Imprimir acórdão
Processo n.º 112/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é reclamante A. e reclamado o Ministério Público, a primeira reclamou, ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 4, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC, do despacho daquele Tribunal que, em 11 de dezembro de 2012, não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional.
2. A aqui reclamante foi condenada em 1.ª instância, por acórdão de 31 de janeiro de 2011, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira (Círculo Judicial de Loulé), pela prática de um crime de difamação agravada, dois crimes de injúria agravada e cinco crimes de denúncia caluniosa, na pena única de 2 anos e 11 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sendo tal suspensão subordinada ao pagamento, a diversos demandantes, no prazo de 18 meses, das quantias em que a arguida foi condenada a título de indemnização civil.
Inconformada com esta decisão, recorreu a arguida para o Tribunal da Relação de Évora. Com o recurso da decisão final subiram também outros recursos entretanto interpostos de despachos proferidos nos autos, cuja subida se encontrava retida. Em sede de exame preliminar foi proferido despacho que indeferiu a renovação de provas requerida no recurso, tendo a arguida apresentado reclamação do mesmo para a conferência.
Por acórdão de 15 de maio de 2012, foi decidido negar provimento aos recursos retidos, rejeitar, por intempestiva, a reclamação para a conferência, bem como negar provimento ao recurso interposto da decisão final condenatória.
A arguida interpôs, então, recurso deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça.
No entanto, tal recurso não foi admitido, pelo Ilustre Desembargador Relator, por despacho de 16 de outubro de 2012, ao abrigo do artigo 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea f), ambos do Código Processo Penal (CPP), porque o acórdão do Tribunal da Relação de Évora “proferido em recurso, foi condenatório e confirmou a decisão da 1.ª instância, na qual não foi aplicada pena de prisão superior a 8 anos”.
Conforme resulta ainda deste despacho, após a prolação do acórdão pelo Tribunal da Relação, a arguida suscitara a nulidade do mesmo, por requerimento que foi indeferido por acórdão de 3 de julho de 2012.
Mais resulta do mesmo despacho que, a par do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a arguida interpôs também recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação para o Tribunal Constitucional.
Do despacho de não admissão de recurso, reclamou, então, a arguida para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 405.º, n.º 1 do CPP, veio o Senhor Vice-Presidente do mesmo Supremo Tribunal, por despacho de 22 de novembro de 2012, indeferir a reclamação, invocando, designadamente, os seguintes fundamentos:
“ (…) A arguida reclama da não admissão do recurso, nos termos do art. 405.º do CPP, invocando, em síntese, os seguintes fundamentos:
- No caso, está em causa o recurso interposto da decisão que indeferiu a pretensão de nulidade apresentada, sobre o acórdão condenatório proferido pelo Tribunal da Relação.
- Sendo esta uma questão nova, na medida em que pela primeira ver é abordada nos autos, tem que cair na estatuição do art. 432.º n.º 1, al. a), do CPP.
- A decisão sobre a nulidade constitui decisão judicial tomada em 1ª instância na Relação, pois que, estando em causa o vício formal, que se considera verificado, a sua inadmissibilidade de sindicância tem pretenso valor de uma decisão com afetação, nos autos, e tomada em 1ª instância na Relação, não poder ser verificada em sede de recurso seria facultar ao julgador o poder de decidir uma questão nova, com cariz definitivo, em caso de não se admitir o pretendido recurso.
- A decisão é recorrível, nos termos do art. 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
- Devendo ser considerado inconstitucional o estatuído no art. 414.º n. 2 do CPP, quando interpretado no sentido que não é de não admitir o recurso, por referência aos arts. 400º nº 1 al. f) e 432º al. b), ambos do CPP, quando na realidade o recurso que se apresentou não foi com intuito de recorrer do acórdão do Tribunal da Relação, mas sim da decisão proferida sobre o requerimento de nulidade do referido acórdão, por configurar uma decisão em primeira instância em que é vedado à arguida a possibilidade de ver o mesmo apreciado por instância superior, o que viola o previsto no art. 32.º, n.º 1, da CRP.
3. A reclamante alega que interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que indeferiu a nulidade por ela invocada.
O referido acórdão, no entanto, ao contrário do que vem alegado na reclamação não foi proferido em 1ª instância com o sentido em que o pressuposto está estabelecido no art. 432º, nº 1, alínea a), do CPP.
Com efeito, a decisão do acórdão da Relação sobre a questão invocada pela reclamante foi proferida em instância de recurso, apreciando no âmbito e por ocasião do recurso a questão suscitada pela arguida: a arguição de nulidade.
«A decisão do tribunal da Relação proferida, não como instância formal de recurso, mas como instância de decisão no processo, em outro grau, sobre questão incidental cujo conhecimento a lei lhe defira, não se integra em qualquer das hipóteses de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previstas no art. 432.º do Código de Processo Penal (CPP).
Não se trata, de decisão proferida pela relação em primeira instância (artigo 432º, n.º 1, alínea a), do CPP), isto é, em que a competência em razão da matéria e da hierarquia para a decisão do caso e do objeto do processo caiba, em primeiro grau de conhecimento, e segundo as leis de organização e competência dos tribunais, aos tribunais da Relação (…)» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.02.2005, proferido no processo n.º 4551/04 – 3.ª).
Em outra perspetiva, dispõe a alínea c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP serem irrecorríveis os «acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo».
O objeto do processo penal é delimitado pela acusação ou pela pronúncia e constitui a definição dos termos em que vai ser julgado e decidido o mérito da causa – ou seja, os termos em que, para garantia de defesa, possa ser discutida a questão da culpa e, eventualmente, da pena.
No caso concreto, o acórdão de 3 de julho de 2012, que indeferiu o requerimento formulado pela reclamante, dada a ausência de nulidade do acórdão anteriormente proferido, não conheceu do objeto do processo, mas antes de questões laterais relacionadas com a competência própria da Relação, precisamente por o acórdão condenatório, não ser suscetível de recurso.
O recurso não é, portanto, admissível (arts 432º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP).
4. A reclamante suscita a inconstitucionalidade do art. 414.º, n.º 2, do CPP, quando interpretado no sentido de que não é de admitir o recurso, por referência aos arts. 400º, nº 1, al. f) e 432º, al. b), ambos do CPP, quando na realidade o recurso que se apresentou, não foi com intuito de recorrer do acórdão do Tribunal da Relação, mas sim da decisão proferida sobre o requerimento de nulidade do referido acórdão, por configurar uma decisão, em primeira instância em que é vedado à arguida a possibilidade de ver o mesmo apreciado por instância superior, o que viola o previsto no art. 32.º, n.º 1, da CRP.
Não há, porém, que conhecer desta questão, uma vez que as normas invocadas não constituem o fundamento da decisão da reclamação.
No entanto, sempre se dirá, que a interpretação da alínea c) do n.º 1, do art. 400.º do CPP, não ofende as garantias de defesa consagradas no art. 32.º, n.º 1, da CRP, tendo em conta que o direito ao recurso em processo penal, justificado pela efetivação do duplo grau de jurisdição, terá de ser perspetivado como uma faculdade de recorrer sobre a matéria da causa, e não sempre e em qualquer caso atomisticamente, ato a ato desenquadrado do conjunto, ou sobre uma questão parcial ou incidental ainda que decidida no procedimento de recurso ou por ocasião de um recurso (cf., Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 424/09, de 14.08.09).
As garantias de defesa em processo penal na perspetiva do recurso apenas visam as decisões judiciais de conteúdo condenatório – decisão sobre o objeto da causa, a culpabilidade e a pena; segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, «…o princípio constitucional das garantias de defesa apenas impõe ao legislador que consagre a faculdade de os arguidos recorrerem das sentenças condenatórias, e bem assim o direito de recorrerem de quaisquer atos judiciais que, no decurso do processo, tenham como efeito a privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros dos seus direitos fundamentais» (cf., por todos, o Acórdão n.º 209/90, de 19.06.90, BMJ, 398, p. 152).
5. Nestes termos, indefere-se a presente reclamação.”
Foi deste despacho que a recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional e, como este não foi admitido, reclamou dessa decisão para este mesmo Tribunal.
3. É o seguinte o teor do despacho reclamado:
“1. A arguida A., notificada da decisão que lhe indeferiu a reclamação, veio dela interpor recurso para o tribunal Constitucional para que seja apreciada a inconstitucionalidade do estatuído no art. 414.º n. 2 do CPP, quando interpretado no sentido de que não é de admitir o recurso, por referência aos arts. 400º, nº 1, al. f) e 432º, al. b), ambos do CPP, quando na realidade o recurso que se apresentou, não foi com intuito de recorrer do acórdão do Tribunal da Relação, mas sim da decisão proferida sobre o requerimento de nulidade do referido acórdão, por configurar uma decisão, em primeira instância em que é vedado à arguida a possibilidade de ver o mesmo apreciado por instância superior, o que viola o previsto no art. 32.º, n.º 1, da CRP.
2. Como se disse no ponto 4. da decisão de fls. 362 e segs., as normas invocadas não constituíram o fundamento da decisão da reclamação, por isso, não foi tomado conhecimento da inconstitucionalidade que lhes foi imputada.
Com efeito, decisão em causa fundamentou a inadmissibilidade do recurso para o STJ, na alínea c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP.
Assim fica inviabilizado qualquer julgamento sobre a inconstitucionalidade das normas referidas, por parte do TC, porquanto os recursos de constitucionalidade desempenham uma função instrumental, só podendo o Tribunal Constitucional conhecer de uma questão de constitucionalidade quando exerça influência no julgamento da causa.
Nestes termos, não se admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.”
4. A Reclamante sustenta a Reclamação nos seguintes fundamentos:
“(…) a questão suscitada pela arguida cingia-se, em última instância, à interpretação dada ao art° 414° n. 2, por ref aos arts 400º n.º 1 al. f) e 432°, al. b) todos do CPP.
Pelo que o despacho, a incidir sobre a questão suscitada teria de incidir sobre o preceito invocado pelo ora recorrente.
À “contrario”, restringiu o Exmo Sr. P.S.T.J. a fundamentação do seu Despacho exarando para o efeito que a decisão encontra-se fundamentada com base nas normas do art° 432.º, n°1 al. b) e 400°, n 1, a1. e) ambos do CPP.
Mesmo que assim seja, entende-se, e salvo me1hor opinião, que a questão da inconstitucionalidade vem a ser suscitada re1ativamente à interpretação dada ao preceituado no art° 432, n°l a1. b) por ref. ao 400°, n l, al. f) ambos do CPP, como alegado em sede de rec1amação para o P.S.T.J.
À primeira vista poder-se-ia vis1umbrar a nulidade p1asmada no art° 374° n° 2 do CPP, uma vez que o que parece inf1uir para a decisão, terá sido a aplicação do art° 400° n.1 al. c) do CPP.
O que por si só afastaria a apreciação da inconstituciona1idade da al. f) do mesmo preceito.
Porém como já acima referido, dos autos de rec1amação, e de forma cabal resultou a decisão de não conhecimento da inconstitucionalidade que lhes foi imputada.
Ora é precisamente não se conformando com esta omissão dada à questão suscitada que a arguida interpôs o atinente recurso para o TC.
Uma vez, e mesmo, que as normas não tenham sido aplicadas na decisão impugnada, certo é que foi requerida a sua sindicância no tocante à interpretação dada, para a sua ap1icação ao caso concreto, e uma vez que a arguida não se satisfaz com a interpretação/fundamentação constante do despacho datado de 11 de dezembro de 2012, salvo o devido respeito, pugna pela admissão do recurso a subir ao TC.
Nesta medida estamos perante uma decisão tomada pela primeira vez, e ao “negar-se” que a mesma seja sindicada por instância superior, terá de ser considerada inconstitucional, quando seja não admitido o recurso, por ref. ao art° 414° n. 2, por ref aos arts 400º n. 1 al. f) e 432°, al. b) todos do CPP, por violação do art.° 432° n.1 al. b) do CPP por ref. ao art.° 32° n. 1 da CRP, bem como dos art° 6°, 7°, 8°, 9° e 10° da Dec1aração Universal dos Direitos do Homem.”
5. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. Dispõe o n.º 4 do referido artigo 76.º da LTC, que do despacho que indefira o requerimento de interposição de recurso ou retenha a sua subida cabe reclamação para o Tribunal Constitucional, competindo a este Tribunal averiguar se se encontravam reunidos os pressupostos necessários à admissão do recurso que foi recusada pelo tribunal a quo.
7. No recurso interposto para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a aqui Reclamante formula o seguinte pedido:
“(…) deverá ser considerada inconstitucional o estatuído no art. 414º, n. 2 do CPP, quando interpretado no sentido que não é de admitir o recurso, por referência ao art. 400º, n 1 al. f) e 432º al. b) ambos do CPP, quando na realidade o recurso que se apresentou, não foi com intuito de recorrer do acórdão do Tribunal da Relação, mas sim da decisão proferida ao requerimento de nulidade do dito Acórdão, por configurar assim um julgamento, entenda-se decisão, em primeira em que é vedado à arguida a possibilidade de ver o mesmo apreciado por instância superior, o que viola nitidamente o previsto no art. 32º, n. 1 da CRP”.
8. De acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – ao abrigo da qual foi interposto o recurso de constitucionalidade –, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
9. A presente reclamação tem por objeto o despacho do Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto pela recorrente por falta de aplicação das normas invocadas como fundamento da decisão da reclamação da não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (decisão recorrida para o Tribunal Constitucional).
10. Com efeito, a decisão proferida no Supremo Tribunal de Justiça, de que a reclamante pretende recorrer para o Tribunal Constitucional, traduziu-se na não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento na inadmissibilidade do mesmo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 432.º, n.º 1, b) e 400.º, n.º 1, c) do CPP.
Na apreciação feita pela decisão recorrida, não foram, pois, interpretadas ou aplicadas as normas cuja inconstitucionalidade é suscitada no recurso e se traduzem, como acima já se deixou consignado, na interpretação do «estatuído no art. 414º, n. 2 do CPP, quando interpretado no sentido que não é de admitir o recurso, por referência ao art. 400º, n 1 al. f) e 432º al. b) ambos do CPP». Com efeito, o Tribunal recorrido não se socorreu do preceito contido na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º para fundamentar a sua decisão, não sendo possível, por conseguinte, reportar à norma formulada pela recorrente a ratio decidendi da mesma.
Sendo assim, não pode a presente reclamação deixar de improceder.
Termos em que se impõe indeferir a presente reclamação.
III – Decisão
11. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 20 de março de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral