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Processo n.º 486/99
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, instaurados ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente M... e recorrida a Fazenda Pública, foi proferido acórdão, em 31 de Janeiro de 2001, com o n.º 44/2001, em que se decidiu negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida quanto à suscitada questão de constitucionalidade.
Notificado, veio o recorrente arguir a nulidade deste aresto e requerer a sua reforma, ao abrigo do disposto nos artigos 716º, 668º, nº1, alíneas c) e d), e 669º, nº2, do Código de Processo Civil.
Ouvida, a requerida nada disse.
Cumpre decidir.
II
1. - Invoca o recorrente, num primeiro momento, que lhe parece existir contradição entre os fundamentos do acórdão e a respectiva decisão, o que consubstanciaria a nulidade prevista no artigo 668º, nº1, alínea c) do Código de Processo Civil, tendo por base a parte do acórdão em que se conheceu da alegada ofensa do princípio da proporcionalidade e se admitiu a 'ocorrência de uma causa justificativa', pois que, assim, no seu entendimento, e contrariamente ao decidido, a interpretação dada à norma do artigo 13º do Decreto-Lei n.º 103/80, violaria o princípio da proporcionalidade.
Nesta perspectiva convoca o recorrente a seguinte argumentação:
'Com efeito, se se admite que a norma do art. 13º do DL 103/80, contempla a possibilidade de 'ocorrência de uma causa justificativa' susceptível de afastar a responsabilidade do gerente ou administrador, então forçosamente cai por terra a tese de que a referida norma deverá ser interpretada no sentido de consagrar uma presunção inilidível de culpa funcional, a qual justamente se caracteriza por não admitir a prova de quaisquer factos em contrário ao sentido da presunção
(cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª Edição, págs. 312 e 313). Seguindo a tese defendida no Acórdão proferido nos presentes autos, a norma do art.º 13º do DL 103/80, violaria o princípio da proporcionalidade se não contemplasse a possibilidade de a inobservância dos ditames legais de gestão por parte dos gerentes ou administradores, no que respeita aos pagamentos das contribuições para a segurança social, poder resultar de causa de força maior
(causa justificativa) situação em que a responsabilidade do gerente ou administrador ficaria necessariamente excluída por força da aplicação do referido princípio da proporcionalidade. E, estando correcta a interpretação do Acórdão recorrido referida no parágrafo precedente, então terá de se considerar que a interpretação da norma do art. 13º do DL 103/80 viola o princípio da proporcionalidade se se considerar que esta consagra um regime de presunção inilidível de culpa funcional, regime este que não admite a possibilidade de ‘ocorrência de causas justificativas’. Para além da referida contradição, acresce ainda que a falta de bens no património social dos Estabelecimentos G..., SA, resultou de um incêndio ocorrido no dia 25 de Agosto de 1988 (cfr. factos provados pelas instâncias). Quer isto dizer, que a falta de bens do activo social prevista no art. 13º do DL
103/80, como pressuposto de responsabilização subsidiário do recorrente, resultou da ocorrência de uma causa de força maior – o incêndio – e não de nenhum acto de gestão do recorrente, doloso ou negligente. Portanto, no caso dos autos, nem sequer se pode falar em ‘inobservância dos ditames legais’, uma vez que não está sequer em causa qualquer actuação do recorrente no sentido da não regularização do pagamento das contribuições à segurança social (estava em curso um processo de pagamento conforme se encontra amplamente documentado nos autos). O que de facto ocorreu foi uma tragédia destruiu todos os bens da empresa, o que não pode deixar de representar ‘uma causa justificativa’ que determina a exclusão da responsabilidade do recorrente.'
Na parte do acórdão agora posta em crise, a respeito da alegada violação do princípio da proporcionalidade, consignou-se o seguinte:
«O preceito em causa, tal como foi interpretado, também não ofende o princípio da proporcionalidade, como se concluiu no acórdão n.º 379/00, já referido, onde se questionou a norma do artigo 13º do Decreto-Lei n.º 103/80, na mesma dimensão interpretativa invocada nos presentes autos. A este respeito, entendeu-se naquele aresto não existir violação do princípio da proporcionalidade, pois, «a responsabilização decorrente da norma questionada só afecta os gestores que 'violando ilicitamente e com culpa os seus deveres, não promovam ou impeçam o acatamento das obrigações das empresas respectivas para com a Previdência'. Mas sendo o pagamento das contribuições para a segurança social uma exigência imposta pelo interesse público, a inobservância dos ditames legais de gestão que devem assegurar tal pagamento não pode deixar de se considerar culposa, salvo a ocorrência de uma causa justificativa ...»
Porém, não se surpreende no trecho do acórdão citado qualquer contradição entre os seus fundamentos e a decisão tomada.
Na verdade, a possibilidade de ocorrência de uma causa de justificação não tem directamente a ver com a culpa, mas sim com a ilicitude, pois que, as causas de justificação traduzem delimitações negativas da ilicitude e não da culpa: havendo justificação, um comportamento, em princípio ilícito, torna-se lícito.
Ora, como o pagamento das contribuições às instituições de previdência é de interesse público, como se salientou no acórdão, e corresponde a um dever legal, há uma clara obrigação de gestão, também de base legal, de promover o seu acatamento, pelo que a inobservância dos comandos legais de gestão, por traduzir a violação de vínculos específicos, se presume culposa.
