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Processo nº 26/04
Plenário
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. veio reclamar, “nos termos do art.º 688.º, n.º 1, do
Código de Processo Civil, aplicável por força do art.º 69.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional”, para o
Presidente do Tribunal Constitucional do despacho do relator que não admitiu o
recurso interposto para o Plenário do mesmo Tribunal, “nos termos do art.º
79.º-D, n.º 1, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional”, do Acórdão n.º 86/2007, proferido nestes autos pela 2.ª Secção
do Tribunal Constitucional.
2 – Fundamentando a sua pretensão, o reclamante discorre do
seguinte jeito:
«1º
Entende o Recorrente que os fundamentos que aproveitaram ao indeferimento da
subida do recurso ao Plenário deste Tribunal não levaram em linha de conta,
salvo o devido respeito, o verdadeiro sentido de tudo quanto aquele expôs em
sede de requerimento de recurso. Porquanto,
2º
Tal como o Recorrente procurou trazer à evidência, o que está em causa não é a
factualidade concreta que deu origem ao dano sofrido, mas sim a existência, sem
mais, do mesmo.
3º
Na verdade, aquilo contra o que o Recorrente se insurge é a inaceitável
distinção, que se pretende fazer, entre a perda de um unido de facto em virtude
de um homicídio doloso e aquela outra por força de um acidente de viação causado
por culpa exclusiva de outrem;
4º
Tudo a contrariar o progressivo reconhecimento da união de facto enquanto
instituto idóneo para a produção de efeitos análogos ao do matrimónio. Dito de
outro modo,
5º
Nunca o Recorrente poderá aceitar que apenas em caso de homicídio doloso a sua
perda seria reconhecida e jurisprudencialmente suportada pelo Acórdão 275/02. Na
verdade,
6º
Se é certo e seguro que a factualidade concreta analisada nos dois casos ora
postos em confronto é naturalmente distinta, também certo e seguro será que
qualquer exercício jurisprudencial apenas encontra a característica da
prestabilidade quando, numa dialéctica jusmetodonomológica, encontre,
precisamente, denominadores comuns dos quais se venham a extrair princípios
gerais axiológico-normativos. Ora,
7º
Nada mais do que isso terá sido feito pelo Recorrente ao ter identificado uma
nota comum presente nos dois Acórdãos.
8º
O que estaria sempre em causa – e consonante com a referida «identidade da
norma» – é a ressarcibilidade de «danos não patrimoniais que, pela sua
gravidade, mereçam a tutela do direito», não interessando a intensidade do dolo
ou sequer a modalidade da culpa, mas unicamente o resultado produzido por um
facto ilícito praticado por outrem.
9º
Se o Acórdão 275/02 admitiu a ressarcibilidade de danos não patrimoniais aos
unidos de facto causados por homicídio doloso, reconheceu necessariamente a
idoneidade dessa relação afectiva, análoga ao matrimónio, para à produção de
efeitos jurídicos consubstanciados numa pretensão indemnizatória, abstraindo,
logo num momento primordial, de qualquer consideração acerca de qual a
factualidade mais própria tendente a tal reconhecimento. Melhor dito,
10º
Homicídio doloso ou acidente de viação causado por culpa exclusiva de um
terceiro serão sempre causas acessórias que apenas importam para a verificação
de um dano produzido, tanto num caso como no outro, pela prática de um facto
ilícito. Assim sendo,
11º
E dados aqui como integralmente reproduzidos os fundamentos apresentados no
requerimento de interposição de recurso para o Plenário deste Tribunal, o
Recorrente mantém a sua convicção de que as considerações expendidas no Acórdão
275/02 impõem um outro juízo decisório, no âmbito dos presentes autos.
12º
Um juízo decisório que aqui reconheça, tal como ali, a idoneidade do unido de
facto como sujeito titular de pretensões indemnizatórias surgidas em virtude de
um dano sofrido pela sua contraparte.
TERMOS EM QUE:
Se requer a V. Exa. deferir a presente reclamação e ordenar a admissão do
recurso interposto para o Plenário deste Tribunal, nos termos e com os
fundamentos acima descritos.
