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Proc. nº 398/00 Acórdão nº 303/01
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
(Cons.º Vítor Nunes de Almeida)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, M... e mulher, M..., propuseram contra J... e mulher, E..., uma acção de despejo, na forma sumária, que, tendo seguido os seus termos, veio a ser julgada improcedente e os réus absolvidos do pedido, com o fundamento de que, entretanto, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 69º, nº1, alínea a), segunda parte, do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) – a norma que funcionava como suporte da causa de pedir na referida acção (decisão de 3 de Março de 2000, a fls. 221 e seguintes).
Foram os autores que carrearam para os autos, através de um articulado superveniente, o conhecimento da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma em que tinham fundado a acção, tendo logo aí requerido que fossem isentos do pagamento de custas (fls. 213 a 215).
Ouvido o Ministério Público – que considerou não ter a pretensão dos requerentes qualquer cobertura legal –, o Juiz decidiu recusar a aplicação da norma constante do artigo 446º, nº2, do Código de Processo Civil, com fundamento na sua inconstitucionalidade, considerando que em tal acção não havia lugar ao pagamento de custas (fls. 225 a 227).
A decisão em causa foi assim fundamentada:
“Consideramos que, conforme refere o Mº Pº, não existe norma expressa que acolha a pretensão dos Autores. Quer por via do disposto no artº 446º/2 (que entendemos ser a norma aplicável ao caso), quer por via do artº 447º, ambos do Cód. Proc. Civil, as custas, no presente caso, teriam sempre que recair sobre os Autores. Acontece porém que a acção foi desde já considerada improcedente porque a norma que constituía o fundamento de direito da mesma foi julgada inconstitucional com força obrigatória geral pelo acórdão nº 55/99, publicado no DR I série A de
19.02.99, ou seja em data posterior à da entrada da acção (02.02.95). Temos pois a seguinte situação: o Estado, por intermédio do Governo, no exercício da competência legislativa que lhe foi conferida pela Constituição, nos termos do artº 198º/1, al. b), fez um decreto-lei – o D.L. nº 321-B/90, de
15.10 – que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano (RAU) o qual continha uma norma, a constante do artº 69º/1, al. a) do RAU, que foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral. Essa norma, naturalmente, criou expectativas nos particulares, nomeadamente nos Autores, os quais com base nessa norma intentaram a presente acção. Essas expectativas saíram goradas pela declaração de inconstitucionalidade, a qual acarretou que a acção fosse considerada improcedente.
É claro que a acção podia ser considerada improcedente por outras razões, nomeadamente por não se vir a provar o fundamento de facto da acção. Mas consideramos ser óbvio que se a norma nunca tivesse existido, também a acção certamente não teria sido intentada. Assim, o facto de a acção ter sido proposta deve-se à actuação do Estado, no exercício do poder legislativo. Nos termos do artº 22º da Constituição, o Estado é civilmente responsável por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte prejuízos para outrem. Não há dúvida de que o pagamento das custas é um prejuízo patrimonial, pois obriga os Autores a fazer o dispêndio de uma quantia monetária. Obrigar neste caso os Autores a pagar as custas, nos termos do artº 446º/2 do Cód. Proc. Civil, seria violar o referido preceito constitucional, pois estar-se-ia a obrigar os Autores a fazer uma disposição patrimonial por causa de uma conduta que é de imputar ao Estado. Não só já existe prejuízo, pois os Autores já pagaram preparos, como a referida norma do Cód. Proc. Civil iria aumentar esses prejuízos. Deste modo, julgo inconstitucional a norma constante do artº 446º/2 do Cód. Proc. Civil, quando interpretada no sentido de que cabe ao Autor pagar as custas do processado no caso em que a acção foi considerada improcedente em virtude de ter sido declarada inconstitucional com força obrigatória geral a norma que constituía o fundamento de direito exclusivo, ou pelo menos sine qua non da pretensão, por violação do artº 22º da Constituição. Assim, afastando a aplicação da norma constante do artº 446º/2 do Cód. Proc. Civil, com fundamento na sua inconstitucionalidade, nos termos do artº 204º da Constituição, decide-se que nesta acção não há lugar ao pagamento de custas.”
Desta decisão foi interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 230.
2. No Tribunal Constitucional apenas alegou o Ministério Público, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. É inconstitucional por, incompatível com o princípio do Estado de direito democrático, expresso no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa dos princípios da onerosidade do processo e da imposição do pagamento de custas à parte vencida, que deu causa à acção, expressos no artigo 446º do Código de Processo Civil, que conduza a tributar o autor em acção que – sendo fundada face ao direito infraconstitucional em vigor
– vem a revelar-se, em termos supervenientes, improcedente, como estrita e exclusiva decorrência da declaração de inconstitucionalidade da norma cuja
“fattispecie” funcionava como suporte da causa de pedir invocada pelo autor.
2. Na verdade, tal tributação implicaria uma frustração, onerosa e desproporcionada, das legítimas expectativas criadas ao autor com a edição da norma – que suporta a respectiva pretensão – e que se verifica, afinal estar viciada por inconstitucionalidade – facultando ao Estado a cobrança da taxa que funciona como contrapartida do serviço de justiça num caso em que a eficácia e utilidade deste se mostram irremediavelmente afectadas, como decorrência de um facto imputável ao próprio Estado-legislador.
3. Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade da interpretação normativa que integra o objecto do presente recurso.”
Tendo havido mudança de relator, por vencimento, cumpre, agora, apreciar e decidir.
II
3. O presente recurso tem como objecto a norma constante do artigo 446º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), que o Juiz da Comarca de Matosinhos considerou inconstitucional, interpretada no sentido de que cabe ao autor pagar as custas do processo quando a acção foi julgada improcedente por ter sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma que constituía o fundamento da pretensão formulada.
A norma em questão tem o seguinte teor:
“Artigo 446º
(Regra geral em matéria de custas)
[1. A decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condenará em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito.]
2. Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida na proporção em que o for.
[...].”
4. A norma do artigo 446º do Código de Processo Civil estabelece a regra geral da responsabilidade pelo pagamento de custas judiciais, consagrando claramente a existência de um nexo objectivo de causalidade entre a conduta processual das partes e a responsabilidade pelas custas, assente, em primeira linha, na sucumbência da pretensão deduzida em juízo.
No caso dos autos, tendo sido eliminada do ordenamento jurídico a norma do RAU em que se fundava a pretensão (o artigo 69º, nº 1, alínea a), segunda parte, do RAU), por força de uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral (contida no acórdão do Tribunal Constitucional nº
55/99, Diário da República, I Série-A, de 19 de Fevereiro de 1999), foi julgada improcedente a acção proposta pelos autores.
A decisão recorrida, considerando que a improcedência da acção ficou a dever-se à actuação do Estado no exercício de uma das suas funções, recusou a aplicação da norma acima transcrita da qual resultaria a condenação dos autores no pagamento das custas, com fundamento em violação do artigo 22º da Constituição; entendeu-se em tal decisão que o pagamento das custas da acção a cargo dos autores, causando-lhes prejuízo, constituiria uma violação do preceito constitucional que responsabiliza o Estado pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
Vejamos se procedem as razões invocadas pelo juiz a quo.
5. A Constituição da República Portuguesa não impõe que a prestação do serviço de administração da justiça seja gratuita. É portanto de considerar conforme à Lei Fundamental a exigência do pagamento de uma prestação pecuniária, dita “taxa de justiça”, como contrapartida daquele serviço.
Por diversas vezes o Tribunal Constitucional afirmou que a taxa de justiça é uma prestação pecuniária que os particulares pagam ao Estado como contrapartida pelo serviço que este lhes presta – o serviço de administração da justiça (cfr., por exemplo, acórdão nº 412/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., tomo II, p. 1187 ss; acórdão nº 67/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15º vol., p. 241 ss).
O acesso aos tribunais apenas é gratuito quando tal se imponha para que não seja denegada justiça por insuficiência de meios económicos, nos termos do artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Ora, em regra, o pagamento do serviço de administração da justiça, isto é, o pagamento da taxa de justiça incumbe àquele cuja conduta “deu causa” à intervenção do tribunal – a parte vencida, no processo civil, o arguido condenado, no processo criminal.
Justifica-se que o legislador tenha optado pelo princípio da correspondência entre a responsabilidade pelo pagamento das custas e o resultado da actividade processual dos sujeitos intervenientes no processo. Na verdade, a responsabilidade pelo pagamento das custas assenta na ideia de que um processo não deve causar prejuízos à parte que tem razão, sendo as custas pagas pela parte vencida, e na medida em que o for, ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito da demanda. Em geral, não deve impor-se um sacrifício patrimonial à parte em benefício da qual a intervenção do tribunal se realizou, uma vez que é do interesse do Estado que a utilização do processo não cause prejuízo ao litigante que tem razão. Assim, e como regra, a responsabilidade pelo pagamento das custas assenta no princípio da causalidade e, subsidiariamente, no princípio da vantagem ou proveito processual.
No caso que está na origem do presente recurso, segundo as regras expostas, o pagamento das custas deveria caber à parte vencida – os autores, que viram julgada improcedente a acção que haviam proposto. Porém, no entendimento da decisão recorrida, a norma que impõe tal conclusão contrariaria o artigo 22º da Constituição, uma vez que a improcedência da acção teria ficado a dever-se aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma em que tal acção se fundamentou.
6. O problema de constitucionalidade suscitado no presente recurso prende-se com a determinação dos efeitos, e com a determinação da própria natureza jurídica, da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma pelo Tribunal Constitucional.
A declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, tem como consequência a vinculação, não apenas do legislador, mas também de todos os tribunais, à decisão do Tribunal Constitucional. Estando os tribunais vinculados a essa decisão, isso significa, antes de mais, que, na resolução dos processos pendentes, eles devem recusar a aplicação da norma julgada inconstitucional.
Nos termos do artigo 282º, nº 1, da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma implica a nulidade ipso jure da mesma norma, produzindo efeitos ex tunc, isto é, desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional. A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, produz, assim, em princípio, um efeito de invalidação da norma, porque os seus efeitos se reportam à data da entrada em vigor da norma considerada inconstitucional. Naturalmente, tratando-se de inconstitucionalidade por infracção de norma constitucional posterior, a regra é a de que a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última (artigo 282º, nº 2). Apenas em casos excepcionais, referidos no artigo 282º, nº 4, da Constituição – isto é, quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo o exigirem –, pode o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos nºs 1 e 2 do mesmo preceito, acima mencionados.
Desta eficácia – em princípio – retroactiva da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, resultam dois tipos de consequências: por um lado, a invalidade e a cessação de vigência da norma declarada inconstitucional, a partir do momento da respectiva entrada em vigor, e não a partir da declaração de inconstitucionalidade; por outro lado, a proibição da aplicação da norma inconstitucional a situações abrangidas no seu
âmbito de aplicação, que se encontrem ainda pendentes.
Uma vez declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma é pois eliminada do ordenamento jurídico, com efeitos ex tunc.
Por outras palavras: a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, é, como a sua própria designação exprime, uma mera declaração. A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, tem, em si, um efeito meramente declarativo; ela limita-se a verificar a inconstitucionalidade da norma, que é originária.
Deste regime e desta natureza da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, decorre que, relativamente aos casos pendentes, tudo se passa afinal como se a norma declarada inconstitucional nunca tivesse existido. Não podem portanto os particulares, em processos pendentes, pretender prevalecer-se de quaisquer efeitos eventualmente resultantes da norma declarada inconstitucional, com força obrigatória geral.
Não é assim possível tirar quaisquer consequências das seguintes afirmações constantes da decisão recorrida: “Essa norma [a norma do artigo 69º, nº 1, alínea a), segunda parte, do RAU, declarada inconstitucional, com força obrigatória geral], naturalmente, criou expectativas nos particulares, nomeadamente nos Autores, os quais com base nessa norma intentaram a presente acção. Essas expectativas saíram goradas pela declaração de inconstitucionalidade, a qual acarretou que a acção fosse considerada improcedente”.
Em conclusão: para efeitos de aplicação da regra geral em matéria de custas (constante do artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), na decisão de improcedência de uma acção, proferida na sequência da não aplicação ao litígio de norma declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, considera-se parte vencida, e, consequentemente, considera-se que dá causa às custas do processo, o autor na acção julgada improcedente.
A consequência não pode deixar de ser esta, essencialmente pelas seguintes razões: desde logo, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 55/99 não estabeleceu qualquer limitação quanto aos efeitos da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 69º, nº 1, alínea a), segunda parte, do RAU; depois, o autor que viu julgada improcedente a acção que propôs, por ter sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma em que fundamentou a pretensão, é indubitavelmente parte vencida na acção, quanto ao mérito da questão em discussão. Sendo parte vencida quanto ao mérito do litígio, é ele que
“dá causa às custas do processo”.
Verifica-se portanto, também neste caso, o nexo de causalidade entre a improcedência da acção e a actividade processual do autor, que justifica a responsabilidade pelo pagamento das respectivas custas.
Assim, não contraria a Constituição a norma do nº 2 do artigo 446º do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que é parte vencida
(para efeito de condenação em custas) a parte que vê improceder a acção que propôs, por ter sido eliminada do ordenamento jurídico – em virtude de ter sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral – a norma em que fundamentou a pretensão.
A norma questionada não viola o artigo 22º da Constituição, uma vez que não se vê que possa existir aqui qualquer pretensão indemnizatória decorrente de prejuízo causado a uma das partes no processo pelo Estado (pelo Estado-legislador). A norma questionada também não viola o princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2º da Constituição, quer na vertente do princípio da confiança, quer em qualquer outra, na medida em que, sendo a taxa de justiça uma prestação pecuniária que os particulares pagam ao Estado como contrapartida pelo serviço de administração da justiça, trata-se apenas de impor o pagamento da taxa de justiça àquele cuja conduta deu causa à intervenção do tribunal – a parte que decaiu na acção.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do nº 2 do artigo
446º do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que cabe ao autor pagar as custas do processo quando a acção foi considerada improcedente por ter sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma que constituía o fundamento da pretensão deduzida em juízo;
b) Consequentemente, conceder provimento ao presente recurso, determinando a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o aqui decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 27 de Junho de 2001 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida (vencido, pois entendo que, em casos como a dos autos em que não existe qualquer nexo de causalidade entre a improcedência da acção e a actividade processual da parte que vem a ser onerada em custas, apenas uma interpretação conforme com a constituição de norma do artigo
446º, nº 2, do Código de Processo Civil a salva de inconstitucionalidade) José Manuel Cardoso da Costa