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Processo n.º 232/2012
3ª Secção
Relatora Conselheira Maria José Rangel de Mesquita
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente Sociedade A., S.A. e recorrido B., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido pela 6ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, em 29 de fevereiro de 2012 (fls. 579 a 616), para que seja apreciada a inconstitucionalidade da norma extraída do “artigo 4.º do Código do Trabalho de 2003 como impedindo que o IRCT aplicável à relação laboral derrogue os artigos 103.º, n.º 1, alínea e) e 245.º, n.º 2 do Código do Trabalho (in casu, de 2003), é inconstitucional por violação do artigo 56.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa” (fls. 624).
Segundo o requerimento do recurso de constitucionalidade (de fls. 623-625), pretende a recorrente, por referência àquela norma, ver apreciada “a interpretação da lei laboral no sentido de impedir que os IRCT´s possam derrogar lei laboral de conteúdo não imperativo (…)” (fls. 624).
2. Tendo o recurso de constitucionalidade sido admitido por despacho do Tribunal recorrido (fls. 635) e prosseguido neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações de recurso (a fls. 665-687), formulando as seguintes conclusões (fls. 683-687):
«CONCLUSÕES:
(a) O IRCT aplicável às partes prevê que as funções de Chefe de Sala só possam ser exercidas ao abrigo de um regime de comissão de serviço, podendo tal recrutamento suceder sem necessidade de observância de forma escrita (única interpretação lógica possível do uso da expressão 'livremente'), desde que exista prévio acordo do interessado, sendo assim que deveria ter sido interpretado e aplicado o disposto no artigo 4.º do Código do Trabalho de 2003. A matéria de facto provada, em especial o ponto 6.º, permite concluir o total respeito por esta disposição.
(b) O artigo 4.º, n.º 1 do Código do Trabalho de 2003 permitia que as normas daquele Código pudessem ser afastadas por IRCT, desde que tais normas não fossem absolutamente imperativas por via de um afastamento expresso da possibilidade de intervenção da contratação coletiva presente nas próprias normas, conforme regista a nossa melhor doutrina constante das presentes alegações.
(c) Os artigos 103.º, n.º 1, alínea e) e 245.º, n.º 2 do Código do Trabalho de 2003 não são normas absolutamente imperativas, pois que delas não resulta expressamente essa característica, conforme decorre, por exemplo, do artigo 210.º do Código do Trabalho de 2003, sendo este o sentido com que deveria ter sido interpretado e aplicado o disposto no artigo 4.º do Código do Trabalho de 2003.
(d) Sem prescindir, os artigos 103.º, n.º 1, alínea e) e 245.º, n.º 2 do Código do Trabalho de 2003 não são também normas relativamente imperativas, pois que não constam do elenco taxativo do artigo 3.º, n.º 3 do Código do Trabalho de 2009, através do qual o legislador veio, por interpretação autêntica, definir quais são, para si, as disposições relativamente imperativas, aspeto que a doutrina vem realçando, conforme melhor demonstrado nas presentes alegações.
(e) De resto, era o próprio Código do Trabalho de 2003 que permitia que o bem jurídico ''forma do contrato', in casu do contrato de trabalho a teimo, seja afastado quando o IRCT aplicável regula esta matéria (cfr. artigo 128.º de tal diploma), aspeto esse que passou no crivo do Tribunal Constitucional aquando do Acórdão n.º 306/2003, de 18 de julho.
(f) Se se olhar para a ratio da existência da forma escrita, rapidamente se percebe que a mesma também é prosseguida pelo IRCT aplicável, na medida em que sendo a razão de ser do bem jurídico ''forma do contrato de comissão de serviço' indicar ao trabalhador contratado que o acordo feito reveste um instituto especial, transitório por natureza, tal objetivo foi plenamente transmitido seja pelo próprio IRCT seja pela Recorrente, conforme decorre do facto provado 6.º – mais ficando a posição do trabalhador salvaguardada pela existência de um acordo escrito qualificado, como é a própria convenção coletiva.
(g) Recusar-se eficácia a cláusula de convenção coletiva onde a lei a consente é constranger de modo desproporcionado, desnecessário e inadequado o direito fundamental à livre contratação coletiva previsto no n.º 3 do artigo 56.º da Constituição;
(h) Atribuir-se aos tribunais e não à lei o direito de fixar qual o âmbito de aplicação e intervenção da contratação coletiva é restringir a reserva da lei na fixação desse campo de aplicação, assim violando o disposto no n.º 4 do artigo 56.º da Constituição;
(i) Assim, a interpretação do Tribunal a quo das normas vertidas no Código do Trabalho, mormente do artigo 4.º do Código do Trabalho de 2003 como impedindo que o IRCT aplicável à relação laboral derrogue os artigos 103.º, n.º 1, alínea e) e 245.º, n.º 2 do Código do Trabalho (in casu, de 2003) é inconstitucional, por violação do artigo 56.º, n.ºs 3 e 4 da Constituição da República Portuguesa.
(j) Ora, as decisões jurisdicionais a quo interpretam e aplicam os artigos acima analisados do Código do Trabalho de 2003 como cabendo aos tribunais do trabalho e não à lei a delimitação do âmbito de aplicação normativo da autonomia e liberdade de negociação e contratação coletiva, interpretação que é violadora do disposto no artigo 111.º da Constituição da República.
(k) Concomitantemente, e sempre em termos puramente consequenciais face às inconstitucionalidades já assinaladas, a interpretação que se considera ferida de inconstitucionalidade confere aos tribunais o poder de criar atos normativos, o que afronta quer o disposto no artigo 112.º da Constituição, quer o seu artigo 203.º, pois que a elaboração de atos normativos cabe aos poderes legislativo e executivo, ficando para os Tribunais apenas a sua interpretação e aplicação.
(l) Mais: deve assinalar-se que o artigo 4.º n.º 1 do Código do Trabalho de 2003 é uma norma que restringe o direito fundamental de liberdade e autonomia de negociação e contratação coletiva, pelo que o seu âmbito deve ser forçosamente restrito e – passe-se a tautologia – restritivamente lido. Justamente ao contrário do que fizeram a sentença e Acórdão recorridos, que trataram de proceder a uma interpretação que, se não ab-rogante daquela norma laboral, é ao menos extensiva da sua dimensão constrangedora de direito fundamental – tudo em violação do disposto no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.
(m) A decisão em crise constrangeu núcleo fundamental de um direito fundamental sem sequer o fazer em nome de outro direito fundamental o que fez numa interpretação casuística, sem as características da generalidade e abstração que o artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa sempre imporia.
(n) A ser afirmada a inconstitucionalidade da interpretação que os Tribunais a quo fizeram do disposto nos artigos 4.º, 103.º, n.º 2, alínea e) e 245.º, n.º 2 do Código do Trabalho de 2003, daí decorreria, necessariamente, um efeito útil, efetivo e favorável para a Recorrente. De facto, no 'processo-base' teria de considerar-se validamente acordada comissão de serviço entre a A. e o R., à luz de preceito normativo constante de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho e validamente cessado esse regime, com que desapareceriam as condenações: (i) Colocar o autor como chefe de sala por ilegal abaixamento da sua categoria profissional (por não se aceitar a validade e eficácia da cláusula do CCT aplicável); (ii) Consequentemente repor ao autor a retribuição correspondente à categoria de chefe de sala e que o mesmo auferia antes de lhe ter sido retirado o exercício de funções correspondentes a essa categoria;
(o) A Recorrente suscitou a inconstitucionalidade aqui trazida à apreciação do Tribunal Constitucional logo que foi confrontada com a mesma – alegando-a expressamente nas suas alegações de apelação, sendo que atento o valor da causa (inferior a € 30.000,00) e à formação de dupla conforme, o Acórdão da Relação de Coimbra foi a decisão judicial definitiva, insuscetível já de recurso ordinário (cf. Artigos 678.º, n.º 1 e 721.º-A do Código de Processo Civil e artigo 31.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto);
(p) Os tribunais estão vinculados aos preceitos constitucionais respeitantes dos direitos, liberdades e garantias, como preceitua o artigo 18.º da Constituição;
(q) Na sentença e Acórdão em crise, foram violadas as seguintes normas artigo 4.º do Código do Trabalho de 2003, artigos 258.º e 352.º do Código do Trabalho de 2009, as quais foram inconstitucionalmente interpretadas e aplicadas, em inequívoca violação do disposto nos artigos 18.º, 56.º, n.ºs 3 e 4, 61.º, 111.º, 112.º e 203.º da Constituição da República Portuguesa.