Mais requer:
Que o presente seja instruído com o requerimento de interposição de recurso para
o Plenário e a decisão que sobre ele recaiu».
B – Fundamentação
3 – Antes de mais importa notar que o meio processual usado
pelo reclamante não é o legalmente adequado para reagir contra o despacho do
relator no Tribunal Constitucional que não admitiu o recurso para o Plenário.
É certo que, como alega o reclamante, o art. 69.º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), dispõe que “À tramitação
dos recursos para o Tribunal Constitucional são subsidiariamente aplicáveis as
normas do Código de Processo Civil (CPC), em especial as respeitantes ao recurso
de apelação”.
Mas, mesmo consentindo que a remissão efectuada para as normas
do CPC abranja este preceito, conquanto não se encontre inserido dentro dos que
regem especificamente sobre o recurso de apelação, não poderá deixar de
concluir-se que o caso não se pode subsumir à sua hipótese.
Na verdade, o instrumento processual construído no art.º 688.º
do CPC – de reclamação contra o indeferimento ou retenção do recurso – pressupõe
a existência de um tribunal superior àquele em que se integre o juiz que
indefere ou retenha o recurso e para o qual se pretende recorrer.
Ora, tal não se passa com o Plenário do Tribunal
Constitucional, pois essa formação judicial não é mais do que um dos modos em
que o Tribunal Constitucional, segundo a LTC e o disposto no art.º 224.º, nºs 2
e 3, da Constituição, se organiza e funciona.
Cingindo-nos aos processos de fiscalização concreta, em que se
integra o presente, de acordo com a LTC, o Tribunal Constitucional funciona na
forma de juiz singular – relator – (art.ºs 78.º-A e 78.º-B da LTC); em
conferência (art.ºs 77.º, n.º 1, 78.-A, n.º 3, 78.º-B, n.º 2, da LTC); em pleno
de secção – secção (artº 78º-A e art.º 79.º-B, n.º 1, da LTC) e em plenário do
Tribunal (art.ºs 79.º-D, n.º 1, da LTC).
Sob cada um desses diversos modos de funcionamento o Tribunal
Constitucional é sempre o mesmo tribunal, não se podendo perspectivar cada uma
dessas diferentes formações jurisdicionais como constituindo tribunais
superiores, antes sendo diferentes modos de organização e de funcionamento do
Tribunal que a lei releva para efeitos de repartição da competência que lhe é,
constitucional ou legalmente, atribuída, sem embargo de as formações mais
alargadas poderem funcionar, de acordo com a LTC, como órgãos de apreciação de
reclamações e de recursos de decisões das formações menores.
Assim sendo, o meio processual ajustado para conhecer da
reclamação da decisão do relator que não admita o recurso interposto para o
Plenário só poderá ser a reclamação para a conferência desse mesmo plenário do
Tribunal, havendo que fazer-se uma interpretação funcionalmente adequada da
norma constante do n.º 2 do art.º 78.º-B da LTC.
Ora, não prevendo a LTC que o plenário possa funcionar com uma
formação reduzida, ou seja, correspondendo a conferência do plenário à formação
do plenário, evidente se torna que caberá ao próprio Plenário conhecer da
reclamação deduzida pelo reclamante do despacho do relator que não admitiu o
recurso.
Deste modo passará o plenário do Tribunal Constitucional a
conhecer da reclamação.
4 – O reclamante contesta a seguinte decisão do relator, de
não admissão do recurso para o plenário Tribunal:
«1 – A., invocando o disposto no art.º 79.º-D, n.º 1, da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), e alegando que “a decisão por ora proferida
entrou em clara divergência com aquela outra consagrada no Acórdão 275/2002 uma
vez que operou uma delimitação negativa dos titulares do direito à indemnização,
consagrado no número 2 do art.º 496.º do Código Civil, contrária ao
reconhecimento do unido de facto como sujeito idóneo para relações afectivas
idênticas às desenvolvidas entre os cônjuges”, recorre para o Plenário do
Tribunal Constitucional do Acórdão n.º 86/2007, proferido nestes autos.
2 – Decorre do disposto no referido n.º 1 do art.º 79.º-D da
LTC que constitui pressuposto específico do recurso de constitucionalidade para
o plenário do Tribunal Constitucional que “a questão da inconstitucionalidade ou
ilegalidade” seja julgada “em sentido divergente do anteriormente adoptado
quanto à mesma norma, por qualquer das suas secções” (itálico acrescentado).
Como requisito de tal recurso exige-se, assim, que haja
identidade da norma que foi objecto dos alegados julgados “em sentido
divergente”.
3 – Ora, no caso em apreço, não se verifica este requisito de
identidade de normas.
Na verdade, o Acórdão n.º 275/02 julgou inconstitucional «a
norma do n.º 2 do artigo 496º do Código Civil, na parte em que, em caso de morte
da vítima de um crime doloso, exclui a atribuição de um direito de 'indemnização
por danos não patrimoniais' pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a
vítima em situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas
às dos cônjuges».
Por seu lado, o Acórdão pretendido agora recorrer decidiu “não
julgar inconstitucional a norma do art.º 496.º, n.º 2, do Código Civil, na parte
em que exclui o direito à indemnização por danos não patrimoniais da pessoa que
vivia em união de facto com a vítima mortal de acidente de viação resultante de
culpa exclusiva de outrem”.
Do mero confronto das duas decisões constata-se serem diversas
as dimensões normativas do art.º 496.º, n.º 2, do Código Civil que foram objecto
dos dois julgamentos de constitucionalidade, e, consequentemente, também
diversas as questões de constitucionalidade que as mesmas postulavam e foram
julgadas, alegadamente em sentido divergente.
E são diversas porque diferentes são, substancial ou
materialmente, as hipóteses que integram cada uma dessas dimensões normativas,
tal qual se mostram geral e abstractamente recortadas: enquanto, no Acórdão n.º
275/02, se questionou a conformidade constitucional do art.º 496.º, n.º 2 do
Código Civil, enquanto entendido no sentido de excluir, «em caso de morte da
vítima de um crime doloso, a atribuição de um direito de 'indemnização por danos
não patrimoniais' pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em
situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos
cônjuges», no Acórdão agora pretendido recorrer, o que se questionou foi a
conformidade constitucional do mesmo artigo do Código Civil, mas entendido agora
no sentido de “excluir o direito à indemnização por danos não patrimoniais da
pessoa que vivia em união de facto com a vítima mortal de acidente de viação
resultante de culpa exclusiva de outrem”.
Tal diversidade substancial das hipóteses normativas não
deixou, de resto, de ser explicitada no Acórdão pretendido agora recorrer, até
para afastar a aplicabilidade à dimensão normativa nele apreciada da doutrina
sufragada anteriormente no Acórdão n.º 275/02.
4 – Destarte, atento tudo o exposto, decide-se não admitir o
recurso interposto para o plenário do Tribunal Constitucional.».
5 – Não se vê que o reclamante infirme a bondade da
fundamentação e da decisão reclamada e que, por isso, aqui se reitera.
Ao contrário do que entende o reclamante, a diversidade dos
casos alegados como estando em oposição não respeita apenas à sua factualidade
concreta. A diferença relativa à causa jurígena do dano sofrido pela pessoa que
vivia em união de facto – de um lado, um crime doloso e do outro um acidente de
viação resultante de culpa exclusiva de outrem – não traduzem particularidades
do caso concreto, mas, na óptica dos fundamentos do acórdão recorrido, elementos
próprios de uma dimensão normativa do art.º 496.º, n.º 2, do Código Civil
diferente da aplicada no acórdão fundamento.
Usando a expressão do reclamante, eles correspondem a um outro
princípio “axiológico-normativo” que se mostra positivado numa outra dimensão
normativa do mesmo preceito do Código Civil.
Assim sendo, a reclamação não merece deferimento.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 15
UCs.
Lisboa, 6 de Junho de 2007
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Ana Maria Guerra Martins
Mário José de Araújo Torres
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Rui Manuel Moura Ramos