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Processo nº 719/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A C... impugnou judicialmente, nos termos do nº 2 do artigo 111º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas
(CIRC), aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 442-B/88, de 30 de Novembro, e do nº 1 do artigo 151º e dos artigos 120º e seguintes do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril, a autoliquidação do IRC e derrama relativos ao ano fiscal de 1994, com o fundamento, em síntese, de não ter sido deduzida, na determinação do lucro tributável respectivo, a derrama incidente sobre esse imposto, como custo fiscal.
A impugnação deu entrada no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa a 26 de Setembro de 1997 e foi objecto de sentença do 4º Juízo (1ª Secção) aos 6 de Abril de 2000, que decidiu no sentido da sua improcedência.
Considerou-se, nessa peça processual, que, face ao disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 41º do CIRC, na redacção dada pelo nº 1 do artigo 28º da Lei nº 10-B/96, de 23 de Março, a derrama, enquanto imposto acessório do imposto principal IRC, configurando ela própria um verdadeiro imposto sobre os lucros, não é de se tomar como custo fiscal dedutível na matéria colectável, até porque essa nova redacção reveste-se de natureza interpretativa, como do nº 7 daquele artigo 28º resulta, sendo, assim, observável quanto às situações anteriores à sua entrada em vigor e, por isso, ao exercício de 1994, em causa nos presentes autos.
Recorreu a C... para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo e logo suscitou questões de inconstitucionalidade. Mais propriamente, a da norma da alínea a) do nº 1 do artigo 41º do CIRC – seja porque, interpretada no sentido de que a derrama não é custo fiscalmente dedutível, atento o disposto no artigo 23º do mesmo Código, viola, nessa medida, o princípio da legalidade tributária, que o nº 2 do artigo
103º da Constituição da República (CR) consagra, seja porque, ao conceder-se natureza meramente interpretativa à alteração introduzida pelo nº 1 do artigo
28º da Lei nº 10-B/96, de acordo com o nº 7 do mesmo artigo 28º, como tal aplicando-se retroactivamente, não obstante o seu alegado carácter verdadeiramente inovador, se está a ofender o dito princípio de legalidade tributária.
O Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, em acórdão de 4 de Outubro de 2000.
Aí se afirmou, nomeadamente:
'A questão que se suscita neste recurso é a de saber se, no regime legal vigente anteriormente à publicação da Lei nº 10-B/96, de 23 de Março, a derrama podia ser considerada como um custo fiscal na formação da matéria tributável do IRC e, consequentemente, saber se, nessa qualidade, a mesma podia ser dedutível a essa matéria.'
Entendeu-se no aresto que, à data dos factos, não eram dedutíveis para efeito de determinação do lucro tributável, mesmo quando contabilizado como custo ou perda de exercício, o IRC, com inclusão das importâncias pagas por retenção na fonte ou por conta.
Sendo controverso se, ao tempo em que se processou a determinação da matéria colectável, a derrama integrava a regra da dedutibilidade de todos os encargos fiscais como custos para efeitos de apuramento do lucro tributável em IRC ou se, pelo contrário, estaria sujeita à mesma disciplina do imposto principal, como imposto acessório que é, o aresto acabou por concluir no sentido daa natureza meramente interpretativa do preceito que veio dar nova redacção ao artigo 41º do CIRC, na alínea a) do seu nº1 (o nº
1 do artigo 28º da Lei nº 10-B/96), como tal aplicável a todos os casos em que a questão se coloque, mesmo que ocorridos anteriormente à sua entrada em vigor – leitura esta que afastou os problemas de constitucionalidade avançados pela recorrente.
2.1. - Inconformado com o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, particularmente no tocante às suscitadas questões de inconstitucionalidade, a C... recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, consistindo o objecto do seu recurso, consoante viria a ser mais cabalmente clarificado após convite para o efeito endereçado, a interpretação dada pela decisão recorrida à norma da alínea a) do nº 1 do artigo 41º do CIRC, na redacção que lhe foi dada pelo nº 1 do artigo 28º da Lei nº 10-B/96, de 23 de Março, com a natureza meramente interpretativa que o nº 7 do mesmo preceito lhe reconheceu.
Para a recorrente, implicando este entendimento a aplicação da norma questionada a factos anteriores à vigência da Lei nº 10-B/96, significa violação dos princípios da tipicidade e da legalidade fiscais, que o artigo 103º da Constituição da República consagra (correspondendo ao artigo
106º, na redacção anterior à IV Revisão Constitucional).
2.2. - Com efeito, na sua versão inicial, a norma do artigo 41º do CIRC, ao enunciar, no âmbito da determinação da matéria colectável, os vários encargos não dedutíveis para efeito do apuramento do lucro tributável, dispunha, logo na alínea a) do seu nº 1:
'O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), incluindo as importâncias pagas por retenção na fonte ou por conta.'
Esta redacção seria, no entanto, alterada por força do disposto no nº 1 do artigo 28º da Lei nº 10-B/96 e passou a ter o seguinte teor:
'O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) e quaisquer outros impostos que directa ou indirectamente incidam sobre os lucros.'
E acrescentou o nº 7 do mesmo artigo 28º:
'A redacção dada nos termos do nº 1 à alínea a) do nº 1 do artigo 41º do Código do IRC tem natureza interpretativa.'
2.3. - Surpreende-se, nesta iniciativa do legislador fiscal, o objectivo de pôr fim a subjacente controvérsia, o que veio a ser esclarecido no sentido de a derrama não poder ser considerada como custo fiscal, atribuindo-se natureza interpretativa ao regime jurídico anterior à norma da alínea a) do nº 1 do artigo 41º do CIRC, após a redacção introduzida em 1996.
Por outro lado, coloca-se neste ponto o problema da determinação do parâmetro constitucional a ter em conta, considerando a implicação de retroactividade fiscal que a solução comporta.
3. - O acórdão do Tribunal Constitucional nº 275/98, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Novembro de 1998, historiou a génese do problema em termos que interessa transcrever.
Escreveu-se no mesmo, a certo passo:
'Antes da Reforma Fiscal de 1988, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1989, o art. 5º, nº 1, da Lei das Finanças Locais (Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro) previa que os municípios podiam 'lançar derramas que não excedam 10% sobre as colectas liquidadas na respectiva área em contribuição predial rústica e urbana e em contribuição industrial' (sobre a situação do direito anterior vejam-se o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 69/84, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 345, págs. 72 e segs.; C. A. Carvalho Jordão, O problema da correcção legal, na liquidação das derramas municipais, in Scientia Ivridica, XXXVI, ano 1987, págs. 132-138; Soares Martinez, Direito Fiscal, 9ª ed., Coimbra, 1997, págs. 485 e segs.; A. L. Sousa Franco, Finanças do Sector Público. Introdução aos Subsectores Institucionais, Lisboa, 1990-1991, págs. 470 e segs., sobre a evolução dos regimes de finanças autárquicas). No domínio da versão originária da Lei de Finanças Locais de 1987, era entendido que a derrama era um imposto local autónomo, embora dependente, e não um imposto acessório, a ele ficando mesmo sujeitas as pessoas temporariamente isentas dos impostos principais (nºs. 3 e 4 do art. 5º dessa Lei). Tal solução fora, aliás, já consagrada pelo Decreto-Lei nº 98/84, de 29 de Março (cfr. acórdão nº 606/95 do Tribunal Constitucional, in Diário da República, II Série, nº 64, de 15 de Março de 1996). Com a eliminação do sistema de tributação directa antiga (impostos cedulares sobre o rendimento, com um imposto correctivo de sobreposição, o imposto complementar), por força de aprovação da Reforma de 1988, foi publicado um novo diploma, o Decreto-Lei nº 470-B/88, de 19 de Dezembro, que deu nova redacção ao art. 5º da Lei das Finanças Locais, passando a determinar-se que os municípios podem 'lançar uma derrama, que não pode exceder 10% sobre a colecta do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), relativa ao rendimento gerado na sua área geográfica' (veja-se a apreciação da constitucionalidade do art. 38º da Lei nº 106/88, de 17 de Setembro sobre a permissão de lançamento de derramas pelos munícipios constante do acórdão nº 57/95, ponto 13.2., in Diário da República, II Série, nº 87, de 12 de Abril de 1995). A eliminação dos nºs. 3 e 4 da redacção anterior do art. 5º da Lei das Finanças Locais pretendeu tornar a derrama um imposto acessório, voltando-se à opção legislativa da Lei das Finanças Locais de 1979. Nessa medida, a Administração Fiscal veio a entender que não podia o montante da derrama ser considerado como custo para efeitos da alínea f) do nº 1 do art. 23º do Código IRC ('encargos fiscais e parafiscais') - despacho de 13 de Fevereiro de 1990 (Processo nº
85/90), referido pelo ora recorrente no art. 5º da petição de impugnação, solução que veio a constar da Circular nº 14/95 da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos. A regra do acessorium principale sequitur impedia, pois, a consideração da derrama como custo fiscal, aplicando-se a norma do art.
41º, nº 1, alínea a), CIRC. O entendimento da Administração Fiscal começou por ser sufragado pela jurisprudência da 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, mas um acórdão de 1 de Fevereiro de 1995 desse Alto Tribunal afastou-se de tal entendimento, tendo decidido que a derrama devia ser considerada como custo fiscal, nos termos do art. 23º, nº 1, alínea f), do Código IRC. Nesse acórdão considerou-se que, sendo a regra geral a dedutibilidade de todos os encargos fiscais como custos, a norma da alínea a) do nº 1 do art. 41º do Código IRC seria excepcional e, por isso, insusceptível de aplicação analógica (cfr. Rogério Fernandes Ferreira, criticando a doutrina do acórdão de 1995, A Derrama é ou não um Custo Fiscal?, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 378, págs. 9-15). Nessa medida, não se podendo confundir os conceitos de IRC e de derrama, e não podendo ver-se a derrama como mero adicional do IRC, mas antes como um imposto local acessório deste, tinha que se concluir que a derrama não podia caber na norma excepcional da alínea a) do nº 1 do art. 41º do Código IRC.'
4. - No caso em apreço naquele acórdão nº 275/98, entendeu-se que o parâmetro constitucional para a abordagem da retroactividade fiscal era, então, o vigente à data da aplicação da norma, ou seja, o texto anterior à IV Revisão Constitucional, operada pela Lei Constitucional nº 1/97, de 25 de Setembro, uma vez que qualquer das decisões proferidas nos autos tinham sido prolatadas em data anterior à da entrada em vigor dessa lei constitucional (isto
é, antes de 5 de Outubro de 1997).
Ou seja, ponderou-se, então, que o texto constitucional relevante para a apreciação das questões de constitucionalidade, anterior à quarta revisão constitucional, não proibia a existência de leis fiscais retroactivas – e, assim, leis fiscais interpretativas, com aplicação para o passado –, ou, pelo menos, não a proibia, em princípio, daí resultando um juízo de não inconstitucionalidade quanto à norma do nº 7 do artigo 28º, conjugada com as demais impugnadas.
Semelhante entendimento, que tem como premissa que uma inconstitucionalidade superveniente não invalida a norma para o passado, que, assim, mantém a sua não inconstitucionalidade nesse segmento temporal (como é aceite na jurisprudência deste Tribunal: cfr. acórdão nº 408/89, in Diário da República, II Série, de 31 de Janeiro de 1990), e com as 'cautelas' que a sua observação irrestrita impõe (do que dá desenvolvidamente conta o citado acórdão nº 275/98), foi posteriormente sufragado em outros arestos com um suporte fáctico cronologicamente semelhante (assim, o acórdão nº 620/98, publicado no Diário citado, II Série, de 18 de Março de 1999, e, assim parece, o acórdão nº
540/98 e o acórdão nº 689/98, ambos inéditos).
5. - Outra foi a orientação seguida no acórdão nº 172/2000, publicado no jornal oficial citado, II Série, de 25 de Outubro de 2000, assente em diferente contexto de aplicação da lei constitucional no tempo.
No caso aí versado, a sentença da 1ª instância foi proferida anteriormente à data da entrada em vigor do texto da IV Revisão Constitucional, mas já o acórdão do Supremo lhe é posterior.
Afastou-se, nesse lugar, a orientação precedente, onde a proibição da retroactividade em matéria fiscal não tinha que ser abordada dada a sua irrelevância para os casos julgados, e observou-se:
'Sendo o texto decorrente da 4ª Revisão Constitucional o parâmetro pelo qual se há-de aferir a constitucionalidade da norma sub judicio, verificar-se-à, efectivamente, uma violação da proibição de retroactividade em matéria fiscal? Contra uma resposta afirmativa, poderia ser sustentado que a norma que agora se julga não é retroactiva por ser meramente interpretativa de lei anteriormente vigente, explicitando apenas o sentido daquela e integrando-se consequentemente no seu texto. Todavia, poderá opor-se a este argumento que, sendo a lei interpretativa vinculativa de uma determinada interpretação e excludente de outras possíveis e já realizadas pelos tribunais, ela se tornará o critério jurídico decisivo da consagração da interpretação propugnada pela lei interpretativa, implicando, necessariamente, uma aplicação retroactiva da lei
(sobre a questão da retroactividade das leis interpretativas, cf. Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 10ª ed., 1997, p. 562 e ss. e Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, 1989, p. 245 e ss.). Nos Acórdãos do Tribunal Constitucional anteriormente citados, foi aceita a natureza retroactiva do nº 7 do artigo 28º, nº 1, da Lei nº 10-B/96, de 23 de Março. O Tribunal não chegaria a discutir se a retroactividade da lei interpretativa está proibida pelo novo texto constitucional, por não ser esse texto o parâmetro de constitucionalidade no caso concreto.'
Na sequência desta argumentação, colocou-se o cerne da questão de constitucionalidade em 'saber se as leis interpretativas que vinculam retroactivamente o intérprete contendem com a retroactividade proibida na Constituição'.
E, a este respeito, ponderou-se:
'[...]os fundamentos de proibição da retroactividade respeitam à segurança dos cidadãos. Assim, tal segurança é afectada perante alterações legislativas que, no momento da prática ou ocorrência dos factos que os envolvem, nem poderiam ser previstas nem tinham que o ser. Mas tal segurança também é afectada onde o seja a vinculação do Estado pelo Direito que criou, através de alteração de situações já instituídas ou resolvidas anteriormente. Desta sorte, se é verdade que as leis autenticamente interpretativas, não abalam, verdadeiramente, as expectativas concretas anteriores dos destinatários das mesmas, no caso de a interpretação tornada vinculativa já ser conhecida e tiver sido mesmo aplicada (cf. sobre essa natureza das leis autenticamente interpretativas, Baptista Machado, ob.cit., p. 247), todavia, mesmo nesses casos, a vinculação interpretativa que tais leis comportam, ao tornar-se critério jurídico exclusivo da aplicação do texto anterior da lei, modifica a relação do Estado, emitente de normas, com os seus destinatários. A exclusão pela lei interpretativa de outras interpretações propugnadas e já aplicadas noutros casos (como acontece na situação presente) leva a que o Estado possa a posteriori impedir que o Direito que criou funcione através da sua lógica intrínseca comunicável aos destinatários das normas, permitindo que interfira na interpretação jurídica um poder imperativo e imediato que altera o quadro dos elementos relevantes da interpretação jurídica. Nesta medida, poder-se-à entender que a lei interpretativa, ainda que autêntica, ao pretender vigorar para o período anterior à sua emissão, nos termos do artigo
13º do Código Civil, altera o contexto de auto-vinculação dos órgãos de aplicação do Direito ao Direito e, consequentemente, afecta a segurança dos destinatários das normas protegida por uma proibição (constitucional) de retroactividade. Haverá, consequentemente, nesta última situação, uma garantia de segurança mais forte inerente à proibição de retroactividade. Ora, a proibição constitucional explícita de retroactividade em matéria fiscal não pode ser interpretada de modo que exclua o sentido forte anteriormente referido de protecção da segurança, ou seja restritivamente em termos semelhantes à jurisprudência anterior do Tribunal, como se não tivesse sido alterado o texto constitucional e apenas resultasse dos princípios gerais. Na expressa proibição de retroactividade não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objectividade e auto-vinculação do Estado pelo Direito.'
6.1. - Importa resolver o caso sub judice.
Este contém um substracto fáctico e cronológico que interessa reter:
a)- a impugnante apresentou, em 31 de Maio de 1995, na repartição de Finanças do 5º Bairro Fiscal de Lisboa, a declaração modelo 22 do IRC, respeitante aos rendimentos do exercício de 1994 (declaração que seria substituída por outra, em 26 de Fevereiro de 1996);
b)- na autoliquidação então efectuada, o valor da derrama – no montante de 1.720.118.632$00 – não foi considerada como custo para efeitos de determinação da matéria colectável;
c)- a impugnante reclamou graciosamente em 30 de Maio de
1997, por não se ter submetido a derrama à regra da dedutibilidade dos encargos fiscais como custos na determinação do lucro tributável em IRC, reclamação essa que foi indeferida em 29 de Maio de 1998, sendo a interessada notificada em 8 de Junho seguinte;
d)- a impugnação judicial data de 26 de Setembro de
1997.
6.2. - O tribunal recorrido, para alcançar o desiderato da improcedência, começou por caracterizar o IRC como um imposto estadual cujo sujeito activo da relação tributária é o Estado, 'que goza de inteira liberdade quer no que toca à sua criação quer no que respeita à sua aplicação', enquanto a derrama é um imposto municipal cujo sujeito activo é uma autarquia local, que só pode ser lançado para ocorrer ao financiamento de investimentos ou no quadro dos contratos de reequilíbrio financeiro (cfr. artigo 6º da Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro).
Ambos são, no entanto, tributos que incidem sobre o lucro.
No ano de 1994 podia ser aquele imposto municipal considerado como um custo no apuramento do lucro tributável do IRC desse ano?
Com efeito, para a determinação da matéria colectável, consideram-se, nos termos da alínea f) do nº 1 do artigo 23º do CIRC, como custos, 'os encargos fiscais e parafiscais' – o que pode levar a concluir que aí se incluirão as derramas, se interpretados esses encargos como todos os gastos com o pagamento de impostos.
No entanto – ponderou-se no acórdão recorrido – a interpretação dessa norma tem de ser harmonizada com o estabelecimento noutros preceitos e, entre estes, figura a aludida alínea a) do nº 1 do artigo 41º do CIRC.
Ora, porque se gerou controvérsia sobre esta concreta problemática – como reflectem os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de
23 de Setembro de 1992 e de 1 de Fevereiro de 1995, já aludido (cfr. Rogério Fernandes Ferreira, 'A derrama é ou não um custo fiscal?' in Ciência e Técnica Fiscal, nº 378, págs. 9 a 15) – a norma do nº 7 do artigo 28º da Lei nº 10-B/96, veio, segundo o acórdão recorrido, 'tornar certo e seguro que, a partir da entrada em vigor da identificada Lei Orçamental [aquela Lei nº 10-B/96], e, consequentemente, após a entrada em vigor da nova redacção do identificado preceito, a derrama nunca poderá ser considerada um custo fiscal para a determinação da matéria colectável do IRC, visto se tratar de imposto que incide sobre lucros e este tipo de imposto ter ficado expressamente excluído da possibilidade de serem havidos como custos na formação do lucro tributável do IRC'.
7. - Considera a recorrente, por um lado, que a inclusão da derrama no elenco dos encargos não dedutíveis subentende uma tarefa interpretativa a implicar aplicação analógica do preceito, o que, por si, viola o princípio da legalidade que o nº 2 do artigo 103º da CR (antigo nº 2 do artigo
106º) consagra.
A derrama constituía, anteriormente à redacção introduzida pela Lei nº 10-B/96, um encargo fiscal do sujeito passivo que, para o ano de 1993, o CIRC não excluía dos custos fiscalmente relevantes, sendo certo que uma outra interpretação violaria o convocado princípio da legalidade em matéria fiscal, cabendo insistir em observar que IRC e derrama são impostos distintos, não integrável esta última naquele, sem que possa dizer-se que a derrama se configura como imposto acessório, seguindo o destino do principal.
Por outro lado, se após a entrada em vigor da nova redacção, a derrama deixou de poder ser considerada um custo fiscal para a determinação da matéria colectável do IRC – visto se tratar de imposto sobre os lucros e este tipo de impostos ter ficado expressamente excluído da possibilidade de serem havidos como custos na formação do lucro tributável do IRC, como se nota no acórdão recorrido – o certo é que, podendo questionar-se se a nova redacção é passível de aplicação às situações nascidas antes da entrada em vigor do novo texto, para a recorrente (que, nomeadamente, se apoia no citado acórdão nº 172/2000), o novo regime só terá lugar quanto aos exercícios fiscais posteriores à sua entrada em vigor, outro entendimento violando os princípios da tipicidade e da legalidade tributárias, na sua projecção retroactiva.
Importa apreciar a matriz constitucional de toda esta problemática.
8.1. - O problema subjacente suscita, na verdade, a questão da legitimidade constitucional da norma do nº 7 do artigo 28º da Lei nº 10-B/96, quando se qualifica como interpretativa a nova redacção dada pelo nº 1 do mesmo preceito à alínea a) do nº 1 do artigo 41º, que lhe confere eficácia retroactiva, e, por sua vez, configura-se como um problema de aplicação da lei constitucional no tempo.
Vem-se entendendo que são de natureza interpretativa as leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas se mostram incertas ou de sentido controverso, vêm consagrar uma solução que poderia ter sido adoptada, sem que o julgador ou o intérprete se forçassem a ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação das leis (assim, v.g., J. Baptista Machado, ob. cit.,págs. 246 e segs.).
A esta luz, quando, através de lei nova, o legislador soluciona a questão controvertida, circunscrevendo-se às soluções hermenêuticas em presença, positivando a via que o intérprete já poderia adoptar, a lei não é substancialmente inovadora, nem, como tal, substancialmente retroactiva.
Já não será assim se, com a nova redacção, se procedeu a uma extensão do âmbito normativo, de modo a extravasar a tarefa interpretativa, nomeadamente perante o acréscimo de conteúdos normativos não contidos nas disposições legais interpretadas, nem razoável e legitimamente dedutíveis do teor literal do respectivo Tatbestand.
Nesta leitura, porque se trataria, no caso vertente, de impostos estrutural, substancial e teleologicamente distintos, procedentes de diferentes decisões políticas, o facto de os mesmos terem sido expressamente associados para efeitos da sua colecta, não significaria que o tratamento a dar a um, designadamente em matéria de dedução de custos, se deva estender automaticamente ao outro.
Em consonância com este ponto de vista, a interpretação dada pelo acórdão recorrido terá resvalado 'para uma situação de inconstitucionalidade, por violação dos imperativos de legalidade, segurança jurídica e protecção de confiança em matéria fiscal’ – como se escreve em parecer junto aos autos, de J. J. Gomes Canotilho – pondo em causa as expectativas legítimas dos contribuintes, uma vez que, na realidade, a lei nova
é uma lei inovadora e a sua autoqualificação como lei interpretativa é, para todos os efeitos, irrelevante. Sucede que, por vezes, como nota Oliveira Ascensão (cfr. ob. cit., pág. 440) qualifica de interpretativa o que mais não é do que lei nova para, assim, 'tornar menos perceptível a retroactividade da lei'.
8.2. - A questão não pode, no entanto, desprender-se de um outro tipo, fundamental, de considerações.
Observou-se, a este respeito, em acórdão muito recente deste Tribunal – nº 193/01, ainda inédito:
'A verdade é que a questão da aplicação da lei constitucional no tempo não pode dissociar-se quer do princípio geral da não retroactividade a que a Constituição não abre excepção para os seus princípios e normas quer do tipo de situações em causa e da natureza desses mesmos princípios e normas e dos sectores do ordenamento jurídico a que especificamente respeitam. Não pode, com efeito esquecer-se que, p. ex., no contencioso administrativo, a intervenção judicial se faz para apreciação da legalidade de uma decisão da Administração que foi produzida num determinado momento e no quadro de um ordenamento jurídico então vigente, de acordo com o princípio, assente pacificamente, do ‘tempus regit actum’. Não há, assim e em regra, qualquer razão para os princípios e normas constitucionais especificamente reguladoras desse contencioso se não regerem quanto à sua aplicação no tempo pelas mesmas regras que disciplinam o direito administrativo infraconstitucional. E se se diz em regra é porque se não rejeita que, em situações de ruptura constitucional, os novos princípios ou normas adquiram uma força vinculante que se projecte para o passado. No caso em apreço, está em causa a legalidade de um imposto cuja aferição se há-de reportar ao momento em que se verificaram os respectivos pressupostos de facto, como é comummente aceite na doutrina e na jurisprudência (cfr., por todos, Cardoso da Costa ‘Curso de Direito Fiscal’ pp. 215 e segs.); e, por outro lado, a norma constitucional introduzida pela revisão de 97 que seria convocável para aferir da constitucionalidade da norma que é objecto do presente recurso pertence ao que, na declaração de voto proferida no Acórdão nº 172/2000, pelo Presidente deste Tribunal, se qualifica de ‘Constituição fiscal’, devendo estar sujeita ao mesmo princípio de aplicação da lei fiscal no tempo.'
Tal como se fez no citado acórdão nº 193/01, também aqui se perfilha o entendimento professado em voto de vencido no acórdão nº 172/00, em termos que se passam a reproduzir:
'2. Ora, a respeito desse ponto, tudo está em que ele tem a ver ou se perfila como um problema de aplicação da Constituição no tempo, e em que é meu entendimento que um tal problema não só há-de equacionar-se nos mesmos moldes, como há-de obedecer, na sua solução, a princípios, e aos critérios estruturais em que estes se plasmam, idênticos ou semelhantes aos que regem para o problema da aplicação da lei no tempo. Pois bem: desde logo se contando entre esses princípios, como princípio-regra, o da não retroactividade - isto é, o de que as leis só valem, em princípio, para o futuro - , também desde logo o mesmo princípio se aplicará às normas constitucionais. E, que assim é, evidencia-o o próprio texto da Constituição portuguesa de 1976, no nº 2 do seu artigo 282º - cujo alcance, a esse respeito, se afigura inequívoco. Face a este texto, na verdade, bem se deverá concluir que uma aplicação 'retroactiva' da lei fundamental há-de ser excepcional e apenas ocorrer em situações ou domínios específicos, por força de normas ou princípios também específicos dela (esse poderá ser, paradigmaticamente, o caso do domínio penal, quando aí caiba aplicar o princípio consignado na parte final do artigo
29º, nº 4, ainda da Constituição). Como regra, as normas constitucionais e suas alterações não se aplicarão retroactivamente. Entretanto, da regra da não retroactividade já emerge que o momento determinante para a escolha da lei aplicável (quando duas leis se sucedam e conflituam no tempo) não é necessária e automaticamente o da decisão judicial (de uma qualquer decisão judicial) do caso, em termos de este dever ser resolvido de harmonia com a lei então em vigor; e se essa regra, de todo o modo, consente que em muitas situações seja assim (isto é, que se aplique a norma vigente no momento da decisão), a verdade é que, a tal respeito, tudo dependerá da matéria e do tipo de situações em presença, e dos critérios estruturais, postulados pela mesma regra (e desenvolvidos a partir dela), aplicáveis justamente a cada matéria e situação típica. Dai que segundo a premissa inicial de que parto - também estes mesmos critérios hajam de observar-se quando, numa dada situação concreta, importe determinar o padrão constitucional relevante. Ora, em matéria fiscal, e no tocante a normas 'substantivas' de tal domínio jurídico, o critério aplicável é o de que sob o império de tais normas caem as situações (só elas, mas todas elas) cujo facto gerador (o 'facto gerador' ou o
'pressuposto de facto' da imposição) tenha ocorrido durante a sua vigência - sendo o momento ou a época desse facto, ou pressuposto, pois, o decisivo, para a escolha da lei aplicável ratione temporis (e não, seguramente, o da aplicação administrativa ou judicial da lei). É esta a doutrina indiscutida, em toda a parte (entre nós, v., classicamente, OLIVEIRA SALAZAR, 'Da não retroactividade dos impostos', no Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, vol. IX, p.87 ss.): impõe-na razões de segurança jurídica, mas também razões de igualdade (a que alguns chegam, aliás, a atribuir a primazia); por outro lado, é a que corresponde ao critério, tido como de âmbito geral, plasmado no artigo 12º do Código Civil (cfr. J.M. CARDOSO DA COSTA, Curso de Direito Fiscal, 2ª ed., 1972, p. 231 ss.); e, por último, é (salvo alguma rara voz discordante) uma doutrina que cumprirá aplicar ainda quando a lei fiscal 'nova' seja de conteúdo mais favorável ao contribuinte (quanto a este preciso aspecto, v., decididamente, TEIXEIRA RIBEIRO, 'Anotação', na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano
106º, p. 74 s.). Mas, se é assim, então - uma vez que os critérios estruturais de resolução do problema da aplicação no tempo de normas constitucionais e de normas legais não hão-de diferir entre si - os mesmos princípios acabados de referir valerão também para a determinação das normas ou princípios da 'Constituição fiscal' relevantes numa dada situação tributária. O que significa que também essas normas e princípios constitucionais outros não poderão ser senão os vigentes à data em que ocorreu o 'facto gerador' dessa situação.
3. Posto isto, torna-se claro que a norma constitucional em que expressamente passou a consignar-se, em termos genéricos, o princípio da proibição da retroactividade dos impostos, introduzida em 1997, só pode valer para eventuais normas tributárias retroactivas 'futuras', isto é, emitidas e entradas em vigor após essa revisão da Constituição, e não para as que o hajam sido antes. É que, no tocante à 'dimensão retroactiva' de uma norma tributária - quer dizer, à sua aplicação a situações anteriores ao início da sua vigência - o 'facto gerador' da imposição ocorre no momento da sua mesma entrada em vigor, pois é esta
última, na verdade, que, conjugada com essas situações ou factos anteriores, gera a obrigação de imposto. Por consequência, e de acordo com o antecedentemente exposto, é à luz da 'Constituição' então vigente que caberá apurar da admissibilidade e legitimidade de uma tal dimensão normativa. Fazê-lo
à luz de uma 'Constituição' ulterior (v.g., a vigente no momento da apreciação ou reapreciação contenciosa da legalidade da liquidação do imposto) equivalerá a conferir a essa nova 'Constituição' eficácia retroactiva - o que é, como se disse, contrário ao princípio-regra básico da aplicação da Constituição no tempo. Assim sendo, claro é também que a questão da legitimidade constitucional da norma do nº 7 do artigo 28º da Lei nº 10-B/96 - a qual, ao qualificar como
'interpretativa' a nova redacção dada pelo nº 1 desse mesmo artigo ao preceito da alínea a) do nº 1 do artigo 41º do Código do IRC, confere a essa nova redacção eficácia retroactiva - nunca haverá de ser aferida e decidida por referência ao que actualmente se consigna, de modo expresso, na parte final do artigo 103º, nº 3, da Constituição, mas sempre (e independentemente do momento em que ocorra a aplicação administrativa ou judicial dessa norma) por referência ao que antes (antes da revisão de 1997) se entendia ser o parâmetro constitucional a considerar em matéria de normas fiscais retroactivas.'
No mesmo voto aduzem-se, ainda, duas notas complementares:
'A primeira será para destacar a possibilidade de o ponto de vista que ora perfilho encontrar afinal ainda algum arrimo, contra todas as aparências, no próprio Acórdão nº 408/89 (a matriz de onde arranca a solução que veio a prevalecer), em certas suas passagens. Mas certamente o não encontra na fórmula-chave desse aresto - a do relevo, para a decisão das questões de inconstitucionalidade 'material', das normas ou princípios constitucionais 'que estiverem em vigor no momento em que esse confronto [o confronto da lei com a Constituição] houver de ser feito' - , esclarecido, como depois se esclarece, que tal momento é o da 'aplicação da norma que é questionada'. O que justamente entendo é que não basta recorrer à distinção entre os diferentes tipos de vícios de inconstitucionalidade, conjugada com a regra tempus regit actum, para delimitar o âmbito de aplicação de duas normas constitucionais que se sucedem no tempo, e decidir sobre qual delas será a aplicável na espécie: penso antes, pelas razões que atrás expendi, que ainda situações de eventual inconstitucionalidade 'material' haverá que devem ser apreciadas à luz da
'Constituição' do tempo em que a norma legal questionada entrou a vigorar.'
9. - Na linha das considerações precedentes e tendo em conta as balizas cronológicas em que se situa a matéria fáctica relevante, o parâmetro constitucional a considerar é o anterior ao da última revisão constitucional.
Mas, sendo assim, há que concluir pela não inconstitucionalidade da norma da alínea a) do nº 1 do artigo 41º do CIRC, na redacção introduzida pelo nº 1 do artigo 28º da Lei nº 10-B/96, considerada interpretativa nos termos do nº 7 do mesmo artigo 28º - conclusão a que se chega pelas razões aduzidas no ponto UU-8.2., na sua essencialidade.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 26 de Junho de 2001- Alberto Tavares da Costa Messias Bento José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida