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Processo n.º 946/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por acórdão de 15 de novembro de 2012, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso interposto por A., S.A., da sentença proferida em 1.ª instância que julgara parcialmente procedente a ação intentada contra aquela por B..
Interposto recurso pela Ré para o Supremo Tribunal de Justiça, o mesmo não foi admitido por despacho do Desembargador Relator proferido em 31 de janeiro de 2013, onde se escreveu:
“…Excecionalmente caberia recurso para o S.T.J. nos termos do art.º 721-A, n.º 1, do C.P.C. Porém, a recorrente não manifestou tal propósito no mencionado preceito legal.
Não é admissível a tentativa de adaptação do recurso interposto a uma revista excecional através de requerimento posterior.
Face ao exposto, por não ter cabimento legal, não se admite o recurso para o S.T.J.”
A Ré reclamou desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo a reclamação sido indeferida por decisão de 22 de março de 2013.
Após ver indeferido um pedido de esclarecimento, a Ré interpôs recurso daquela decisão para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
1ª) a decisão e acórdão recorrido violam o principio da proteção da confiança expresso no artº 2º da Constituição da República Portuguesa - estado de direito democrático.
2ª) a decisão e acórdão recorrido violam o principio de direito e constitucional da segurança jurídica atento que o sistema jurídico hierarquizado e suscetível de fiscalização depende do cumprimento das normas de processo - nºs 5 e seguintes da motivação
3ª) as normas violadas e supra referenciadas foram interpretadas e aplicadas em sentido diverso ao da intenção do legislador, no acórdão e decisão recorrida, pelo que deverão ser aplicadas nos precisos termos em que o legislador as consagrou;
4ª) devem ser declaradas inconstitucionais as normas conjugadas do nº 3 do artº 721 e das alíneas a) e b) do nº 1 do artº 721-A do CPC por violação do princípio da igualdade do nº 1 do artº 13º da Constituição da Republica Portuguesa, resultando a inconstitucionalidade da não aplicação do princípio da igualdade quando se distinguem situações iguais com base num critério que gera tratamento desigual na falta de definição do que são ou quais são as questões com relevância jurídica para uma melhor aplicação do direito.
5ª) atentas as motivações deste recurso a estas violações de constitucionalidade e também por via das mesmas, acrescem as dos artºs 12º nºs 1 e 2; 13º nº 1; 18º e 20º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que, de igual modo, deverão ser aplicadas nos precisos termos em que o legislador as consagrou;
6ª) a não aplicação de normas processuais quanto a prazo de propositura de ação judicial é manifestamente ilegal e contrária ao principio do estado de direito e da segurança jurídica manifesto no artº 2º da Constituição da República Portuguesa, violado dentre outros preceitos constitucionais, e constitui denegação de justiça também contrária e violadora desse preceito;
7ª) consequentemente deve ser alterada de acordo com as alegadas inconstitucionalidades e declara improcedente a decisão referente à ação de despejo subjacente.
Por despacho de 25 de junho de 2013, o recurso não foi admitido pelas seguintes razões:
“A R veio reclamar do despacho da Relação que não admitiu o recurso de revista com fundamento em dupla conforme.
Tal reclamação foi indeferida por falta de verificação dos pressupostos para a admissibilidade da revista e pela extemporaneidade da invocação de pressupostos da revista excecional.
Nem assim ficou convencida e veio apresentar requerimento para “esclarecimento quanto aos fundamentos da decisão, e ambiguidade e obscuridade da mesma”.
Como se verificou não existir qualquer obscuridade ou ambiguidade que devesse ser esclarecida e dado que, por outro lado, resultava manifesto que o que a recorrente pretendia era a modificação da decisão de que foi notificada, foi indeferido tal requerimento.
Vem agora recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art. 70º, nº 1, al. b), da respetiva Lei.
Tal preceito admite essa impugnação quando tiver sido aplicada norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada no processo.
Ora, no presente apenso de reclamação do despacho que, na Relação, indeferiu o recurso de revista não existe nem foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade de qualquer preceito.
Tratando-se de um instrumento de natureza processual, apenas faria sentido invocar, para sustentar o presente recurso de constitucionalidade, a aplicação de norma adjetiva cuja inconstitucionalidade tivesse sido afirmada em alguma das decisões que foi proferida por este Supremo Tribunal de Justiça, seja a decisão que indeferiu a reclamação contra o despacho de não admissão da revista, seja a decisão que indeferiu o incidente de reforma.
Como tal não se verifica, não existe sequer motivo para se admitir o recurso de constitucionalidade.”
A Ré reclamou desta decisão, com os seguintes argumentos:
“…o indeferimento fundamenta-se na alegação de que no recurso de revista não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade de qualquer preceito, do que se discorda porquanto questões de constitucionalidade foram levantadas nas conclusões e) e f) desse recurso, quanto ao artº 2º da CRP, nomeadamente quanto à violação do princípio da proteção da confiança, da segurança jurídica, relacionada com o alegado afastamento de normas processuais nas decisões recorridas ignorância da consequência de propositura de ação de despejo fora de prazo.
Por outro lado, no recurso apresentado para o Tribunal Constitucional alega-se que:
“só agora pode a recorrente alegar a inconstitucionalidade do nº 3 do artº 721 e da alínea a) e b) do nº 1 do artº 721-A do CPC, dado ser pacífica a jurisprudência do tribunal constitucional que considera que não tem de ser suscitada previamente uma questão de inconstitucionalidade com que o recorrente não devesse contar…..” e “….. só com a decisão de não admissão de recurso com o fundamento de não se ter alegado o previsto na alínea a), b) ou c) do nº 1 do artº 721º-A do CPC é que foi confrontada com a interpretação cuja constitucionalidade questiona, pelo que não podia anteriormente tê-la suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça.”
alegação efetuada no seguinte contexto:
“... tal decorre, no entender da recorrente, das decisões recorridas reconhecerem claramente que a ação de despejo contra esta foi intentada fora de prazo, ato cuja insegurança jurídica e questão jurídica relevante se afigura evidente e facilmente compreensível e consta manifestamente como razão de ser do recurso apresentado ao Supremo Tribunal de Justiça e nele é claramente alegado.
Está-se assim perante uma clara violação do princípio do estado de direito e do princípio da segurança quando, como no caso, se afasta a aplicação de normas processuais.
Acresce que decorrente dos princípios constitucionais violados e perante a não aceitação do recurso para o STJ só agora pode a recorrente alegar a inconstitucionalidade do nº 3 do artº 721 e da alínea a) e b) do nº 1 do artº 721-A do CPC, dado ser pacífica a jurisprudência do tribunal constitucional que considera que não tem de ser suscitada previamente uma questão de inconstitucionalidade com que o recorrente não devesse contar, tanto mais que a relevância social do despejo de uma empresa e a consequente possibilidade de pôr em causa postos de trabalho se lhe afigurava e afigura evidente por decorrente da matéria vertida na ação de despejo em apreço.
Só com a decisão de não admissão de recurso com o fundamento de não se ter alegado o previsto na alínea a), b) ou c) do nº 1 do artº 721º-A do CPC é que foi confrontada com a interpretação cuja constitucionalidade questiona, pelo que não podia anteriormente tê-la suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça.
Não se questiona o critério da igualdade na sua aplicação às situações definidas pela lei, mas sim o princípio da igualdade na diferença dos critérios dessa norma.
Questiona-se a diferença de tratamento das situações de facto com base num critério subjetivo sobre o que se considera como refere a lei estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação to direito ou o que seja estar em causa interesses de particular relevância social.
Se tal não se considera quando está em causa o afastamento e não aplicação de normas processuais como o validar a propositura de ações judiciais fora do prazo legal, então o critério e principio da igualdade e o principio do estado de direito constitucionalmente previstos mostram-se afastados e violados.
O que está em causa é o critério e a inconstitucionalidade reside na aplicação do principio da igualdade quando se distinguem situações iguais com base num critério que gera tratamento desigual na falta de definição do que são ou quais são as questões com relevância jurídica para uma melhor aplicação do direito.
Estranha-se que o afastamento de normas processuais quanto a prazos não o seja!”
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
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Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Consistindo a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, na faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais, compreende-se que a questão de constitucionalidade deva, em princípio, ter sido colocada ao tribunal a quo, além de que permitir o acesso a este Tribunal com base numa invocação da inconstitucionalidade unicamente após a prolação da decisão recorrida, abriria o indesejável caminho à sua utilização como expediente dilatório. Daí que só tenha legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização de constitucionalidade de uma norma quem tenha suscitado previamente essa questão ao tribunal recorrido, em termos de o vincular à sua apreciação, face às normas procedimentais que regem o processo em que se enxerta o recurso constitucional.
Contudo, este requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) considera-se dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excecionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Como a decisão recorrida é a que no Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação da decisão que, na Relação, não admitira o recurso, o momento processual próprio para suscitar a questão da inconstitucionalidade das normas ou interpretação normativa cuja aplicação levou a considerar o recurso inadmissível era o da reclamação referida.
Ora, nessa peça processual, não se levanta qualquer questão de inconstitucionalidade, sendo certo que a decisão no Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação nada tem de inovatório ou surpreendente, uma vez que confirma integralmente os fundamentos do despacho então reclamado.
Assim, contrariamente ao que a Recorrente afirma, esta teve plena oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade, não estando, pois, dispensada do cumprimento daquele ónus.
Não o tendo cumprido revela-se perfeitamente justificada a decisão de não admitir o recurso interposto, pelo que deve ser indeferida a reclamação apresentada.
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Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por A., S.A.
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Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 10 de outubro de 2013. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins - Joaquim de Sousa Ribeiro.