Ao admitir-se a existência de causas de justificação, apenas se está a prever a hipótese de a inobservância deste dever legal poder deixar de ser ilícita.
É verdade, que sem ilicitude não há comportamento culposo do agente. Porém, sendo o juízo da ilicitude prévio ao da culpa, admitir-se a possibilidade de existência de causas de justificação em nada colide com o regime da presunção inilidível de culpa funcional. Só faz sentido falar de culpa e da sua elisão se previamente se concluir pela ilicitude do comportamento em causa.
Ou seja, perante o incumprimento no pagamento dos débitos à Previdência haverá sempre ilicitude, salva a hipótese de uma causa de justificação, seguindo-se o juízo legal de censura que implica a culpa. Contraditório seria, pois, concluir pela não inconstitucionalidade da interpretação normativa que consagra um regime de presunção de culpa inilidível e admitir a possibilidade de ocorrência de causas de escusa, pois estas, sim, excluiriam a culpa.
É, pois, inequívoco que entre os fundamentos e a decisão existe uma adequação lógico-formal, o que nada tem a ver com a incorrecção dos fundamentos.
2. - Pretende ainda o recorrente obter a reforma do acórdão, ao abrigo do artigo 669º, nº2, alínea b) do CPC, porquanto entende que o Tribunal não teve em conta a ocorrência de uma causa justificativa – um caso de força maior – o incêndio verificado em 25 de Agosto de 1988.
Na verdade, o Tribunal não teve em conta este evento nem tinha que o fazer, pois não integra o recurso de constitucionalidade saber se tal facto constituiu causa justificativa do não pagamento das contribuições à Previdência.. O que estava em causa, sublinha-se, era a interpretação normativa que estabelecia uma presunção inilidível de culpa funcional, que diz respeito ao estabelecimento da culpa e não da ilicitude.
3. - Invoca também o recorrente a nulidade do acórdão, por entender que o Tribunal não se pronunciou 'sobre a violação do princípio da legalidade e do Estado de Direito Democrático, com os fundamentos previstos nas conclusões nºs. 3, 4, 5, 6, 7, e 8', nem ' (...)sobre as questões suscitadas nas conclusões nºs. 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15 – negação do direito de defesa do gerente, fonte de injustiça e imoralidade, mecanismo de coacção psicológica, favorecimento ilegítimo do credor Estado – tudo questões concretas e identificadas, demonstradoras da violação do princípio do Estado de Direito Democrático.'
De acordo com o requerimento de interposição de fls.
398, o recurso tinha por objecto a norma do artigo 13º do Decreto-Lei n.º
103/80, de 9 de Maio, na interpretação acolhida na decisão recorrida, que se entendia violar os arts. 2º, 13º, 17º, 18º e 61º, conforme o recorrente veio indicar a fls. 402, a convite do relator.
Nas alegações apresentadas concluiu o recorrente que 'a decisão recorrida ao interpretar as normas constantes dos artºs. 13º do DL
103/80, de 9 de Maio e 16º do CPCI, como contendo uma presunção inilidível de culpa funcional, para além de violarem o princípio da legalidade, violaram também o princípio do Estado de Direito Democrático, previsto no art.º 2º da Constituição da República Portuguesa' (cfr. conclusão 8ª).
Porém, não tendo o recorrente desenvolvido argumentação autónoma relativamente à violação do princípio da legalidade e sabido que o princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição, também é referido como vocábulo designante de vários princípios caracterizadores com ele conexionados, designadamente, o princípio da legalidade, a questão mostra-se tratada na resposta dada quanto à alegada violação do artigo 2º da lei Fundamental.
Acresce que, conforme se salientou no acórdão deste Tribunal n.º 364/93, ainda inédito (proferido no processo n.º 308/92, da 1ª secção):
«... a omissão de pronúncia causadora de nulidade de sentença ou acórdão consiste apenas no facto de o Juiz (ou o colectivo) ter deixado de proferir decisão sobre questão de que devia conhecer, não havendo relação directa entre os fundamentos ou razões de que as partes se socorrem e a omissão de pronúncia, não se verificando esta se o Juiz deixar de apreciar qualquer consideração ou argumento produzido pela parte.
Neste sentido, a posição de Alberto dos Reis citado pelo Ministério Público traduz a posição da doutrina e da jurisprudência quanto a este aspecto:
'Quando as partes põem ao Tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o Tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que eles se apoiam para sustentar a sua pretensão.' (in 'Código de Processo Civil Anotado v.V, pg.143)».
Ora, no caso concreto, o Tribunal respondeu á concreta questão de constitucionalidade que lhe foi colocada sob o prisma das várias disposições constitucionais invocadas, seguindo a sua anterior jurisprudência que parcialmente transcreveu, não tendo, pois, o ónus de analisar todas as considerações produzidas pela parte.
III
Pelo exposto, decide-se indeferir a arguição das nulidades imputadas ao acórdão de 31 de Janeiro de 2001, e o pedido de reforma do mesmo.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 10 (dez) unidades de conta. Lisboa, 23 de Maio de 2001- Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Messias Bento Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida