Imprimir acórdão
Processo n.º 1051/06
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A Comissão Nacional de Eleições, por deliberação de 24-3-2006, aplicou à Rádio e
Televisão Portuguesa, SGPS, S.A. (RTP), uma coima única de onze mil euros pela
prática de três contra-ordenações ao artigo 49º, da Lei Orgânica nº 1/2001, de
14 de Agosto.
Desta decisão recorreu a RTP para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido
realizado julgamento e proferido acórdão em 6-7-2005 que concedeu parcial
provimento ao recurso, tendo reduzido a coima única em que a recorrente havia
sido condenada para seis mil euros.
A RTP interpôs recurso deste acórdão para o Pleno das Secções Criminais do
Supremo Tribunal de Justiça.
Foi proferida decisão pelo Conselheiro Relator de não admissão do recurso
apresentado, com os seguintes fundamentos:
“Refere o Acórdão impugnado a fls. 16 o seguinte:
«Sucede, porém, que como dispõe o art. 59° do RGCO, ao abrigo do qual foi
deduzida a mesma impugnação, a decisão da autoridade administrativa que aplica
uma coima é susceptível de impugnação judicial (n° I ), podendo 'o recurso de
impugnação' ser interposto pelo arguido ou seu defensor (nº 2). O 'recurso' é
feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima,
em 20 dias, devendo constar de 'alegações e conclusões' (n° 3).
O art. 61º do mesmo diploma, a propósito da determinação do tribunal
competente, volta a referir-se ao recurso, o que repete nos arts. 62º, 63º,
71º, 74º, 75º, traçando um quadro normativo idêntico ao dos recursos penais, com
previsão, inclusive, de proibição de reformatio in pejus, como é apanágio deste
recursos, com as especialidades impostas pela natureza da infracção, como é a
possibilidade de retirada de acusação e a conversão em processo criminal.
E a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, incluindo a de
uniformização, do Tribunal Constitucional e das Relações têm acentuado, a uma
voz, essa proximidade entre a impugnação judicial e o recurso penal, nos
sucessivos arestos tirados, incluindo os de fixação de jurisprudência.
Aliás, deve realçar-se que a LEOAL, ao cometer à CNE, no seu art. 203º, a
aplicação de coimas correspondentes a contra-ordenações praticadas por partidos
políticos, coligações ou grupos de cidadãos, por empresas de comunicação social,
de publicidade, de sondagens ou proprietárias de salas de espectáculos,
estabelece inequivocamente que cabe recurso para a secção criminal do Supremo
Tribunal de Justiça, não mencionando sequer impugnação judicial.
Sendo assim, não podem ser suscitadas no recurso judicial questões que não foram
oportunamente na resposta perante a autoridade administrativa».
Esta passagem do aresto recorrido permite demonstrar cabalmente que estamos
perante um recurso e não perante uma simples impugnação judicial.
Por outro lado, a invocada violação do nº 1, parte final, do art. 32° da CRP,
encontra, na sua génese, uma visão fundamentalista das garantias e estatuto do
arguido.
Efectivamente, a jurisprudência do STJ e do Tribunal Constitucional tem-se
pronunciado uniformemente no sentido de que o normativo do art. 32° da
Constituição não consagra expressamente o princípio do duplo grau de recurso,
como, aliás, acontece também com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e
com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
E sendo assim, como efectivamente é, tendo havido recurso para um Tribunal
Judicial, no caso, o Supremo Tribunal de Justiça, ainda por cima por virtude de
lei especial, está cumprida a regra constitucional do nº 1, parte final, do art.
32° da CRP.
Assim sendo, a tentativa de encontrar arrimo no RCGO cai logo por base, estando,
como se está perante um regime especial em que, face à categoria do Presidente
da CNE (Juiz Conselheiro) o recurso é logo para o mais alto Tribunal”.
Desta decisão reclamou a RTP para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a
qual, após ter sido convertida em reclamação para a conferência, foi objecto de
acórdão, que igualmente não admitiu o recurso interposto, com os seguintes
fundamentos:
“Para além de tudo quanto consta do despacho do Relator, de fls. 574 a 578, e
que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, importa referir
que, de acordo com o art. 73º do RGCC, nem todas as decisões proferidas em 1ª
instância em matéria contra-ordenacional admitem recurso para a Relação,
dependendo essa admissibilidade da verificação de determinados pressupostos,
relacionados, designadamente, com o montante da coima aplicada ou a existência
de sanção acessória, assim se operando uma filtragem, através de um sistema
semelhante ao das alçadas no processo civil.
Ora, não podendo este sistema de filtragem ser adaptado às regras de
funcionamento do STJ, que não tem «alçada», a admissibilidade de recurso para o
Pleno teria de abranger toda e qualquer decisão das secções, independentemente
dos valores envolvidos ou da natureza das sanções aplicadas.
E não cabe aqui aplicar subsidiariamente as atinentes regras processuais penais,
designadamente o art. 11º, nº 2, do CPP, por estas estarem expressamente
previstas para os recursos em matéria criminal”.
Deste acórdão de 2-11-2006 interpôs a RTP recurso para o Tribunal
Constitucional, com fundamento na alínea b), do nº 1, do artº 70º, da LTC,
através de requerimento donde constava o seguinte:
“- Na motivação do recurso interposto do Acórdão de 6 de Julho para o Pleno das
Secções criminais, alegou a ora Recorrente, em suma, que a interpretação segundo
a qual do douto Acórdão recorrido não cabe recurso traduziria uma interpretação
inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e da
proporcionalidade (arts. 13° e 18° da Constituição), por violação das garantias
de audiência e de defesa (art. 32°, que, no seu nº 1, inclui expressamente o
recurso) e por violação do direito ao acesso ao Direito e à tutela jurisdicional
efectiva (arts. 20° e 268°, 4, da Constituição).
- O aliás douto Acórdão recorrido decidiu, porém, não ser admissível o recurso.
- Essa decisão fundou-se nos arts. 203º, nº 1, da Lei Eleitoral dos órgãos das
Autarquias aprovada pelo art. 1°, n° 1, da lei Orgânica n° 1/2001, de 14 de
Agosto, e 73º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei n° 433/82, de 27 de Outubro
(Regime Geral das Contra-Ordenações), interpretados no sentido de que:
“É irrecorrível (mesmo nos casos previstos no artigo 73° do Decreto-Lei n°
433/82, de 27 de Outubro) a decisão de uma Secção do Supremo Tribunal de Justiça
que, em primeira instância, conhece da impugnação da decisão administrativa de
condenação por contra-ordenação”.
- Tal norma é inconstitucional, desde logo, por violação do direito ao recurso e
à tutela jurisdicional efectiva (arts. 32°, n° 1 e n° 10, 20° e 268°, n° 4, da
Constituição), em conjugação com os princípios da igualdade e da
proporcionalidade (arts. 13° e 18° da Constituição) e por violação do direito ao
acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efectiva (arts. 20° e 268°, 4, da
Constituição)”.
Admitido o recurso, a recorrente apresentou alegações, com as seguintes
conclusões:
“ I. Nos termos do artigo 203º, nº 1, da LEOAL, das decisões da CNE que
apliquem coimas, entre outras entidades, às empresas de comunicação social,
cabe «recurso para a secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça»;
II. Nos termos do art. 73º, nº 1, al. a), do RGCO – cuja aplicabilidade não pode
negar-se –, pode recorrer-se da sentença ou despacho proferidos nos termos do
artigo 64º quando «for aplicada uma coima superior a € 249,40» (tendo, in casu,
sido aplicada uma coima de € 6000);
III. E nos termos do art. 35º, nº 1, al. b), da LOFTJ, para esse recurso é
competente o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, pois
cabe a esse órgão «julgar os recursos de decisões proferidas em primeira
instância pelas secções»;
IV. É inconstitucional a interpretação dessas normas, segundo a qual «é
irrecorrível (mesmo nos casos previstos no artigo 73º do Decreto-Lei nº 433/82,
de 27 de Outubro) a decisão de uma Secção do Supremo Tribunal de Justiça que, em
primeira instância, conhece da impugnação da decisão administrativa de
condenação por contra-ordenação».
V. E isto uma vez que ela:
a) Viola o direito ao recurso ou duplo grau de jurisdição que a Constituição
garante no processo de contra-ordenações (art. 32º, que, no seu n.º 1, inclui
expressamente o recurso) e através dele as garantias de audiência e de defesa e
o direito ao acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efectiva (arts. 20º e
268º, 4, da Constituição).
b) Para além disso – o que seria relevante ainda que não existisse a apontada
inconstitucionalidade – introduz uma restrição ou excepção ao direito ao recurso
previsto no art. 73º do RGCO, criando uma diferenciação de regime:
i. Que não tem fundamento material – visto que os problemas da competência para
a impugnação e recorribilidade da decisão nela proferida são dois problemas
diversos;
ii. Que não tem paralelo em outros casos previstos na lei de competência de
tribunais superiores para o conhecimento em primeira instância;
iii. Que os argumentos apontados pelo Tribunal recorrido não logram basear, pois
que:
1. A impugnação judicial em matéria de contra-ordenações não é e não pode ser
equiparada a um recurso jurisdicional de uma decisão jurisdicional, sendo a sua
decisão final a primeira decisão judicial sobre a questão;
2. É irrelevante para o efeito o facto de o Presidente da CNE – e não a CNE –
ser um Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça;
3. O facto de o Supremo Tribunal de Justiça não ter alçada não justifica que se
não possa aplicar o regime geralmente estabelecido no art. 73º do RGCO sobre a
admissibilidade de recurso.
c) Pelo que se mostra violadora dos princípios constitucionais da igualdade e da
proporcionalidade (arts. 13º e 18º da Constituição).
VI. Deve, por isso, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de
Justiça julgar o recurso que para o mesmo subiu.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas., Venerandos Conselheiros,
doutamente suprirão, vem a Recorrente requerer que seja declarada a
inconstitucionalidade da interpretação assumida pelo Acórdão recorrido, segundo
a qual «é irrecorrível (mesmo nos casos previstos no artigo 73º do Decreto-Lei
nº 433/82, de 27 de Outubro) a decisão de uma Secção do Supremo Tribunal de
Justiça que, em primeira instância, conhece da impugnação da decisão
administrativa de condenação por contra-ordenação», por violação, nomeadamente,
dos princípios da igualdade e da proporcionalidade (arts. 13º e 18º da
Constituição), das garantias de audiência e de defesa (art. 32º, que, no seu n.º
1, inclui expressamente o recurso) e do direito ao acesso ao Direito e à tutela
jurisdicional efectiva (arts. 20º e 268º, 4, da Constituição). Em consequência
do requerido juízo de inconstitucionalidade, deverá o Pleno das Secções
Criminais do Supremo Tribunal de Justiça julgar o recurso que para o mesmo
subiu”.
O Ministério Público apresentou contra-alegações, onde concluiu o seguinte:
“Não pode considerar-se abrangido pelos direitos de audiência e defesa em
processo contraordenacional, o acesso ao Plenário do Supremo Tribunal de
Justiça, com vista a fazer sindicar a decisão, proferida pela competente secção,
que, na sequência de improcedência, total ou parcial, da impugnação deduzida da
decisão sancionatória com coima, manteve a condenação do arguido em coima.
Não viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade a interpretação
normativa que considera não aplicáveis, no confronto de uma decisão proferida
pelo Supremo, os critérios que regulam a recorribilidade, em processo
contraordenacional, do decidido pelo tribunal de 1ª instância para a Relação.
Na verdade, a circunstância de a lei cometer directamente a um Supremo Tribunal
a apreciação e julgamento de um recurso em matéria contraordenacional,
constituindo obviamente um factor de acrescida garantia para as partes, não pode
deixar de ter reflexos no âmbito do direito ao recurso, impedindo um total
paralelismo com a situação processual que se verificaria se a decisão estivesse
cometida às instâncias.
Termos em que deverá improceder o presente do recurso”.
*
Fundamentação
O objecto deste recurso é o de saber se a interpretação do disposto nos artº
203º, nº 1, da LEOAL, e 73º do RGCOC, no sentido de que não admitem recurso as
decisões da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça que conheça da
impugnação judicial de coima aplicada pela Comissão Nacional de Eleições, no
âmbito das eleições dos titulares dos órgãos das autarquias locais, viola os
princípios da igualdade e da proporcionalidade previstos nos artº 13º e 18º, da
C.R.P., e os direitos de audiência, defesa e recurso, previstos no artº 32º, da
C.R.P., e ao acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efectiva, previstos nos
artº 20º e 268º, nº 4, da C.R.P..
O Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (RGCOC), constante do Decreto-Lei
nº 433/82, de 27 de Outubro, prevê que a decisão de autoridade administrativa
que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial (artº 59º, nº 1),
podendo recorrer-se para o Tribunal da Relação das decisões judiciais que
apreciem aquela impugnação nos casos previstos nos nº 1 e 2, do artº 73º, do
RGCOC.
Com este regime fica assegurado o direito à apreciação jurisdicional das
decisões sancionatórias administrativas que apliquem coimas pela prática de
contra-ordenações, e, nalguns casos, admite-se a existência de um duplo grau de
jurisdição na reapreciação dessas decisões.
Mas no regime legal da eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais,
dispõe especificamente o artº 203º, nº 1, da Lei Orgânica nº 1/2001, de 14 de
Agosto, que compete à Comissão Nacional de Eleições, com recurso para a secção
criminal do Supremo Tribunal de Justiça, aplicar as coimas correspondentes a
contra-ordenações praticadas por partidos políticos, coligações ou grupos de
cidadãos, por empresas de comunicação social, de publicidade, de sondagens ou
proprietárias de salas de espectáculos, no âmbito das referidas eleições.
Estabeleceu-se aqui um regime especial para a impugnação da aplicação de coimas
pela Comissão Nacional de Eleições, por contra-ordenações cometidas no âmbito da
eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais, prevendo-se que a
impugnação judicial destas decisões administrativas deva ser feita, per saltum,
para o Supremo Tribunal de Justiça.
Note-se, contudo, que a utilização do termo “recurso” para o Supremo Tribunal de
Justiça da decisão da Comissão Nacional de Eleições que aplicar uma coima, não
confere a esta uma natureza jurisdicional, uma vez que a mesma, atenta a
natureza do órgão que a profere, é puro direito sancionatório administrativo,
constituindo a utilização do referido termo uma mera imprecisão técnica, donde
não podem ser extraídas quaisquer consequências.
Será que a interpretação destes preceitos, no sentido de não admitir o recurso
desta superior, mas primeira apreciação judicial, não se contemplando a
existência de um duplo grau de jurisdição, viola alguma directriz constitucional
?
Adiantamos já que a nossa resposta a esta questão é negativa, pelas razões que
se passam a explicitar.
Conforme referiu EDUARDO CORREIA, em “Direito penal e de mera ordenação-social,
no B.F.D.U.C., nº XLIX(1973), pág. 268, “a contra-ordenação é um aliud que se
diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as
reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano
ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do
direito criminal”. Na contra-ordenação o substracto da valoração jurídica não é
constituído apenas pela conduta axiológico-socialmente neutra, sendo a proibição
legal da mesma que lhe confere a qualificação de ilícita. Daí que a natureza
puramente patrimonial da sanção que lhe é aplicável (a coima) se diferencia
claramente, na sua essência e finalidades, das penas criminais, inclusive da
multa.
Esta variação do grau de vinculação aos princípios do direito criminal, e a
autonomia do tipo de sanção previsto para as contra-ordenações, repercute-se a
nível adjectivo, não se justificando que sejam aplicáveis ao processo
contra-ordenacional duma forma global e cega todos os princípios que orientam o
direito processual penal.
A introdução do nº 10 no artº 32º, da C.R.P., efectuada pela revisão
constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada,
pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios, ao visar assegurar
os direitos de defesa e de audiência do arguido nos processos sancionatórios não
penais, os quais, na versão originária da Constituição, apenas estavam
expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da
função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao actual artigo 269.º, n.º
3), denunciou o pensamento constitucional que os direitos consagrados para o
processo penal não tinham uma aplicação directa aos demais processos
sancionatórios, nomeadamente ao processo de contra-ordenação.
Assim, o direito ao recurso actualmente consagrado no nº 1, do artº 32º, da
C.R.P. (introduzido pela revisão de 1997), enquanto meio de defesa contra a
prolação de decisões jurisidicionais injustas, assegurando-se ao arguido a
possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, não tem
aplicação directa ao processo de contra-ordenação.
Conforme se sustentou no Acórdão nº 659/06, deste Tribunal, cuja fundamentação
acompanhamos de perto, nos direitos constitucionais à audiência e à defesa,
especialmente previstos para o processo de contra-ordenação e outros processos
sancionatórios, no nº 10, do artº 32º, da C.R.P., não se pode incluir o direito
a um duplo grau de apreciação jurisdicional. Esta norma exige apenas que o
arguido nesses processos não-penais seja previamente ouvido e possa defender-se
das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a
realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e
alegando as suas razões.
A não inclusão do direito ao recurso no âmbito mais vasto do direito de defesa
constante do nº 10, do artº 32º, da C.R.P., ressalta da diferença de redacção
dos nº 1 e 10, deste artigo, sendo que ambas foram alteradas pela revisão de
1997, e dos trabalhos preparatórios desta revisão, em que a proposta no sentido
de assegurar ao arguido “nos processos disciplinares e demais processos
sancionatórios…todas as garantias do processo criminal”, constante do artº 32º
- B, do Projecto de Revisão Constitucional, nº 4/VII, do PCP, foi rejeitada
(leia-se o debate sobre esta matéria no D.A.R., II Série – RC, nº 20, de 12 de
Setembro, de 1996, pág. 541-544, e I Série, nº 95, de 17 de Julho de 1997, pág.
3412 a 3466).
O direito ao acesso aos tribunais consagrado no artº 20º, nº 1, da C.R.P., e o
direito dos administrados à tutela jurisdicional, nomeadamente para a
impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, consagrado no artº
268º, nº 4, da C.R.P., apenas exigem que se possibilite a impugnação judicial da
aplicação de sanções pela prática de contra-ordenações pelas autoridades
administrativas e não uma dupla apreciação jurisdicional dessa impugnação.
Neste caso, essa possibilidade encontra-se perfeitamente assegurada no artº
203º, nº 1, da LEOAL, pela admissão de “recurso”, da aplicação de coimas, pela
Comissão Nacional de Eleições, para a secção criminal do Supremo Tribunal de
Justiça.
O direito a uma segunda apreciação jurisidicional apenas se encontra
constitucionalmente exigido em processo penal, não sendo esta exigência
extensível aos demais processos sancionatórios, inscrevendo‑se assim no âmbito
da liberdade de conformação legislativa própria do legislador a estatuição das
situações em que se justifique a possibilidade duma dupla apreciação da
impugnação judicial, desde que efectuada de forma não arbitrária e proporcional.
O princípio constitucional da igualdade dos cidadãos, consagrado no artº 13º, nº
1, da C.R.P., no seu sentido positivo, exige um tratamento semelhante para
situações semelhantes.
Defende a recorrente que, admitindo o artº 73º, nº 1, a), do RGCOC, como regra
geral, um duplo grau de jurisdição para a aplicação de coimas superiores a
249,40 €., ofende tal princípio que, na hipótese das coimas superiores a este
montante serem aplicadas pela Comissão Nacional de Eleições, não exista a
possibilidade duma segunda apreciação jurisdicional.
Não tem razão, uma vez que as previsões legislativas apontadas não têm
semelhança. Enquanto na regra geral estabelecida no artº 73º, nº 1, a), do
RGCOC, a impugnação judicial da decisão administrativa é feita para o tribunal
de comarca, na impugnação das coimas aplicadas pela Comissão Nacional de
Eleições a impugnação destas é feita directamente para o Supremo Tribunal de
Justiça, isto é para o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais, sem
prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional (artº 210º, nº 1, da
C.R.P.).
Esta significativa diferença da posição hierárquica dos tribunais que apreciam,
em primeira instância, a impugnação judicial das coimas referidas no artº 73º,
nº 1, a), do RGCOC, e no artº 203º, nº 1, da LEOAL, justifica que, de modo
diferente do tribunal de comarca, o Supremo Tribunal de Justiça, julgando como
primeira instância judicial, seja também a última.
E esta diferenciação de soluções, com fundamento na diferença de situações, não
ofende o princípio da proporcionalidade, no sentido de que o tratamento das
situações desiguais deve ser efectuado de forma adequada à desigualdade
existente.
Na verdade, visando a segunda apreciação jurisdicional um controle da decisão
judicial que apreciou a impugnação da decisão administrativa sancionatória, de
modo a obter-se uma melhor justiça, esse controle é feito por um tribunal
superior, tecnicamente mais qualificado.
Nos casos regra, previstos no artº 73º, do RGCOC, esse controle é efectuado
pelos tribunais colocados imediatamente acima dos tribunais de comarca – os
tribunais da Relação – não estando prevista a intervenção do Supremo Tribunal de
Justiça.
Ora, quando a primeira decisão é da autoria deste tribunal, colocado no topo da
hierarquia dos tribunais judiciais, é adequado que se diferencie esta situação
dos casos-regra, abolindo o controle desta decisão, uma vez que já se obteve a
intervenção de um tribunal superiormente qualificado.
Não se mostrando violados os princípios da igualdade e da proporcionalidade,
assim como os direitos de audiência, defesa e recurso previstos no artº 32º, da
C.R.P., e ao acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efectiva, previstos nos
artº 20º e 268º, nº 4, da C.R.P., pela aplicação do disposto nos artº 203º, nº
1, da LEOAL, e 73º do RGCOC, na interpretação de que não admitem recurso as
decisões da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça que conheçam da
impugnação judicial de coima aplicada pela Comissão Nacional de Eleições, no
âmbito das eleições dos titulares dos órgãos das autarquias locais, deve ser
negado provimento ao recurso para este Tribunal.
*
Decisão
Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto pela
Rádio e Televisão Portuguesa, SGPS, S.A., do acórdão de 2-11-2006, do Supremo
Tribunal de Justiça.
*
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta
(artº 6º, nº 1, do D.L. nº 303/98).
*
Lisboa, 16 de Maio de 2007
João Cura Mariano
Rui Pereira
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos