substancial dos factos dar lugar à anulação do julgamento e reenvio do processo e não, como devia, à comunicação do facto ao Ministério Público para o efeito de este accionar o competente procedimento penal, se ao caso isso coubesse.
Resulta, aliás, do próprio acórdão do STJ que a referida alteração daria lugar à anulação da decisão de 1ª instância e só pelo facto de se terem dado como verificadas contradições insanáveis na matéria de facto se anula o julgamento e se determina o reenvio do processo.
Assim, nem expressa nem implicitamente, se vê no acórdão recorrido a interpretação que o reclamante questionava em (3) do requerimento de interposição do recurso.
E não teria o acórdão recorrido que, desde logo, “amputar” do objecto processual a matéria em causa, dado que ela resultava do confronto da acusação e pronúncia com que se decidira em função do julgamento efectuado e este julgamento teria que ser repetido, sendo então imprevisível o que dele viesse a resultar, nomeadamente em matéria de prova.
Regressando o processo à fase do julgamento, não terá o recorrente que se defender senão dos factos que, nos termos do decidido pelo Acórdão de fls. 19572 e segs., constam da pronúncia, pelo que estão devidamente acautelados os direitos de defesa do arguido.
Por outro lado, e decisivamente, entendeu-se na decisão reclamada que seria inútil o conhecimento do objecto do recurso pois, não se tendo suscitado questões de inconstitucionalidade relativamente à norma ou normas em que concretamente assentara a decisão de anulação do julgamento e reenvio do processo, “com a realização do novo julgamento, nova matéria de facto será dada como provada ou não provada, e com nova fundamentação, como novo será também o enquadramento jurídico penal dos factos”, razão por que queda sem sentido útil a pretendida apreciação das questões de constitucionalidade colocadas pelo recorrente.
E nada de consistente é dito em contrário pelo recorrente na sua reclamação, pelo que é de confirmar a decisão reclamada.
Resta acrescentar que é inquestionável o facto de o acórdão recorrido ter expressamente afastado o conhecimento do objecto do recurso na parte em que se impugnava a interpretação do artigo 313º nº 1 do Código Penal no sentido de se fazer coincidir o requisito típico da “astúcia” com o conceito civilístico de reserva mental de incumprimento. E, nesta conformidade, só podendo o Tribunal Constitucional conhecer da constitucionalidade de normas aplicadas na decisão recorrida (artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82) não era, desde logo, admissível a apreciação da constitucionalidade daquele norma com o apontado sentido; e é, ainda, certo, que, na lógica do decidido pelo STJ e havendo de manter-se a anulação do julgamento e o reenvio do processo, não se está perante um caso em que o tribunal “a quo” devesse ter conhecido da questão que considerou prejudicada.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 3 de Julho de 2001 Artur Maurício Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa