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Processo n.º 171/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Ana Guerra Martins
Acordam, na 2ª Secção, do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e Instituto B., foi interposto recurso de acórdão proferido pela 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 31 de janeiro de 2012 (fls. 1093 a 1094-A-verso), para apreciação da constitucionalidade da interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 132º, n.º 1, alínea b), e 400º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido da irrecorribilidade do Acórdão do Tribunal da Relação ao qual seja imputada uma nulidade por omissão de pronúncia e que não tenha conhecido sobre o mérito do objeto do processo
Para boa compreensão e decisão da questão em apreço, importa sintetizar a tramitação processual, perante os tribunais recorridos, que deu causa ao presente recurso:
i) Com efeito, o recorrente foi condenado, por acórdão proferido pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, em 23 de junho de 2010 (fls. 850 a 865), pelo crime continuado de falsificação de documentos, a uma pena única de 3 anos de prisão.
ii) Após recurso, a 9ª Secção Tribunal da Relação de Lisboa, em conferência, negou-lhe provimento mediante acórdão proferido em 10 de março de 2011 (fls. 995 a 1015);
iii) Após arguição da nulidade do mesmo, quer por alegada falta de assinaturas, quer por omissão de pronúncia (fls. 1020-1023), o Juiz-Relator proferiu despacho, em 27 de abril de 2011 (fls. 1032), através do qual, simultaneamente, esclareceu que daquele acórdão constavam as assinaturas do Relator e do Adjunto e notificou o recorrente para vir juntar aos autos, no prazo oito dias cópia da decisão da qual alegara só constar uma assinatura;
iv) Por requerimento entregue em 17 de maio de 2011 (fls. 1034 a 1036), o recorrente assumiu ter incorrido num erro de perceção, reconhecendo que do acórdão constavam duas assinaturas, mas manteve a arguição de nulidade, com fundamento na omissão de pronúncia;
v) Por despacho proferido em 31 de maio de 2011 (fls. 1037 e 1037-verso), o Juiz-Relator viria a indeferir a arguição de nulidade quanto à referida omissão de pronúncia;
vi) Face a esta decisão, o recorrente reclamou para a conferência, em 16 de junho de 2011 (fls. 1040 a 1042), tendo a mesma rejeitado provimento a essa reclamação, por acórdão proferido em 08 de julho de 2011 (fls. 1049 e 1050);
vii) De tal decisão foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, em 19 de setembro de 2011 (fls. 1055 a 1062), com fundamento na omissão de pronúncia;
viii) Em sede de vista, em 02 de dezembro de 2001 (fls. 1082 a 1085), o Ministério Público junto daquele Tribunal viria a pugnar pela inadmissibilidade do recurso daquela decisão por esta se tratar de decisão que não conheceu do objeto do processo, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 400º do CPP;
ix) Notificado do referido parecer, o recorrente veio responder, tendo suscitado a inconstitucionalidade daquela interpretação normativa, que constitui agora objeto do presente recurso;
x) A 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em conferência, veio a negar provimento ao recurso, por acórdão proferido em 31 de janeiro de 2012 (fls. 1093 a 1095), com fundamento na irrecorribilidade da decisão proferida pela 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo pela aplicação e pela não inconstitucionalidade da alínea c) do n.º 1 do artigo 400º do CPP.
2. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu as seguintes alegações:
«1. Está em causa o conjunto normativo formado pela alínea c) do n2 1 do artigo 400 do CPP conjugado com o artigo 432º nº 1 alínea b) do mesmo diploma, quando preveem a irrecorribilidade de Acórdão da Relação que esteja ferido de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º nº 1, alínea c) do mesmo Código.
Por manifesto lapso de escrita na petição de recurso foi escrito 132º, mas como se verifica pela peça processual onde a questão da constitucionalidade foi prevenida queria dizer-se 432º
2. Segundo o recorrente essa dimensão normativa concreta, que foi aplicada nos autos, como já foi suscitado, ofende os artigos 20º e 32º nº 1 da CRP, pelo que as normas jurídicas que a preveem estão feridas de inconstitucionalidade material.
3. O recorrente inconformado com acórdão condenatório proferido pela primeira instância interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa e suscitou questões, que este não conheceu.
4. Foi então suscitada a nulidade por omissão de pronúncia, pois que não haviam sido objeto de conhecimento e decisão da totalidade das questões que integravam o objeto do processo.
5. Ante tal arguição de nulidade, e pelo facto de a ver despachada por um só Juiz Desembargador, quando se tratava de invalidade de um ato decisório colegial, o ora recorrente reclamou da referida decisão, vendo-a também rejeitada.
6. Na sequência, interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo o recurso rejeitado com fundamento na irrecorribilidade da decisão por alegadamente cair na previsão do estatuído na al. c) do n2 1 do artigo 400º do CPP.
7. Ora o recorrente entende que o fundamento normativo em que se baseia na proclamada irrecorribilidade é desconforme à Lei Fundamental.
8. Acompanhamos o entendimento que o artigo 32º, nº 1 da CRP quando consagra o direito ao recurso em processo penal não estabelece o caráter ilimitado de tal direito, ferindo de desconformidade constitucional as normas legais onde se estatuam áreas de irrecorribilidade; a questão é de proporcionalidade, é de tal irrecorribilidade decorrente da lei não ferir núcleos essenciais de tutela constitucional.
9. Assim estará vedado ao legislador clausular a irrecorribilidade de decisões que ponham em crise um suficiente exame do mérito da causa, e por isso se tem entendido que a irrecorribilidade decorrente da dupla conforme — seja da dupla convergência de dois graus de jurisdição sobre uma mesma questão de substância — é compatível com a Constituição.
Não aceitamos — mas não é assim que o entende o TC — que qualquer concordância condenatória equivalha a dupla conforme, pois que havendo nomeadamente divergência quanto à espécie ou medida da pena, ainda que in mellius, não se pode falar em conformidade.
10. Também entendemos que a Constituição confere ao legislador a possibilidade de vedar o recurso a acórdãos que a segunda instância conheça e que «não conheçam, a final, do objeto do processo», ou seja o literalmente enunciado na alínea c) do nº 1 do artigo 400º do CPP.
11. Mas — e eis o ponto — será que este enunciado normativo respeita a Constituição quando comporta a situação em que foi suscitado em sede de arguição de nulidade uma questão processual de não pronúncia face ao que havia sido delineado como objeto do recurso e que a Relação não conheceu? A nosso ver não respeita.
12. A dimensão normativa enunciada na alínea c) do nº 1 do artigo 400º do CPP que temos por compatível com a Lei Fundamental é aquele em que a Relação conheça, em recurso, questões de cunho meramente interlocutório ou em que a questão decidida em recurso o seja através de não conhecimento do objeto do processo; não os casos em que a Relação esteja a conhecer não afinal uma questão que lhe foi suscitada em recurso, mas sim uma situação em que foi a Relação a praticarem o ato que está a dar azo ao recurso.
O elemento histórico demonstra-o. A Lei nº 59/98, de 25.08 ao prever a irrecorribilidade dos Acórdãos da Relação que não pusessem termo à causa. A Lei n.º 48/2007, de 29.08 ampliou o fundamento para uma formulação em que a irrecorribilidade se reporta aos Acórdãos que não conheçam, a final, do objeto do processo.
Ora revendo, em interpretação sistemática o CPP, verifica-se que se está a falar daquele enunciado de situações que foram julgados nos termos do nº 3, alínea b) do referido diploma adjetivo, com remissão para a alínea b) do nº 1 do artigo 97º do mesmo.
A dimensão normativa aqui em exame é aquela em que, no caso, ao conhecer de um recurso de mérito, em que lhe são colocadas para exame várias questões, a Relação omite conhecê-las, através de uma omissão que integra a nulidade por omissão de pronúncia [tempestivamente alegada], ou seja, trata-se de um caso em que a Relação está a agir em primeira instância e não a confirmar ou a infirmar decisão pretérita.
A dimensão normativa que a norma da alínea c) do nº 1 do artigo 400º do CPP prevê de modo a ser compatível com a Lei Fundamental é aquela em que aquela dimensão normativa que acabamos de referir tem de ser expurgada do âmbito material do preceito.
É que a não ser assim fica aberta a porta a que a Relação, ao agir ao abrigo dos seus poderes de tribunal de recurso, possa praticar nulidades [como esta de não pronúncia relativamente às problemáticas que lhe foram colocadas para análise] e tudo isso fique selado com o benefício da irrecorribilidade.
Ora se é verdade que o âmbito de um recurso é delimitado pelo seu objeto, e este pelas questões que são colocados ao tribunal ad quem, e se é verdade também que os poderes cognitivos, os poderes decisórios e o âmbito do caso julgado se delimitam a partir desse núcleo essencial problemático colocado em recurso, a conclusão legítima é que a omissão de conhecer de tais questões equivale à denegação pura de Justiça, através do esvaziamento do direito ao recurso.
Penso que o confinamento da norma da citada alínea c) a uma interpretação meramente literal restritiva que valorize o não conhecimento do objeto do processo como equivalente ao não conhecimento do mérito da causa ou a decisões que não ponham termo à causa, está para além do consentido pelo núcleo essencial de proteção jurídica conferida pela Constituição.
É que, compreende-se que a Relação possa gozar do benefício da irrecorribilidade para decisões que, proferidas em recurso, não entram no núcleo essencial do objeto do processo, ou por serem interlocutórias [artigo 419º, nº 3, b) do CPP], ou por não porem termo ao processo, como sucede nos casos de reenvio [artigo 426º do CPP] pois que aí está a haver uma decisão que ou não entra no núcleo essencial da problemática substancial ou em que o processamento segue os seus termos.
Agora o que não se pode acompanhar é que sendo o vício assacado não à instância recorrida, mas praticado pela instância a que se recorreu, possa ficar sem remédio de recurso, nomeadamente quando se trata de um vício que significa, como é o caso da omissão de pronúncia, de esvaziar, pelo não conhecimento, o direito ao recurso, não conhecendo o que foi colocado como tema recorrido.
É que, então, mais do que estar em crise o direito ao recurso, tutelado pelo artigo 32º, nº1 da CRP, está em causa o direito de defesa [que fica gravemente amputado, por ficar o arguido à mercê da discricionariedade do tribunal quanto ao que quer ou não conhecer ante as questões sub ¡udice], e também o próprio acesso à jurisdição, tal como o enuncia o artigo 20º da CRP [pois que o arguido fica sujeito ao que tribunal entender conhecer, podendo subtrair-se aos temas que lhe aprouver, sem qualquer consequência processual].
CONCLUSÕES
O conjunto normativo formado pela alínea c) do nº 1 do artigo 400º do CPP conjugado com o artigo 432º nº 1 alínea b) do mesmo diploma, quando preveem a irrecorribilidade [para o STJ] de Acórdão da Relação que esteja ferido de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º nº 1, alínea c) do mesmo Código, são materialmente inconstitucionais, por violação dos artigos 20º e 32º, nº 1 da CRP.
A dimensão normativa do referido conjunto normativo só pode ser conforme à Lei Fundamental na medida em que se trate de nulidade de pronúncia assacada à primeira instância recorrida, e não aquela outra que seja praticada [por ignorância de questões suscitadas já em recurso] pelo próprio Tribunal da Relação.
É que a dimensão normativa que preveja a irrecorribilidade nestas circunstâncias não só lesiona o direito ao recurso [permitindo à Relação esvaziá-lo pelo não conhecimento de questões que lhe foram colocadas em recurso], como o próprio direito de defesa [deixando o arguido desguarnecido de meios pelos quais possa sindicar em recurso omissões cognitivas do tribunal a que recorreu] como ainda o próprio acesso à jurisdição [por facultar ao tribunal a que se recorreu a seleção arbitrária sem consequências das questões sobre as quais entende que quer pronunciar-se].
Nestes termos deve ser decretada a inconstitucionalidade material das normas citadas, ordenando a reforma dos autos para que seja expurgada do vício e, em consequência, remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça sendo recebido e conhecido o recurso ora rejeitado.» (fls. 1116 a 1120)
3. Por sua vez, o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões nas contra-alegações:
«31º
Este Ministério Público, em face de todo o exposto, não poderá, assim, senão concluir, propugnando que:
a) seja negado provimento ao presente recurso;
b) se mantenha, em conformidade, incólume o Acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça, de 31 de janeiro de 2012;
consequentemente, se conclua pela conformidade constitucional do “conjunto normativo formado pela alínea c) do nº 1 do artigo 400º do CPP conjugado com o artigo 132º, nº 1, alínea b) do mesmo Código, quando preveem a irrecorribilidade de Acórdão da Relação que esteja ferido de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea c) do mesmo compêndio adjetivo”.». (fls. 1169 e 1170)
4. Devidamente notificado para o efeito, o recorrente Instituto B. deixou esgotar o prazo sem que viesse aos autos deduzir quaisquer contra-alegações.
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Antes de mais, importa precisar o objeto do presente recurso. No fundo, questiona-se a irrecorribilidade, com fundamento em nulidade por omissão de pronúncia, de decisão proferida por um dos juízos de um Tribunal de Relação, em conferência, que, por sua vez, haja decidido indeferir reclamação de decisão sumária proferida pelo Juiz-Relator, também com fundamento na sua nulidade por omissão de pronúncia, decisão essa que também já haja concluído pelo indeferimento de requerimento de arguição de nulidade – mais uma vez com fundamento na omissão de pronúncia – de acórdão proferido por aquele Tribunal, apenas este versando sobre o mérito da causa; isto é, quanto ao mérito da decisão condenatória proferida pelo tribunal de primeira instância. É da alegada inconstitucionalidade dessa interpretação complexa e conjugada dos artigos 132º, n.º 1, alínea b), e 400º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal (CPP) que se passará a julgar.
No fundo, questiona-se se é inconstitucional interpretar aqueles preceitos legais no sentido de que um acórdão que não se pronuncie sobre o objeto do processo – mas apenas sobre uma questão acessória, como é a eventual nulidade por omissão de pronúncia – pode ficar isento de um controlo por uma outra instância jurisdicional, quando aquela questão acessória apenas foi ponderada e decidida por um único grau de instância.
6. A questão normativa que constitui objeto do presente recurso tem vindo a ser apreciada por este Tribunal, ainda que essa apreciação possa resultar de diferentes trechos legais extraídos do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal (CPP). Ainda na vigência de redação anterior à reforma de 2007, o Acórdão n.º 390/2004 (que se encontra disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), teve oportunidade de, a propósito da alínea e) do n.º 1 do artigo 400º do CPP, decidir no seguinte sentido:
«Sendo assim, não decorre forçosamente da garantia constitucional de um duplo grau de jurisdição que haja de ser sempre admissível o recurso para o tribunal superior nos casos em que o tribunal de recurso se pronuncie, pela primeira vez, sobre questões que influam na decisão da causa (ressalvando-se o recurso de constitucionalidade para o órgão jurisdicional específico não enquadrado na hierarquia dos tribunais) ou nos de, ao proferir a decisão, incorrer na violação de lei processual ou procedimental que seja sancionada com o estigma da nulidade.
Nada impõe que se leve a autonomização da questão da nulidade da decisão em relação à questão de fundo tão longe que seja constitucionalmente exigível a existência de um 2º grau de jurisdição especificamente para esta questão, considerando o regime de arguição e conhecimento das nulidades em processo penal por via de recurso, a possibilidade de arguir as nulidades perante o órgão que proferiu a decisão, quando aquele recurso não existir, e, como no presente caso, a existência de duas decisões concordantes em sentido condenatório (o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância nesse sentido).
É claro que o legislador poderia, na sua discricionariedade legislativa, admitir esse recurso, mesmo nas hipóteses em que o fundamento deste resida na arguição de nulidades processuais, assim ampliando o âmbito material do direito de recurso, mas a sua inadmissibilidade não será constitucionalmente intolerável.
Nesta perspetiva, poder-se-á dizer que, em caso de recurso relativo a decisão condenatória, seja com fundamento em nulidades processuais, seja com fundamento em erros de julgamento atinentes ao fundo da causa, o seu objeto apelante de um terceiro grau de jurisdição será sempre o acórdão condenatório em si próprio. É certo que, quando o fundamento do recurso se consubstancie em uma causa de nulidade do acórdão condenatório, não poderá afirmar-se ter sido exercida a garantia do duplo grau de jurisdição por uma forma definitiva. Mas uma tal situação apenas demanda, numa perspetiva de garantia constitucional do acesso aos tribunais que o recorrente convoca (art.º 20º da CRP), que esse mesmo grau de jurisdição se possa (deva) pronunciar de modo formalmente válido sobre o objeto do recurso. Nesta perspetiva ganha todo o sentido a possibilidade de o tribunal recorrido poder suprir as nulidades e de o tribunal ad quem apenas conhecer delas quando, sendo admissível o recurso, aquele o não tenha feito ou não as haja atendido (art.º 379º, n.º 2, e 414º, n.º 4, do CPP; cf., no domínio do processo civil, o art.º 668º, n.º 3 do Código de Processo Civil). Deste modo, a apreciação de nulidades de acórdão condenatório não postula a necessidade de existência de mais um grau de recurso. A reclamação perante o órgão jurisdicional que exerce o segundo grau de jurisdição configura-se, assim, como um instrumento jurídico adequado de garantir o acesso aos tribunais, na sua dimensão de direito a obter uma decisão formalmente válida, que é a dimensão que o recorrente aqui questiona.
Aliás, admitindo-se a constitucionalidade das normas que preveem a existência apenas de um duplo grau de jurisdição, mesmo quando está em causa a “bondade” do julgamento efetuado, maiores razões existem para não se terem por desconformes com a Lei Fundamental aquelas disposições que limitam o recurso ao mesmo segundo grau de jurisdição em caso de existência de nulidades da decisão, que advêm essencialmente da violação de regras processuais ou procedimentais, quando está aí garantido o direito de reclamação para apreciação dessas nulidades para o órgão jurisdicional que exerceu o último grau de jurisdição.»
E, ainda mais recentemente – já a propósito da redação atual da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP –, o Tribunal Constitucional reiterou idêntico entendimento, através do Acórdão n.º 659/2011, da 2ª Secção, que viria a ser, mais tarde, corroborado pelo Acórdão n.º 194/2012, da 3ª Secção (ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Através do referido Acórdão n.º 659/2011, esclareceu-se que:
«Também no caso dos autos, tendo sido assegurado aos arguidos um duplo grau de jurisdição (uma vez que tiveram a possibilidade de, face à mesma imputação penal, defender-se perante dois tribunais: o tribunal de 1.ª instância e o tribunal da Relação), a questão que se coloca é a de saber se, tendo sido arguidas nulidades do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, é inconstitucional limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, por aplicação da regra da dupla conforme, prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
(…)
Importa, antes de mais, ter em consideração o regime de arguição e conhecimento das nulidades em processo penal, que garante, mesmo em caso de irrecorribilidade, a possibilidade de serem arguidas nulidades da decisão perante o tribunal que a proferiu (como, aliás, aconteceu no presente caso), tendo este poderes para suprir as eventuais nulidades cuja existência reconheça (cfr. artigos 379.º, n.º 2, e 414.º, n.º 4, do Código de Processo Penal).
Ora, sendo certo, conforme se disse, que o artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição em relação a quaisquer decisões penais condenatórias, resta verificar se, nos casos em que o Tribunal da Relação profere acórdão em que mantém a decisão condenatória da 1.ª instância e é arguida a nulidade de tal acórdão, se mostra cumprida a garantia constitucional do direito ao recurso, quando exige que o processo penal faculte à pessoa condenada pela prática de um crime a possibilidade de requerer uma reapreciação do objeto do processo por outro tribunal, em regra situado num plano hierarquicamente superior.
Com uma reapreciação jurisdicional, independentemente do seu resultado, revela-se satisfeito esse direito de defesa do arguido, pelo que a decisão do tribunal de recurso já não está abrangida pela exigência de um novo controle jurisdicional. E o facto de, na sequência dessa reapreciação, terem sido arguidas nulidades do acórdão do Tribunal da Relação não constitui motivo para se considerar que estamos perante uma primeira decisão sobre o thema decidendum, relativamente à qual é necessário garantir também o direito ao recurso.
Com efeito, a circunstância de os recorrentes terem arguido nulidades do acórdão do Tribunal da Relação não modifica o objeto do processo uma vez que, tal como a decisão da 1.ª instância, o acórdão do Tribunal da Relação que sobre ela recai limita-se a verificar se o arguido pode ser responsabilizado pela prática do crime que estava acusado e, na hipótese afirmativa, a definir a pena que deve ser aplicada, o que se traduz num reexame da causa.
O Acórdão do Tribunal da Relação constitui, assim, já uma segunda pronúncia sobre o objeto do processo, pelo que não há que assegurar a possibilidade de aceder a mais uma instância de controle, a qual resultaria num duplo recurso, com um terceiro grau de jurisdição.
Por outro lado, existindo sempre a possibilidade de arguir as referidas nulidades perante o tribunal que proferiu a decisão, mesmo quando esta seja irrecorrível, a apreciação de nulidades do acórdão condenatório não implica a necessidade de existência de mais um grau de recurso, tanto mais em situações, como a dos autos, em que existem duas decisões concordantes em sentido condenatório (uma vez que o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância nesse sentido).
Acresce que, se fosse entendido que a arguição da nulidade de um acórdão proferido em recurso implicaria, sempre e em qualquer caso, com fundamento no direito ao recurso em processo penal, a abertura de nova via de recurso, ter-se-ia de admitir também o recurso do acórdão proferido na terceira instância, com fundamento na sua nulidade, e assim sucessivamente, numa absurda espiral de recursos.
Impõe-se, pois, concluir que não é constitucionalmente censurável, neste caso, a exclusão do terceiro grau de jurisdição e que a interpretação normativa objeto de fiscalização não viola o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.»
A circunstância de, nos presentes autos, se tratar de um recurso de constitucionalidade que tem por referência a alínea c) do n.º 1 do artigo 400º do CPP – que corresponde, na verdade, ao preceito legal expressamente aplicado pela decisão recorrida – não invalida, de modo algum, que o objeto do mesmo corresponda, do ponto de vista material, à exata configuração normativa que já foi alvo dos juízos de não inconstitucionalidade supra transcritos. Aqui, como ali, impõe-se discutir se a impossibilidade de recurso de uma decisão de um tribunal criminal de segunda instância, quando apenas esteja em causa uma discussão acerca da sua nulidade (e não uma questão sobre o mérito do objeto penal já sindicado por duas instâncias), conflitua com o direito ao recurso e o direito ao contraditório (cfr. artigos 32º, n.ºs 1 e 5, da CRP).
Ora, conforme bem demonstra o Acórdão n.º 659/2011, desde logo se exclui que o direito ao contraditório relativamente a alegadas nulidades da decisão penal condenatória fique colocado em causa, de modo desproporcionado, na medida em que o recorrente manteve a faculdade de confrontar o próprio tribunal que proferiu a decisão reputada de nula com essa mesma alegação de nulidade. Por outro lado, reitera-se igualmente a fundamentação já amplamente explanada naquele aresto, segundo a qual nem sequer o direito ao recurso penal ficou verdadeiramente prejudicado.
Portanto, pelas razões expostas pelo Acórdão n.º 659/2011, julga-se não inconstitucional a norma extraída da conjugação entre a alínea b) do n.º 1 do artigo 132º e a alínea c) do n.º 1 do artigo 400º do CPP, quando interpretada no sentido de determinar a irrecorribilidade do Acórdão do Tribunal da Relação ao qual seja imputada uma nulidade por omissão de pronúncia e que não tenha conhecido sobre o mérito do objeto do processo.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída da alínea c) do n.º 1 do artigo 400º do CPP, quando interpretada no sentido de determinar a irrecorribilidade de Acórdão do Tribunal da Relação ao qual seja imputada uma nulidade por omissão de pronúncia e que não tenha conhecido sobre o mérito do objeto do processo.
E, em consequência:
b) Negar provimento ao presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 15 de julho de 2013. – Ana Guerra Martins –Pedro Machete – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro