Imprimir acórdão
Processo nº 112/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. M... foi acusada no Tribunal Judicial da Comarca de Paredes pela prática, em co-autoria com F..., de 'um crime de emissão de cheque sem provisão p.e.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 11, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 454/91 de 28 de Dezembro e 314, alínea a) do Código Penal', para julgamento em processo comum com intervenção do tribunal singular.
Notificada a acusação aos arguidos, foi esta recebida pelo Tribunal, que todavia acrescentou, no despacho correspondente (de fls. 123), que o crime de que os arguidos haviam sido acusados era 'punível com pena de prisão de 1 a
10 anos, nos termos do disposto nos artigos 11º nº 1 alínea a) do Decreto-Lei nº
454/91, de 28/12 e 314º alínea a) do Código Penal e, actualmente, p. e p. pelos artigos 11º nº 1 alínea a) do Decreto-Lei nº 454/91, de 28/12 e 217º e 218º nº 2 alínea b) do Código Penal, a que corresponde uma pena de prisão de 2 a 8 anos'. No mesmo despacho foi marcado dia para a realização da audiência de discussão e julgamento. Não se tendo conseguido notificar M... do referido despacho, e não tendo ela comparecido em juízo no prazo que lhe foi fixado para o efeito, foi declarada contumaz.
Pelo requerimento de fls. 259, porém, M..., baseando-se nas alterações entretanto provocadas no Decreto-Lei nº 454/91 pelo Decreto-Lei nº
316/97, de 19 de Novembro ('os factos foram praticados em 15/12/93 e são puníveis com pena de prisão não superior a 5 anos'), veio requerer que fosse declarado extinto, por prescrição, o procedimento criminal, porque 'decorreu, sem suspensões ou interrupções, o prazo prescricional de 5 anos previsto no art.
117º, nº1, al. c) do Código Penal de 82'. O magistrado do Ministério Público junto do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Paredes pronunciou-se, no respectivo visto (a fls. 262), no sentido de que, por um lado, o prazo de prescrição correspondente ao crime de que foi acusada é de 10 e não de 5 anos, e de que, por outro, 'no actual Código Penal, a prescrição do procedimento criminal se interrompe e se suspende enquanto vigorar a declaração de contumácia (cfr. os artigos 120º, nº 1, alínea a) e 121º, nº 1, alínea c), ambos do Código Penal de 1995)'. Pela sentença de fls. 263, e no que agora aqui interessa, foi decidido que a pena aplicável ao crime de que a arguida era acusada era de prisão até 3 anos
['... mesmo admitindo-se que a arguida praticou todos e cada um dos factos que lhe são imputados na douta acusação pública, a sua conduta não poderá, em caso algum, ser subsumida ao tipo qualificado do artigo 314, do CP de 1982 ou do artigo 218º, nºs 1 e 2, do CP 1995, mas tão só ao tipo do crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 313º, nº 1, do CP 1982 (artigo 217º, nº
1, do CP 1995)'], sendo, portanto, de 5 anos o prazo prescricional aplicável ao correspondente procedimento criminal e que, dadas as circunstâncias em que o processo havia decorrido, 'o presente procedimento criminal se encontra prescrito pelo menos desde 16/12/1998'. Assim, a sentença declarou 'prescrito, por decurso do respectivo prazo, o presente procedimento criminal contra a arguida M... e, consequentemente, cessada a situação de contumácia em que o mesma se encontrava'. Para o efeito, a sentença afastou, com fundamento em inconstitucionalidade por violação dos nºs 1 e 3 do Artigo 29º da Constituição, o Assento nº 10/2000 do Supremo Tribunal de Justiça (Diário da República I-A de 10 de Novembro de 2000), que fixou jurisprudência no sentido de que 'No domínio da vigência do DP de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão do procedimento criminal'.
2. Desta decisão veio a Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Paredes interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, visando a apreciação dos 'artigos 119º do Código Penal aprovado pelo Dec. Lei
400/82, de 23 de Setembro, e 336º nº 1 do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação feita pelo 'assento' do Supremo Tribunal de Justiça nº 10/00 de que no domínio de vigência do Código Penal de 1982, e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão do procedimento criminal'. O recurso foi admitido, em decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo
76º da Lei nº 28/82). Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou alegações, nas quais suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso interposto para o Tribunal Constitucional. Em seu entender, tendo sido proferida uma decisão contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, haveria previamente de ter sido interposto recurso (obrigatório segundo o artigo 446º do Código de Processo Penal) no âmbito dos tribunais judiciais, só cabendo recurso para o Tribunal Constitucional, eventualmente, 'da decisão que venha a ser proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça'. Assim resultaria do disposto no nº
5 do artigo 70º da Lei nº 28/82. A recorrida não apresentou alegações.
3. Na verdade, segundo o nº 5 do artigo 70º citado, 'não é admitido recurso para o Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório, nos termos da respectiva lei processual'. Ora no presente recurso a decisão recorrida, afastando a aplicação do assento nº
10/00 por inconstitucionalidade, está, como resulta do disposto no nº 1 do artigo 446º do Código de Processo Penal, sujeita a recurso obrigatório por parte do Ministério Público. Sucede, porém, que o Código de Processo Penal qualifica este recurso como um recurso extraordinário (no sentido de que é interposto após o trânsito em julgado da decisão recorrida); assim, coloca-se a questão de saber se este caso está ou não abrangido pelo citado nº 5 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
4. Para o efeito, cabe averiguar se a razão que justifica o regime previsto neste nº 5 – apenas recorrer para o Tribunal Constitucional da decisão que proferir a última palavra na ordem dos tribunais que julgaram a causa – ocorre no caso presente, e, em caso afirmativo, se deve prevalecer não obstante se tratar, por um lado, de um recurso interposto ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, e, por outro, de um recurso obrigatório extraordinário.
É sabido que a Lei nº 28/82 apenas impõe a prévia exaustão das vias de recurso no âmbito dos recursos interpostos ao abrigo do disposto nas als. b) e f) do nº
1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, ou seja, interpostos de decisões que aplicaram norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade foi suscitada durante o processo; e que, diferentemente, abre recurso directo para o Tribunal Constitucional de decisões não definitivas (ainda susceptíveis de recurso ordinário) de recusa de aplicação de normas, pelos mesmos motivos, como é o caso presente. Ora, quer num caso, quer no outro, a não ser interposto previamente o recurso obrigatório dentro da ordem a que pertence o tribunal que julgou a causa, pode vir a subsistir uma decisão sujeita a recurso obrigatório que versa exactamente sobre a norma julgada pelo Tribunal Constitucional; e o problema põe-se da mesma forma quando é o recurso previsto no artigo 446º do Código de Processo Penal que está em causa, apesar de ser qualificado por lei como recurso extraordinário.
Vejamos o caso, precisamente, do recurso imposto por este preceito. A ser julgado primeiro o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por recusa de aplicação de uma norma, se o Tribunal Constitucional confirmar o juízo de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, subsiste uma decisão contrária a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça – logo, ainda sujeita a recurso obrigatório, que não pode deixar de ser interposto. Interposto esse recurso – e vamos admitir que chegamos ao Supremo Tribunal de Justiça –, este Tribunal, para respeitar o caso julgado formado no processo sobre a questão de constitucionalidade, nos termos do disposto no nº 1 do artigo
80º da Lei nº 28/82, tem de alterar a orientação jurisprudencial que definiu, revendo o assento, sem ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre a decisão que recusou a respectiva aplicação por inconstitucionalidade. Do ponto de vista das relações institucionais entre o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional, há-de concordar-se não ser esta a melhor solução. Nos termos do disposto no nº 3 do artigo 9º do Código Civil, o intérprete há-de presumir, ao fixar o sentido da lei, que o legislador consagrou a solução mais acertada. E essa directriz leva-nos a não distinguir, para efeitos de aplicação do disposto no nº 5 do artigo 70º da Lei nº 28/82, entre recursos ordinários o recurso previsto no artigo 446º do Código de Processo Penal. Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso, por não ter sido previamente interposto o recurso obrigatório previsto no artigo 446º do Código de Processo Penal. Lisboa, 26 de Junho de 2001 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida