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Processo n.º 142/13
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 4, do artigo 76.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do despacho, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, que indeferiu o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
2. A reclamação para a conferência assume o seguinte teor:
«(...)
No despacho sob recurso, pode ler-se que : “Tal falta de fundamento emerge do teor do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no âmbito destes autos e que decidiu já sobre a competência material do tribunal e sobre as implicações constitucionais inerentes, mas igualmente porque a norma cuja inconstitucionalidade foi invocada na contestação do réu e a que se reporta a sentença (que é respeitante à reserva legislativa para a criação da Ordem dos Enfermeiros e às funções desta) não corresponde às normas que o requerente ora diz terem sido aplicadas na sentença e aí desrespeitadas e cuja desconformidade à Constituição da República Portuguesa quer ver reconhecida.”
Desde logo, quiçá por lapso hermenêutico do Tribunal “a quo”, na sua contestação o Réu não invocou a inconstitucionalidade da norma respeitante “...à reserva legislativa para a criação da Ordem dos Enfermeiros e às funções desta..., outrossim “...as quotas exigidas pela Ordem dos Enfermeiros serem declaradas inconstitucionais por violação da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º (conjugado com o n.º 2 do artigo 103.º) da Constituição da República Portuguesa, porquanto são receitas coativas de direito público”.
Porquanto as quotas obrigatórias pagas à Ordem dos Enfermeiros têm natureza tributária.
Na verdade, somente alegou que a Lei 129/97, de 23 de dezembro, da Assembleia da República, autorizou o Governo a legislar nos termos da alínea b) e c), do n.º 1, do artº 165º da CR, e não nos termos da alínea i), do mesmo preceito constitucional.
Ora, no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, suscitou previamente da questão de constitucionalidade normativa:
i. da alínea i) do n.º 1 do art.º 165º, conjugado com o n.º 2 do art.º 103º da CRP, com a interpretação com que foi aplicada na sentença recorrida, no sentido de que “...não ocorre tal inconstitucionalidade, não se vislumbrando qualquer violação de preceitos constitucionais, bem das regras constitucionais estabelecidas no nosso texto fundamental sobre a reserva de competência legislativa”;
ii. do artigo 212.º, n.º 3, da CRP, com a interpretação em que considerou ser competente em razão da matéria, com uma mera declaração genérica de competência, sem os factos concretos subsumíveis ao disposto nos artigos 62º e 74º, n.º 2, do CPC, seja suficiente para conferir a competência do Tribunal;
III. do n.º 1 do artigo 202º da CRP, com a interpretação de que se está perante uma questão de conflito de interesses públicos e privados;
iv. do nº 1 do artigo 205º da CRP, com a falta de fundamentação na decisão relativa ao invocado erro na forma do processo sobre as prescrições invocadas, nomeadamente:
a) Prescrição das alegadas quotas (tributos) em dívida por via da prescrição da responsabilidade disciplinar (cfr. artigos 12 a 17 da contestação);
b) Prescrição do art.º 310º do Código Civil (cfr artigos 18 a 19 da contestação).
POR ISSO
Crê o R. que a doutrina dos grandes Mestres (Professores Gomes Canotilho, Jorge Miranda, Vital Moreira...), mercê dos muitos anos de estudo e criatividade, é aere perennius, e não se vê razões para dissentir comunis opinio que a tal propósito se formou na doutrina.
ASSIM SENDO
No conceito de “Tributo” cabem todas as prestações patrimoniais sem natureza sancionatória, estabelecidas unilateralmente pelo Estado ou outras entidades públicas a seu favor, tendo em vista a realização de fins públicos.
NESSE SENTIDO
VITAL MOREIRA (Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra Editora, 1997, página 466), escreve: “A orientação prevalecente é a de as considerar como tributos fiscais” e “...podem as quotas serem fixadas pela própria corporação, porém, carecem de criação legal; o seu regime é o das obrigações fiscais”.
Por seu turno, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol I., Ed 2007, pág 1095 e 1096) consideram que as quotas para as Ordens Profissionais estão sujeitas à reserva parlamentar quanto ao seu regime geral.
Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo II, 2006, pág. 218), consideram que é inaceitável que continuem a serem cobradas taxas que não foram criadas de acordo com um regime quadro, pelo que é legítima a recusa do seu pagamento, pelo menos daquelas que foram criadas ou alteradas após a revisão constitucional de 1997.
MUTATIS MUTANDIS
A quota obrigatória constitui receita da Ordem dos Enfermeiros, e esta é uma Associação de direito público que presta um serviço público.
As quotas obrigatórias pagas à Ordem dos Enfermeiros têm, pois, natureza tributária.
A CRP atual (republicada em anexo à Lei 1/2005, através da qual foi efetuada a sétima revisão constitucional) consagra um sistema fiscal que visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas, bem como atribui competência exclusiva à Assembleia da República de legislar em matéria de impostos e sistema fiscal, regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas (art.º 165º, nº 1, alínea i).
No presente caso, a quota obrigatória a pagar à Ordem dos Enfermeiros, foi fixada numa Assembleia Geral dos Enfermeiros.
É o mesmo que dizer num regulamento, editado, obviamente, a descoberto de qualquer autorização legislativa, que, a existir, sempre teria que ser executada mediante decreto-lei – cfr. artigo 201º, nº 1, alínea b), da Constituição.
Nem se diga que o Tribunal Constitucional apadrinhou a tese da não sujeição das quotas para as ordens profissionais ao princípio da legalidade a que só os impostos estavam sujeitos, mormente no Acórdão de 13 de julho de 1989, publicado na II Série do D.R de 1 de fevereiro de 1990.
Porquanto, sendo certo, na verdade foi antes da revisão de 1997.
(...)
Nesta revisão foi operada uma significativa ampliação dos poderes da Assembleia da República em matéria tributária, pois até então, as taxas e demais contribuições haviam ficado excluídas da reserva da Assembleia.
Visou-se fundamentalmente evitar a proliferação de tributos que escapassem ao controlo parlamentar.
A Lei Geral Tributária que regula as relações jurídico-tributárias estabelecidas entre a Administração Pública e os contribuintes, também veio a prever que o Regime Geral das taxas e das contribuições financeiras a favor de entidades públicas conste de Lei especial (art.º 3º, nº 3, da LGT).
Nos termos desta Lei, os Tributos classificam-se em fiscais e parafiscais e abrangem quer os impostos, quer outras espécies tributárias criadas por Lei, assim entendidas as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas (vide nºs. 1 e 2 do citado art.º 3.º).
A verdade é que a Assembleia da República não delegou no Governo a fixação do montante das quotas para a Ordem dos Enfermeiros.
DE JURE
O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1, do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
(...)
Em conclusão:
I. As quotas obrigatórias pagas à Ordem dos Enfermeiros têm natureza tributária;
II. A quota obrigatória a pagar à Ordem dos Enfermeiros, foi fixada numa Assembleia Geral de Enfermeiros a descoberto de qualquer autorização legislativa, que, a existir, sempre teria que ser executada mediante decreto-lei – cfr. artigo 201º, nº 1, alínea b), da Constituição;
III. É competência exclusiva da Assembleia da República legislar em matéria de impostos e sistema fiscal, regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas (art.º 165º, nº 1, alínea i);
IV. A Lei 129/97, de 23 de dezembro, da Assembleia da República, autorizou o Governo a legislar nos termos da alínea b) e c), do n.º 1, do art.º 165º da CRP, e não nos termos da alínea i), do mesmo preceito Constitucional;
V. Assembleia da República não delegou no Governo a fixação do montante das quotas para a Ordem dos Enfermeiros;
VI. A jurisprudência do Tribunal Constitucional possibilita a prolação de uma decisão sumária de mérito do recurso pelo próprio Tribunal Constitucional;
VII. No entanto, não permite que o tribunal recorrido rejeite o recurso com o argumento de que este é “...manifestamente infundado”.
(...)»
3. A Ordem dos Enfermeiros intentou ação declarativa contra o (ora) reclamante, pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia inerente a quotas devidas desde janeiro de 2000 a fevereiro de 2011, acrescida de juros de mora. O recorrente contestou, invocando, entre outros fundamentos, a incompetência absoluta do tribunal em que a ação fora intentada, pelo facto de o julgamento da causa pertencer aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal. O 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo concluiu ser competente em razão da matéria, circunstância que motivou o recurso de apelação interposto pelo recorrente para o Tribunal da Relação do Porto. As conclusões do requerimento de recurso são as seguintes:
«(...)
I. O despacho padece de nulidade porque o Tribunal “a quo” decidiu que é materialmente competente, sem especificar os fundamentos de facto e de direito que justificaram essa decisão nem se pronunciou sobre o invocado e alegado erro na forma de processo;
II. A causa de pedir da ação baseou-se no pagamento de contribuições financeiras a favor da associação de direito público denominada Ordem dos Enfermeiros: ou seja pagamento de quotas obrigatórias, nos termos do art. 76º nº 1 al. m) dos seus Estatutos, aprovados e publicados em anexo ao DL 104/98 de 21.04;
III. Para efeitos de submissão dos diversos tipos de tributo ao princípio da reserva de lei formal a redação dada ao art. 165º nº 1 al. i) da CRP, pela Lei Constitucional nº 1/97, autonomizou a categoria das “contribuições financeiras”, a par dos impostos e das taxas;
IV. As quotas obrigatórias a pagar à Ordem dos Enfermeiros são “contribuições financeiras a favor das entidades públicas” e foram fixadas numa Assembleia-geral de Enfermeiros;
V. Assim, as quotas foram fixadas num regulamento editado a descoberto de qualquer autorização legislativa, que, a existir, sempre teria que ser executada mediante decreto-lei – cfr. art. 201º, nº 1 al. b) da Constituição;
VI. A obrigação de pagar quotas à Ordem dos Enfermeiros não foi negocialmente assumida pelo R., nem este aceitou livremente a sua cobrança;
VII. O litígio, aqui sob recurso, emerge de relações jurídicas administrativas e fiscais, porquanto as quotas foram fixadas pela Assembleia-geral da Ordem dos Enfermeiros;
VIII. Ora, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 10º dos Estatutos da Ordem dos Enfermeiros, aprovados e publicados em anexo ao DL 104/98 de 21.04, a Assembleia Geral é um órgão nacional, cabendo recurso contencioso dos seus atos, para os Tribunais Administrativos, por força do disposto no art. 101º desse mesmo diploma legal;
IX. Pelo que, em razão da matéria, a competência é dos Tribunais Administrativos e Fiscais, por força do disposto no art. 1º, nº 1 do ETAF (aprovado pela Lei nº 13/2002 de 19.01 e alterado pela Lei nº 4-A/2003 de 19.02) e conexo o art. 212º nº 3 da CRP;
X. Aliás, em conformidade com decisões proferidas pelo Tribunal da Relação do Porto, em múltiplos acórdãos.
(...)»
Em acórdão com data de 12 de junho de 2012, este Tribunal decidiu julgar improcedente a exceção dilatória invocada, concluindo que o tribunal comum recorrido seria materialmente competente. Inconformado, o recorrente interpôs o recurso de constitucionalidade de fls. 154, não admitido pelo Tribunal da Relação do Porto em despacho com o seguinte teor (fls. 163):
«(...)
Embora formal e legalmente admissível e tempestivo, não admito o recurso apresentado, nos termos do art.º 76.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, por manifestamente infundado.
Tal falta de fundamento emerge do teor do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no âmbito destes autos e que decidiu já sobre a competência material do tribunal e sobre as implicações constitucionais inerentes, mas igualmente porque a norma cuja inconstitucionalidade foi invocada na contestação do réu e a que se reporta a sentença (que é respeitante à reserva legislativa para a criação da Ordem dos Enfermeiros e às funções desta) não corresponde às normas que o requerente ora diz terem sido aplicadas na sentença e aí desrespeitadas e cuja desconformidade à Constituição da República Portuguesa quer ver reconhecida. Além disto, certamente por lapso, refere pretender ver reconhecida da inconstitucionalidade de normas da própria CRP (v. alíneas i. a iii. do requerimento em apreço), quando o objetivo do recurso será certamente apurar da inconstitucionalidade da aplicação de normas legais precisamente à luz dos preceitos constitucionais a que se reporta.
(...)»
Seguiu-se, finalmente, a reclamação cujos fundamentos agora se apreciam.
4. Notificado para o efeito, o Ministério Público respondeu à reclamação apresentada, pugnando pelo seu indeferimento.
II. Fundamentação
5. Sendo o recurso de constitucionalidade não admitido interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se verifica que se achem preenchidos uma série de pressupostos processuais – a saber, o esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão, aliado à arguição tempestiva e adequada de uma questão de constitucionalidade incidente sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi da decisão recorrida. Ora, do despacho de não admissão do recurso (fls. 163) decorre que a norma cuja constitucionalidade o reclamante contestou nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto não coincide com as normas que o requerente sustenta terem sido aplicadas na decisão recorrida e aí desrespeitadas e cuja desconformidade à Constituição da República Portuguesa quer ver reconhecida.
Certo é, com efeito, que o reclamante levanta no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional questões de constitucionalidade não arguidas nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto. São elas:
«(...)
i. A inconstitucionalidade da norma da alínea i) do nº 1 do art.º 165º, conjugado com o n.º 2 do art.º 103º da CRP, com a interpretação com que foi aplicada na sentença recorrida, no sentido de que “... não ocorre tal inconstitucionalidade, não se vislumbrando qualquer violação de preceitos constitucionais, nem das regras constitucionais estabelecidas no nosso texto fundamental sobre a reserva de competência legislativa”;
ii. A inconstitucionalidade da norma do artigo 212.º, n.º 3, da CRP, com a interpretação em que se considerou ser competente em razão da matéria, com uma mera declaração genérica de competência, sem os factos concretos subsumíveis ao disposto nos artigos 62.º e 74º, nº 2, do CPC, seja suficiente para conferir a competência do Tribunal;
iii. A inconstitucionalidade do nº 2 do artigo 202º da CRP, com a interpretação de que se está perante uma questão de conflito de interesses públicos e privados;
iv. A violação do nº 1 do artigo 205º da CRP, com falta de fundamentação na decisão relativa ao invocado erro na forma do processo sobre as prescrições invocadas.
(...)»
Tal levantamento – sem cuidar agora de saber se em causa estão verdadeiras questões de constitucionalidade normativa – deve ter-se por intempestivo, circunstância que obsta ao conhecimento do objeto do recurso. É sobejamente conhecido o entendimento que o Tribunal Constitucional vem perfilhando a propósito do requisito de suscitação tempestiva da questão de constitucionalidade: atento o facto de, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, o Tribunal atuar como instância de recurso, percebe-se que suscitar tempestivamente uma questão de constitucionalidade seja fazê-lo durante o processo, isto é, num momento em que a questão de constitucionalidade ainda possa ser conhecida, em termos de sobre ela o tribunal a quo se vir a pronunciar (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 352/94, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/). Daqui deflui, por conseguinte, que, regra geral, a suscitação de uma questão de constitucionalidade no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional – como a que ocorre in casu – não é admissível.
Nem se argumente, por outro lado, que este juízo não vale para a questão levantada no ponto i) do requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, por haver coincidência entre este e o conteúdo das alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto. Isto porque a questão apresentada naquele ponto não se configura como uma questão de constitucionalidade normativa, de que o Tribunal Constitucional possa e deva conhecer, pois é patente que o reclamante não logra autonomizar o preceito de direito infraconstitucional – ou uma qualquer interpretação normativa dele extraída – cuja conformidade com o parâmetro normativo-constitucional pretende impugnar.
Assim sendo, somos levados a concluir pelo acerto do despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade interposto pelo reclamante, dado não estarem verificados os pressupostos processuais de que depende a respetiva admissibilidade.
III. Decisão
6. Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada, e, por conseguinte, confirmar o despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 20 de março de 2013.- José Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.