(r) Como bem afirmou o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/04, 'A lei não pode aniquilar o direito à contratação coletiva, ocupando-se, ela mesma, da regulamentação latitudinária das relações de trabalho e afastando a sua derrogação por convenção coletiva'.
Nestes termos, e nos que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência:
a) Ser declarada inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 56.º, n.ºs 3 e 4, e 61.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação, constante das decisões proferidas pelo Tribunal do Trabalho da Figueira da Foz e pela Relação de Coimbra do conteúdo dos artigos 4.º, 103.º e 245.º do Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, no sentido de que a contratação coletiva não pode dispensar a forma escrita em acordo de comissão de serviço, apesar de as normas em causa não afastarem de modo expresso ou tácito essa possibilidade;
b) Ser declarada inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 56.º, 111.º 112.º e 203.º da Constituição da República, a interpretação constante da sentença proferida nos autos pelo Tribunal do Trabalho da Figueira da Foz e pela Relação de Coimbra no sentido de que cabe aos tribunais e não à lei a competência para definir qual o âmbito de aplicação dos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e quais as matérias e situações nas quais a contratação coletiva pode derrogar preceitos legais de natureza laboral;
c) Serem consequentemente revogadas, por decorrerem de uma interpretação inconstitucional da lei laboral, os trechos condenatórios constantes das alíneas e) e f) da decisão condenatória constante da sentença proferida pela Primeira Instância.»
3. O recorrido, notificado das alegações de recurso formuladas pela recorrente, apresentou as suas contra-alegações (fls. 729-747), concluindo (fls. 743-747):
«(…)
1) O recurso interposto pela Recorrente não reúne todos os pressupostos de admissibilidade que são necessários e cumulativos para o seu conhecido pelo Tribunal Constitucional;
2) A questão da constitucionalidade normativa não foi suscitada de imediato e de forma adequada e tempestiva perante o Tribunal de 1ª instância;
3) A decisão normativa cuja apreciação se pretende, não foi adotada pelo Tribunal recorrido como “ ratio decidendi” da decisão recorrida;
4) A decisão recorrida debruçou-se longamente sobre se a contratação do Recorrido para o exercício dessas funções de chefe de sala, ao abrigo do preceituado na cláusula 7ª da Convenção Coletiva de Trabalho celebrado entre a Associação Portuguesa das Empresas Concessionárias das Zonas de Jogo e o Sindicato dos Profissionais de Banca dos Casinos e outros, publicado no BTE, 1ª série, nº 30 de 15 de agosto de 1991, estava ou não sujeito à forma escrita imposta pelo artº 103º, nº 1 al e) e 245º nº 2 do CT/2003 que vigorava à data em que o Recorrido passou a exercer as referidas funções.
5) A decisão recorrida decidiu que o regime da cl. 7º do CCT em nada contende com o consagrado nos artºs 103º nº 1 al. e) e 245º nº 2 do Código do Trabalho (na versão 2003), o que torna a apreciação da inconstitucionalidade suscitada perfeitamente inútil.
6) A decisão recorrida sustentou que o CCT ao mencionar que os titulares das funções de chefe de sala e adjuntos de chefe de sala são “recrutados livremente e em comissão de serviço pelas entidades patronais”, não pretendia dizer que não tinham de efetuar um acordo escrito e assinado pelas partes como já previa o CT/2003.
7) Se se pudesse considerar haver um conflito de regimes, coisa que no entender do Tribunal não ocorreu, o Tribunal “a quo” sempre manifestou o entendimento que das normas do CT/2003 aqui em apreciação (artº 103º nº 1 e 245º do CT/2003) resulta que não podem ser afastadas por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, por serem imperativas de conteúdo fixo.
8) Em consonância com o consagrado no artº 4, nº 1 do Código do Trabalho, com as alterações introduzidas pela Lei 99/2003 de 27 de agosto em que “as normas deste Código podem, sem prejuízo do disposto no número seguinte, ser afastadas por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, salvo quando delas resultar o contrário”.
9) No que ao sentido a dar ao “salvo quando delas resultar o contrário”, parece seguro que dos artigo 103º, alínea e) e art.º 245º, nº 2, do CT/2003 resulta que a comissão de serviço não tem validade se não for reduzida a escrito, porque são exigências de natureza e ordem pública e visam garantir e alcançar a certeza e a segurança jurídica.
10) A secção onde se encontra regulado o regime da comissão de serviço tem apenas duas normas com natureza claramente supletiva são as dos prazos de cessação previstos no artº 246º e a valor da indemnização, previsto na al. c) do nº 1 do artº 247º do CT/2003, tudo conforme prevê o nº 4 do artº 247º do mesmo diploma.
11) Dúvidas não restam, assim, que a natureza imperativa resulta da própria norma, e até do regime da comissão de serviço, apenas com as exceções previstas no nº 4 do artº 247º do CT/2003.
12) A exigência da forma escrita na comissão de serviço não pode ser afastada por uma IRCT, muito menos derrogada por uma IRCT de data anterior…
13) Tal entendimento que faria perigar o princípio da segurança no emprego, consagrado no artº 53º da Constituição.
14) Em caso algum o IRCT pode ser considerado um acordo escrito, porque não era efetivamente um acordo escrito e porque não obedece aos requisitos previstos nas várias alíneas do nº 1, do artº. 245º, do CT/2003, até por não ter a menção expressa constante da alínea b) do citado artigo, obrigatória por força do nº 2 e cuja falta também tem a consequência de não se considerar o acordo sujeito ao regime de comissão de serviço.
15) Sustentar que interpretação de que o IRCT (de 1991) aplicável pode derrogar o art.º 103º, nº 1, al. e) e 245º, nº 2, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de agosto é um perfeito absurdo.
16) O que a Recorrente pretende é ver alterada a decisão de facto proferida, com a qual não se conforma, coisa que não deverá ocorrer pois que o Tribunal Constitucional não é um Tribunal de contencioso de decisão e, por tal, em qualquer caso, nunca poderia dar cumprimento ao pedido em c) das Alegações da Recorrente.
17) A interpretação que a Recorrida dá aos artigos 4º, nº 1, 103º, nº 1 al. e) e 245º, nºs 1 e 2, do CT/2003 e à cláusula da IRCT e sustentada nas Alegações de recurso interposto é que é inconstitucional, pois que viola o princípio constitucional da segurança no emprego, constante do art.º 53º, da CRP.
18) A decisão recorrida não merece qualquer reparo limita-se a aplicar bem a lei aos factos dados como provados, fazendo uma interpretação das normas aplicáveis em estrita obediência aos preceitos da Constituição da República Portuguesa.
Nestes Termos e nos que V. Exas doutamente suprirão,
Deverá o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
i. Não conhecer o recurso interposto quanto à questão da alegada inconstitucionalidade das interpretações normativas dos artºs 103º nº1, al. e) e 245º nº2 ambos do CT/2003 por o recurso interposto não preencher os requisitos de admissibilidade;
ii. Não julgar inconstitucional a norma do 103º nº 1 al e) do Ct/2003 quando interpretada como uma norma imperativa de conteúdo fixo que não pode ser afastada por IRCT muito menos derrogada por IRCT que lhe é anterior no tempo.
iii. Não julgar inconstitucional a norma do artº 245, nº2 do CT/2003 quando interpretada como norma imperativa de conteúdo fixo que não pode ser afastada por IRCT muito menos derrogada por IRCT que lhe é anterior no tempo.
iv. Negar provimento ao recurso interposto para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido nos presentes autos em 29 de fevereiro de 2012.»
4. Notificada a recorrente Sociedade A., SA para «se pronunciar sobre as questões relativas aos pressupostos de admissibilidade do recurso suscitadas nas contra-alegações do recorrido» e «sobre o preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso, nomeadamente a existência de objeto normativo e a aplicação dos critérios normativos cuja sindicância se pretende como ratio decidendi das decisões recorridas» (fls. 764), veio a mesma responder, considerando em síntese «estarem reunidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional» (fls. 766). Naquilo que especificamente diz respeito aos pressupostos de admissibilidade, transcreve-se a seguinte passagem da resposta da Recorrente:
«(…) entende o Recorrido que a Recorrente deveria ter suscitado a questão de inconstitucionalidade logo na contestação apresentada.
Com a devida vénia, esta interpretação não tem o menor cabimento na letra da lei, sendo que justamente o Recorrido não identifica a disposição legal que impedisse a Recorrente de invocar tempestivamente esta questão nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Estando em causa a aplicação de uma norma ou uma interpretação normativa, está-se necessariamente perante uma decisão judicial, não fazendo sentido tratar da invocação de inconstitucionalidade por referência a uma petição inicial.
O sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra é esclarecedor quanto à real fundamentação da decisão deste Tribunal: “as normas dos artigos 103.º, n.º 1, alínea e) e artigo 245.º, n.º 2, do CT/2003, ao imporem a forma escrita para o contrato de trabalho em comissão de serviço e a consequência para a sua inobservância, são normas imperativas de conteúdo fixo, fundadas em razões de ordem pública, e não podem ser afastadas por IRCT”.
Sendo esta a real fundamentação do aresto do Tribunal da Relação de Coimbra e seu cerne decisório, é também contra ela, ou melhor, quanto a esta interpretação, que a Recorrente se insurgiu ao interpor recurso para o Tribunal Constitucional. As conclusões da Recorrente delimitam perfeitamente a decisão normativa e o objeto do recurso.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 635), com fundamento no n.º 1 do artigo 76.º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75.º-A e 76.º, n.º 2, da LTC.
6. Do teor do requerimento de interposição de recurso apresentado pela recorrente decorre que do mesmo consta a indicação: da alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC ao abrigo da qual o recurso é interposto – alínea b) do n.º 1 artigo 70.º; da norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie – «a interpretação e sentido decisório do Tribunal a quo das normas vertidas no Código do Trabalho, mormente do artigo 4.º do Código do Trabalho de 2003 como impedindo que o IRCT aplicável à relação laboral derrogue os artigos 103.º, n.º 1, alínea e) e 245.º, n.º 2 do Código do Trabalho (in casu, de 2003)», em concreto «a interpretação da lei laboral no sentido de impedir que os IRCT’s possam derrogar lei laboral de conteúdo não imperativo»; e das normas ou princípios constitucionais que se consideram violados – «artigo 56.º, n.º 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e por inerência o artigo 111.º da CRP» (cfr. requerimento de interposição de recurso, fls. 624). Nas alegações de recurso é ainda mencionada a violação dos artigos 112.º e 203.º da Constituição pela «interpretação constante da sentença proferida nos autos pelo Tribunal do Trabalho da Figueira da Foz e pela Relação de Coimbra no sentido de que cabe aos tribunais e não à lei a competência para definir qual o âmbito de aplicação dos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e quais as matérias e situações nas quais a contratação coletiva pode derrogar preceitos legais de natureza laboral» (cfr. alegações de recurso, fls. 681 e 687) e indicada a peça processual em que a recorrente alega ter suscitado a questão da inconstitucionalidade – «alegações de apelação» (fls. 682).
7. Segundo jurisprudência constante do Tribunal Constitucional a admissibilidade do recurso apresentado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos: ter havido previamente lugar ao esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC), tratar-se de uma questão de inconstitucionalidade normativa, a questão de inconstitucionalidade normativa haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC) e a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionalidade pelo recorrente (vide, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 618/98 e 710/04 – disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt).
Faltando um destes requisitos, o Tribunal não pode conhecer do recurso.
8. Ora, desde logo, quanto à alegada segunda questão de inconstitucionalidade, invocada nas alegações de recurso para o Tribunal Constitucional, da «interpretação constante da sentença proferida nos autos pelo Tribunal do Trabalho da Figueira da Foz e pela Relação de Coimbra no sentido de que cabe aos tribunais e não à lei a competência para definir qual o âmbito de aplicação dos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e quais as matérias e situações nas quais a contratação coletiva pode derrogar preceitos legais de natureza laboral» (fls. 687), por «violação dos artigos 56.º, 111.º, 112.º e 203.º da Constituição da República» (cfr. idem), verifica-se um alargamento indevido do objeto do recurso fixado pela recorrente no seu requerimento de interposição de recurso, pelo que não se pode dela conhecer.
9. Quanto à alegada inconstitucionalidade do «artigo 4.º do Código do Trabalho de 2003 como impedindo que o IRCT aplicável à relação laboral derrogue os artigos 103.º, n.º 1, alínea e) e 245.º, n.º 2 do Código do Trabalho (in casu, de 2003», pretendendo a recorrente ver apreciada «a interpretação da lei laboral no sentido de impedir que os IRCT´s possam derrogar lei laboral de conteúdo não imperativo», não se encontra preenchido, no caso em apreço, o pressuposto relativo à efetiva aplicação, pelo Tribunal recorrido, da norma (ou dimensão normativa) cuja constitucionalidade é questionada.
Convém frisar que o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer de normas jurídicas que tenham constituído razão determinante da decisão desfavorável ao recorrente (artigo 79.º-C da LTC). Cabe, portanto, aos recorrentes delinear o objeto do recurso de modo que a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendem ver apreciada corresponda, integral e fidedignamente, à que foi efetivamente aplicada pela decisão alvo de recurso. Sucede, porém, que, nos presentes autos, a «dimensão normativa» que a recorrente fixou como objeto do recurso não corresponde, precisamente, à adotada pela decisão recorrida. Com efeito, o preceito legal identificado pela recorrente no respetivo requerimento de interposição – isto é, o artigo 4.º do Código do Trabalho de 2003, interpretado no sentido de impedir «que o IRCT aplicável à relação laboral derrogue os artigos 103.º, n.º 1, alínea e) e 245.º, n.º 2 do Código do Trabalho (in casu, de 2003)», já que a «interpretação da lei laboral no sentido de impedir que os IRCT´s possam derrogar lei laboral de conteúdo não imperativo é inconstitucional por violação do artigo 56.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa» (fls. 624), não foi aplicado na decisão do Tribunal da Relação de Coimbra recorrida (nem na decisão do Tribunal de 1ª Instância de que coube recurso de apelação para aquele Tribunal).
Mais: a decisão recorrida não aplicou efetivamente a norma constante do artigo 4.º do Código do Trabalho, por entender, a montante, não ocorrer qualquer conflito entre normas juslaborais de diferente natureza – legal e convencional – de forma a considerar-se a possível derrogação das normas legais em causa pela norma convencional invocada quanto à forma do contrato de comissão de serviço, como pretendido pela Recorrente. O que a decisão recorrida primeiramente concluiu foi algo bastante diferente. Concluiu que a cláusula 7ª da Convenção Coletiva de Trabalho aplicável não regulava a forma do contrato em causa, pelo que não cumpria aferir da possível derrogação das normas constantes dos artigos 103.º, n.º 1, alínea e) e 245.º, n.º 2, do Código do Trabalho (2003).
Nestes termos:
«Trata-se de saber se as normas dos art. 103.°, n.° 1, alínea e) e 245.°, n.º 2 do Código do Trabalho de 2003, ao imporem a forma escrita para o contrato de trabalho em comissão de serviço e a consequência para a sua inobservância, prevalecem ou não sobre a cl. 7ª n.º 1 do CCT identificado na sentença recorrida e que dispõe: “as funções de chefe de sala e adjunto de chefe de sala são consideradas como sendo da exclusiva confiança da entidade patronal; os respetivos titulares são recrutados livremente e em comissão de serviço pelas entidades patronais, com prévio acordo do interessado e nos termos do Regulamento da Carteira Profissional, de entre os profissionais das salas de jogos”.
Ora antes de mais, cumpre dizer que, na nossa leitura, o art. 7.° do CCT nada refere quanto à forma do contrato. Ou seja, por ele próprio não impõe forma, nem a dispensa. A expressão “livremente” não significa que o contrato não seja um contrato formal, sujeito a escrito, quando a lei o imponha. O mesmo advérbio “livremente” é também usado no n.° 2 (“à comissão de serviço acima pode livremente o trabalhador ou entidade patronal pôr termo, mediante comunicação escrita ao outro (...)”) a respeito da cessação da comissão e aí não pode haver dúvidas que não se refere à forma, já que impõe a declaração escrita.
Por isso, diríamos que não encontramos incompatibilidade substancial entre o regime geral previsto no Código do Trabalho para a forma do contrato de comissão de serviço e o previsto na cl. 7ª do CCT. Ou seja, não vemos que este afaste as assinaladas normas do Código do Trabalho que exigem a forma escrita e, portanto, são aplicáveis as normas deste que imponham a forma escrita.»
Mas mesmo que assim não se entendesse, e pretendendo a Recorrente ver apreciada a constitucionalidade da “interpretação da lei laboral no sentido de impedir que os IRCT´s possam derrogar lei laboral de conteúdo não imperativo”, certo é que quer a decisão de primeira instância, quer a decisão ora recorrida sempre consideraram que as normas constantes dos artigos 103.º, n.º 1, alínea e) e 245.º, n.º 2 do Código do Trabalho (2003), cuja derrogação pelo instrumento de negociação coletiva em causa se pretendia, assumem natureza imperativa. Verifica-se, assim, no caso sub judice (como aliás, se verificou anteriormente, em recurso de constitucionalidade interposto pela ora recorrente da alegada interpretação normativa do artigo 4.º do Código do Trabalho de 2003 e objeto da Decisão Sumária n.º 580/2012) que a questão colocada pela Recorrente – nos termos em que foi colocada – não encontra correspondência no juízo formulado pelo Tribunal a quo.
Tal é exemplarmente ilustrado na seguinte passagem do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra ora recorrido:
« (…)
De todo o modo, quanto à imperatividade sempre diremos o seguinte: o art. 4.° n.º 1 do CT/2003 estabelece que as suas normas podem ser afastadas por IRCT, salvo quando delas resultar o contrário. Por seu turno, o art. 533.° do mesmo CT estabelece que os IRCT não podem contrariar normas legais imperativas.
Aquele art. 4.º, nº 1 permite que as normas deste possam ser afastadas por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, quer em sentido mais favorável aos trabalhadores (in melius), quer em sentido menos favorável (in peius). Mas é necessário, contudo, que da norma em questão do Código não resulte o contrário.
A proibição tanto pode ser absoluta (caso das normas imperativas de conteúdo fixo, que contém valores de ordem pública), como relativa (como é o caso, por exemplo, das normas imperativas-permissivas). Se a lei contiver uma norma imperativa de conteúdo fixo, os instrumentos de regulamentação não podem dispor de forma diferente, independentemente de ser mais ou menos favorável.
Ora, quanto a nós, tal como se entendeu na 1ª instância, as normas que estabelecem a forma para o contrato de trabalho são de natureza e ordem pública. Visam garantir e alcançar a certeza e a segurança jurídicas em matérias nas quais o trabalhador pode estar mais desprotegido. Constituirão normas imperativas de conteúdo fixo, a menos que a mesma lei diga que expressamente que podem ser afastadas por IRCT.
Por isso, entendemos que as normas dos arts. 103.°, n.º 1, alínea e) e 245.°, n.º 2 do Código do Trabalho de 2003, ao imporem a forma escrita para o contrato de trabalho em comissão de serviço e a consequência para a sua inobservância, são normas que não podem ser afastadas por IRCT, uma vez que a lei não o indica expressamente.»
Verifica-se, por conseguinte, que a decisão recorrida nunca aplicou efetivamente a norma que a recorrente pretendia ver julgada inconstitucional (o artigo 4.º do Código do Trabalho de 2003 como impedindo que o IRCT aplicável à relação laboral derrogue os artigos 103.º, n.º 1, alínea e) e 245.º, n.º 2 do Código do Trabalho), nos precisos termos interpretativos que esta fixou (no sentido de impedir que os IRCT´s possam derrogar lei laboral de conteúdo não imperativo) como objeto do presente recurso. Portanto, mais não resta do que concluir pelo não conhecimento do objeto do recurso.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º e do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 23 de outubro de 2013. – Maria José Rangel de Mesquita – Lino Rodrigues Ribeiro – Carlos Fernandes Cadilha – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.