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Processo n.º 15/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por sentença de 2 de maio de 2011, proferida no processo n.º 153/09.2PHSNT, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, foi o arguido A. condenado pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de abuso de confiança, previsto e previsto pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), e 202.º, alínea a), do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão, e de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), e 202.º, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão.
Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 14 de fevereiro de 2012, julgou o recurso parcialmente procedente e determinou a suspensão da pena única de prisão aplicada ao arguido, pelo período de 2 anos e 6 meses, na condição de nesse prazo este efetuar o pagamento de metade das importâncias em capital fixadas na sentença a título indemnizatório aos respetivos demandantes, desse facto fazendo prova nos autos.
No entanto, o arguido havia sido já condenado, no processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, n.º 67/08.3JAFAR, do Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António, por acórdão de 10 de dezembro de 2010, pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão; de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e previsto pelo artigo 205.º n.ºs 1 e 4, alínea b), do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão; de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão; de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão; de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão; de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 17 meses de prisão; de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão; e, em cúmulo jurídico dessas penas singulares, na pena conjunta de 10 anos e 6 meses de prisão.
Tendo o arguido recorrido deste acórdão para o Tribunal da Relação de Évora, este Tribunal, por acórdão de 21 de junho de 2011, negou total provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Recorreu então o arguido para o Supremo Tribuna de Justiça que, por acórdão de 3 de novembro de 2011, concedeu parcial provimento ao recurso quanto à questão da medida da pena única do concurso de crimes, condenando o arguido, em cúmulo jurídico das penas singulares aplicadas, na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão, revogando, nesta parte, a decisão recorrida.
O 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Oeiras, por acórdão de 28 de junho de 2012, veio a proceder à efetivação do cúmulo jurídico das penas aplicadas no processo n.º 67/08.3JAFAR, que correu termos no Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António, e da pena aplicada no processo n.º 153/09.2PHSNT, que correu termos naquele juízo, tendo condenado o arguido na pena única de onze anos de prisão.
Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, onde, no parecer emitido ao abrigo do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público sustentou a inconstitucionalidade da interpretação normativa dos artigos 77.º e 78.º e do artigo 472.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, efetuada pela decisão recorrida.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 21 de novembro de 2012, negou provimento ao recurso.
O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC, em que requereu a fiscalização da constitucionalidade de uma determinada interpretação dos artigos 77.º, 78.º, e 56.º, n.º 1, do Código Penal, e 472.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Convidado a enunciar o conteúdo do critério normativo que era objeto do recurso, o Recorrente esclareceu que o mesmo se referia à possibilidade de, no concurso de conhecimento superveniente, se proceder à acumulação de penas de prisão efetivas com penas de prisão suspensas na sua execução, ainda que a suspensão não se mostrasse revogada, sendo o resultado uma pena de prisão efetiva.
O Ministério Público apresentou as respetivas alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1 – O princípio da intangibilidade do caso julgado – assente nos princípios da confiança e da segurança jurídicas – obsta a que possa ser objeto de reavaliação ou reponderação judicial a decisão, transitada em julgado, que condenou o arguido em pena suspensa, tendo este cumprido integralmente as condições de que dependia a suspensão, salvo se for demonstrada a prática de factos supervenientes enquadráveis no disposto no artigo 56º, nº 1, alínea b), do Código Penal, e que demonstrem a frustração das finalidades de prevenção e ressocialização do arguido, subjacentes ao “benefício” da suspensão da pena.
2 – A caducidade ou preclusão da suspensão da execução da pena, decretada exclusivamente em função da prática de factos ilícitos anteriores à sentença condenatória que outorgou ao arguido a suspensão da execução da pena privativa de liberdade, e com fundamento exclusivo na necessidade de proceder a cúmulo jurídico, traduz uma revogação “implícita” de tal benefício, de consequências estritamente análogas às previstas no artigo 56º do Código Penal, colidente, nessa medida, com a referida intangibilidade do caso julgado material, na parte em que é favorável ao arguido.
3 – A derrogação da suspensão da execução da pena, enquanto fundada em factos anteriores à sentença que outorgou a suspensão de execução de pena privativa de liberdade, revela-se, ainda, colidente com os princípios da proporcionalidade e da necessidade das penas criminais, ao determinar a preclusão do benefício da suspensão, sem que o comportamento ulterior do arguido o justifique minimamente.
4 – A derrogação da suspensão da execução da pena, enquanto fundada em factos anteriores à sentença que outorgou a suspensão de execução de pena privativa de liberdade, revela-se, finalmente, colidente com o princípio do contraditório, afrontando as garantias de defesa, no caso de o condenado não ser ouvido aquando da realização da audiência, a que se reporta o art. 472º do Código de Processo Penal, e em que se procede à efetivação do cúmulo jurídico e à determinação da consequente pena única, que lhe será aplicável.
5 – Termos em que deverá proceder o presente recurso de constitucionalidade.»
O arguido não apresentou contra-alegações.
Fundamentação
1. Da delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso constitucional é definido, em primeiro lugar, pelos termos do requerimento de interposição de recurso. Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.
O Recorrente, no requerimento de interposição de recurso corrigido, esclareceu que a interpretação dos artigos 77.º, 78.º e 56.º, n.º 1, todos do Código Penal, e 472.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que pretendia ver fiscalizada era a de que num concurso de crimes de conhecimento superveniente, era possível proceder à acumulação de penas de prisão efetivas com penas de prisão suspensas na sua execução, ainda que a suspensão não se mostrasse revogada, sendo o resultado uma pena de prisão efetiva.
Nas alegações de recurso, o Recorrente aditou a este enunciado a circunstância desse cúmulo de penas ser efetuado sem a presença do arguido.
Não sendo admissível a ampliação do objeto do recurso em fase de alegações, deve o mesmo restringir-se ao critério enunciado no requerimento de interposição de recurso corrigido, que é aquele que aliás se mostra coincidente com a ratio decidendi do acórdão recorrido.
E não tendo o artigo 472.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sido objeto da interpretação efetuada pela decisão recorrida, deve tal preceito ser excluído do complexo legal ao qual é reportada a interpretação normativa sindicada.
2. Do mérito do recurso
Está em causa nos presentes autos a constitucionalidade da interpretação dos artigos 77.º, 78.º e 56.º, n.º 1, todos do Código Penal, segundo a qual, num concurso de crimes de conhecimento superveniente, é possível proceder à acumulação de penas de prisão efetivas com penas de prisão suspensas na sua execução, ainda que a suspensão não se mostre revogada, sendo o resultado uma pena de prisão efetiva.
Segundo o Ministério Público, ora Recorrente, tal interpretação normativa nega a intangibilidade do caso julgado, com tutela no artigo 282.º, n.º 3, da Constituição, e colide com os princípios da necessidade e proporcionalidade das penas.
A questão de constitucionalidade objeto dos presentes autos tem subjacente, no plano do direito infraconstitucional, a questão de saber se, no caso de concurso superveniente de crimes, é admissível a possibilidade de cumulação de penas de prisão suspensas na sua execução com penas de prisão efetiva.
Os artigos 77.º e 78.º, que definem as regras da punição do concurso de crimes, bem como do conhecimento superveniente do concurso, na redação resultante da Lei nº 59/2007, de 4 de setembro, com entrada em vigor no dia 15 de setembro de 2007, dispõem o seguinte:
«Artigo 77.º
Regras da punição do concurso
1 – Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 – A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3 – Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4 – As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.
Artigo 78.º
Conhecimento superveniente do concurso
1 – Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.
2 – O disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado.
3 – As penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar, só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior.»
Por sua vez, o artigo 56.º do Código Penal, relativo à revogação da suspensão da pena de prisão, também na redação resultante da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, dispõe o seguinte:
«Artigo 56.º
Revogação da suspensão
1 – A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
2 – A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efetuado.»
No plano do direito infraconstitucional, não obstante as alterações legislativas operadas em 2007, continuam a existir, na doutrina e na jurisprudência, duas posições divergentes quanto à possibilidade de, no caso de conhecimento superveniente do concurso, proceder-se à cumulação de penas efetivas com penas suspensas de prisão: uma posição, maioritária, no sentido coincidente com o que foi adotado pela decisão recorrida; e outra, minoritária, em sentido contrário, coincidente com a posição assumida pelo Ministério Público no recurso interposto nestes autos.
Como é sabido, não cabe ao Tribunal Constitucional tomar posição quanto a esta divergência, mas apenas apreciar se o entendimento seguido pela decisão recorrida viola ou não princípios ou normas constitucionais, concretamente, a intangilibilidade do caso julgado e os princípios da necessidade e proporcionalidade das penas.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de apreciar esta questão de constitucionalidade em que era invocada a violação de normas e princípios constitucionais idênticos aos que agora são também invocados. Fê-lo no acórdão n.º 3/2006 (acessível na Internet, tal como os restantes acórdãos que a seguir se referem sem outra menção expressa, em www.tribunalconstitucional.pt), em que concluiu pela não inconstitucionalidade da norma que era objeto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«[…]
O Tribunal Constitucional já por diversas vezes (cf., por último, os Acórdãos n.ºs 61/2003 e 572/2003) reconheceu a proteção constitucional do caso julgado, alicerçando-a, quer no disposto no n.º 3 do artigo 282.º da Constituição, quer nos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição). Na verdade, o caso julgado “decorre de um princípio material – a exigência de segurança jurídica”, pois “a estabilidade do direito tornado certo pela sentença insuscetível de recurso ordinário é, igualmente, a dos direitos e interesses que declara”, tratando-se de um “princípio irrecusável”, “considerando os valores do Estado de Direito”, embora não seja um princípio “absoluto” (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo VI, 2.ª edição, Coimbra, 2005, pp. 277-278). Como refere J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra, 2003, pp. 264-265), “a segurança jurídica no âmbito dos atos jurisdicionais aponta para o caso julgado”, e, “embora o princípio da intangibilidade do caso julgado não esteja previsto, expressis verbis, na Constituição, ele decorre de vários preceitos do texto constitucional (CRP, arts. 29.º/4, 282.º/3) e é considerado como subprincípio inerente ao princípio do Estado de direito na sua dimensão de princípio garantidor de certeza jurídica”.
Mas não se trata – repete-se – de um princípio absoluto, embora a proteção constitucional de que goza naturalmente pressuponha que o legislador não é inteiramente livre, quer na escolha dos mecanismos suscetíveis de modificar uma decisão que a própria lei já considerara definitiva, quer na seleção das decisões suscetíveis de constituírem caso julgado.
Igualmente o Tribunal Constitucional tem reiteradamente reconhecido que a Constituição acolhe, designadamente no seu artigo 18.º, n.º 2, os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas e das medidas de segurança, afirmando repetidamente que, por serem as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não se demonstre a sua necessidade, como se recordou, por último, nos Acórdãos n.ºs 99/2002 e 494/2003, com larga referência à doutrina e à jurisprudência anterior sobre o tema. No entanto, não deixou de se sublinhar nesses Acórdãos que, sendo certo que “também em matéria de criminalização o legislador não beneficia de uma margem de liberdade irrestrita e absoluta, devendo manter-se dentro das balizas que lhe são traçadas pela Constituição”, é, por outro lado, igualmente certo que, “no controlo do respeito pelo legislador dessa ampla margem de liberdade de conformação, com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal Constitucional só deve proceder à censura das opções legislativas manifestamente arbitrárias ou excessivas”.
Entende-se que nenhum dos aludidos princípios constitucionais é violado pela interpretação normativa acolhida no acórdão recorrido.
Na verdade, segundo essa interpretação, a hipótese de uma pena de prisão suspensa na sua execução, anteriormente aplicada a um dos crimes em concurso, vir a perder autonomia e a ser englobada na pena única correspondente ao concurso supervenientemente conhecido constitui, a par das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 56.º do Código Penal, um caso em que é legalmente admitido “revogar” ou “não manter” a suspensão, o que, de acordo com a corrente jurisprudencial em que o acórdão recorrido se insere, nem sequer constitui violação de caso julgado, atenta a conatural provisoriedade da suspensão de execução da pena. O condenado em pena de prisão suspensa na sua execução que tenha praticado um crime anteriormente àquela condenação pelo qual ainda não foi julgado sabe que não só pode ter de vir a cumprir a pena de prisão suspensa se, no decurso do período da suspensão, infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social ou se cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, mas ainda que aquela suspensão pode não ser mantida, se a pena aplicada ao cúmulo legalmente o não permitir ou se, na ponderação final global a cargo do tribunal do cúmulo, se entender que a suspensão, no caso, se não justifica.
A apontada opção legislativa – tal como foi entendida no acórdão recorrido – surge, assim, ou como não violadora de pretenso caso julgado formado sobre a anterior condenação (se se sufragar a tese da provisoriedade inerente às decisões de suspensão de execução de pena de prisão), ou como materialmente fundada em ponderosas razões de política criminal, que privilegiam, por considerada mais justa, o sistema da pena conjunta, em detrimento do sistema da acumulação material.
Trata-se, na verdade – e com isto se responde também à crítica fundada na violação do princípio da necessidade das penas –, da solução que, na perspetiva do legislador (que, em domínio de liberdade conformativa como este, só justificaria censura constitucional se se tratasse de opção legislativa manifestamente arbitrária ou excessiva), corresponde ao critério da culpa e às preocupações de prevenção em que se funda o sistema punitivo.
Saliente-se que, na lógica deste sistema, tanto não viola o caso julgado a não manutenção, na pena única, de suspensão de penas parcelares, como a suspensão total da pena única, mesmo que nela confluam penas parcelares de prisão efetiva. Com efeito, uma vez determinada a medida da pena única, se esta for de prisão não superior a três anos, o tribunal tem de obrigatoriamente ponderar a possibilidade de essa pena ser suspensa na sua execução, “se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal). Se, feita esta ponderação, se concluir por um prognóstico favorável, a pena (única) deve ser suspensa, mesmo que englobe penas parcelares de prisão efetiva; se, ao invés, esse prognóstico for negativo, a pena (única) não deve ser suspensa, mesmo que englobe penas parcelares suspensas. A lógica do sistema é sempre a mesma e obedece a dois vetores: (i) no caso de conhecimento superveniente do concurso, tudo se deve passar como se passaria se o conhecimento tivesse sido contemporâneo; mas (ii) a decisão sobre a suspensão da pena deve atender à situação do condenado no momento da última decisão e sempre reportada à pena única.
A insubsistência das penas parcelares é, aliás, expressamente admitida pelo legislador, quando o n.º 3 do artigo 78.º do Código Penal determina a não manutenção, na pena única, das penas acessórias e das medidas de segurança aplicadas na sentença anterior, desde que elas se mostrem “desnecessárias em vista da nova decisão”.
No presente caso, o Supremo Tribunal de Justiça, ao apreciar a correção do cúmulo efetuado, ponderou a possibilidade de suspensão da execução da pena única que reduziu para 2 anos e 8 meses, apesar de nela confluírem duas penas parcelares de prisão efetiva (uma de 15 meses e outra de 6 meses). E foi só por entender que, no caso, não se justificava a suspensão da execução da pena, “por não se mostrar a mesma suficiente para realizar adequadamente as finalidades da punição”, que a mesma não foi decretada; se o diagnóstico tivesse sido favorável, teria sido decretada a suspensão, não obstante a existência de penas parcelares de prisão efetiva.
Também por esta razão se não mostra violado o princípio da proporcionalidade e da necessidade das penas, salientando-se que não vem questionado o respeito por esse princípio, por parte do legislador, nem quando estatuiu a incriminação e punição dos crimes singulares em concurso, nem quando optou, no que concerne à punição do concurso de infrações, pelo sistema da pena conjunta, de acordo com o princípio da exasperação ou agravação.
Conclui-se, assim, que a interpretação normativa questionada não viola os princípios do juiz natural, do contraditório, da intangibilidade do caso julgado ou da proporcionalidade e necessidade das penas.»
Segundo defende o Ministério Público nas suas alegações, o princípio da intangibilidade do caso julgado – assente nos princípios da confiança e da segurança jurídicas – obsta a que possa ser objeto de reavaliação ou reponderação judicial a decisão, transitada em julgado, que condenou o arguido em pena suspensa, tendo este cumprido integralmente as condições de que dependia a suspensão, salvo se for demonstrada a prática de factos supervenientes enquadráveis no disposto no artigo 56.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, e que demonstrem a frustração das finalidades de prevenção e ressocialização do arguido, subjacentes ao “benefício” da suspensão da pena. Acrescenta ainda que a preclusão da suspensão da execução da pena, decretada exclusivamente em função da prática de factos ilícitos anteriores à sentença condenatória que outorgou ao arguido a suspensão da execução da pena privativa de liberdade, e com fundamento exclusivo na necessidade de proceder a cúmulo jurídico, traduz uma revogação “implícita” de tal benefício, de consequências estritamente análogas às previstas no artigo 56.º do Código Penal, colidente, nessa medida, com a referida intangibilidade do caso julgado material, na parte em que é favorável ao arguido.
Sendo certo, conforme se refere no referido Acórdão n.º 3/2006, que o princípio da intangibilidade do caso julgado não é princípio absoluto e que da proteção constitucional de que goza resulta que o legislador não é inteiramente livre, quer na escolha dos mecanismos suscetíveis de modificar uma decisão que a própria lei já considerara definitiva, quer na seleção das decisões suscetíveis de constituírem caso julgado, não se nos afigura existirem razões para que o Tribunal se afaste da jurisprudência firmada neste acórdão, no sentido de tal princípio não resultar violado pela interpretação normativa em causa.
Na decisão recorrida sustenta-se que não existe obstáculo legal nem teleológico à cumulação de penas suspensas com penas efetivas de prisão, nos casos de conhecimento superveniente do concurso, considerando-se que tal situação não constitui violação do caso julgado, uma vez que a pena de substituição não transita em julgado, pois não fica definitivamente garantida por estar sujeita à condição resolutiva do decurso do prazo sem se registar a prática pelo condenado de novos crimes (e eventualmente pelo cumprimento de deveres e condições, por parte deste). Ou seja, segundo o entendimento da decisão recorrida, o caso julgado abrange apenas a medida concreta da pena de prisão (principal), mas não a forma da sua execução, ou seja, a sua substituição por pena suspensa.
Daí que, entendendo-se, como faz a decisão recorrida, que a suspensão da pena de prisão, tem um caráter de provisoriedade, no caso de conhecimento superveniente do concurso, tal pena poderá perder autonomia e ser englobada na pena única, sem que se mostre violado o caso julgado.
Ainda segundo esse entendimento, trata-se de aplicar, sem restrições, ao caso de conhecimento superveniente do concurso, as regras previstas no artigo 77.º do Código Penal, para as quais remete o artigo n.º 1 do artigo 78.º do aludido Código, por forma a tratar de modo igualitário as situações em que o concurso é de conhecimento simultâneo (artigo 77.º do Código Penal) e as situações de conhecimento superveniente (artigo 78.º do Código Penal), uma vez que, neste último caso, só por razões aleatórias ou fortuitas o tribunal não tomou conhecimento, em simultâneo, de todas as penas em concurso.
Assim, a provisoriedade da suspensão da pena de prisão resultaria, não só da verificação das hipóteses previstas no artigo 56.º, n.º 1, do Código Penal, mas também da possibilidade de tal suspensão não ser mantida por força do conhecimento superveniente de concurso em que fosse incluída essa pena e em que a suspensão da mesma não venha a ser mantida na ponderação global a efetuar para aplicação da pena conjunta.
Ora, para além de, conforme se disse, o princípio da intangibilidade do caso julgado não ser absoluto, este entendimento, mantendo intocado o caso julgado no que respeita às penas (principais) aplicadas e sustentando a provisoriedade da pena de prisão suspensa, é de molde a respeitar, no essencial, essa intangibilidade.
Mas, mesmo que assim não se entenda, não se poderá deixar de reconhecer que a interpretação sindicada tem subjacente um fundamento válido no plano jurídico-constitucional que é o do tratamento igualitário de situações materialmente idênticas: ou seja, pretende-se tratar de igual modo as situações de concurso, quer o conhecimento do mesmo seja simultâneo ou superveniente.
Com efeito, sendo as situações de conhecimento superveniente do concurso resultantes, muitas vezes, conforme se referiu, de razões aleatórias ou fortuitas (sem as quais o tribunal teria procedido atempadamente à aplicação de pena única relativa aos crimes em situação de concurso), esta é uma razão constitucionalmente válida para que não se estenda a eficácia do caso julgado às penas de prisão suspensas, procedendo-se à determinação da pena única conjunta, a partir da pena de prisão substituída, como se o conhecimento do concurso tivesse ocorrido atempadamente e fosse diretamente aplicável à situação do artigo 77.º do Código Penal.
Nestas circunstâncias, as razões resultantes do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, e das exigências de certeza e segurança, de que decorre o princípio da intangibilidade do caso julgado, surgem atenuadas, quer na hipótese de se entender, como faz a decisão recorrida, que a pena de substituição, pela sua natureza, não transita em julgado, estando sujeita a uma condição resolutiva, ou ainda porque, não sendo o princípio da intangibilidade do caso julgado um valor absoluto, existe justificação material bastante para a sua restrição na circunstância de, desta forma, se pretender dar um tratamento igualitário, na perspetiva da unidade do sistema, a todos os casos de concurso, mesmo que de conhecimento superveniente.
E no que respeita a uma eventual “confiança” ou “expectativa” do condenado na manutenção da suspensão da pena de prisão, salvo nos casos de verificação do circunstancialismo do artigo 56.º, n.º 1, do Código Penal, a verdade é que tal “expectativa” não será suficientemente fundada no caso em que este tenha praticado um crime anteriormente àquela condenação, pelo qual ainda não foi julgado, pois sabe que essa suspensão pode não ser mantida, num cúmulo jurídico que venha a realizar-se futuramente, caso a pena conjunta aplicada ao cúmulo não possa legalmente ser suspensa ou se na ponderação que o tribunal que proceda ao cúmulo se entender que a suspensão, no caso, não se justifica.
Já no que respeita aos princípios da proporcionalidade ou da necessidade das penas, sustenta o Ministério Público que a derrogação da suspensão da execução da pena, enquanto fundada em factos anteriores à sentença que outorgou a suspensão de execução de pena privativa de liberdade, revela-se colidente com os referidos princípios, ao determinar a preclusão do benefício da suspensão, sem que o comportamento ulterior do arguido o justifique minimamente.
Também quanto à alegada violação destes princípios não se vislumbram razões para que o Tribunal se afaste da jurisprudência do acórdão n.º 3/2006, cuja orientação é de reiterar, sendo os seus fundamentos transponíveis para a análise da questão objeto dos presentes autos.
Acresce ainda que, tendo em conta as regras estabelecidas para o conhecimento superveniente do concurso, o tribunal que procede ao cúmulo, na ponderação da pena única a aplicar terá de proceder a uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente, sendo essa necessidade de avaliação conjunta que determina que se considere nessa ponderação todas as condenações, sejam elas em pena de prisão efetiva ou suspensa, de modo a poder pronunciar-se sobre a medida da pena conjunta e, então, decidir ou não pela suspensão dessa pena, como faria caso o conhecimento do concurso fosse simultâneo e não superveniente. Ou seja, a não manutenção da suspensão da pena não está diretamente fundada em factos anteriores à sentença que outorgou a suspensão de execução de pena privativa de liberdade, mas sim na circunstância de só posteriormente se ter conhecimento desses factos e, por essa razão, se ter de proceder supervenientemente ao cúmulo jurídico.
Acresce, por fim, que após ser determinada uma pena única conjunta, o tribunal que procede ao cúmulo não só fará a ponderação no sentido de substituir ou não a pena única conjunta encontrada, em função dos critérios gerais de escolha da pena (artigo 70.º do CP), como depois procederá ao desconto da pena anterior, segundo os critérios previstos nos artigos 78.º, n.º 1, parte final, e 81.º do Código Penal.
Assim, e porque estas soluções legislativas, na interpretação adotada pela decisão recorrida, não se podem considerar como sendo arbitrárias ou excessivas, permitindo antes adequar as sanções aplicáveis à situação concreta do condenado, tendo em atenção uma avaliação global dos factos e da personalidade deste e as exigências de prevenção geral e especial, não se pode considerar que se mostrem violados os princípios da proporcionalidade e da necessidade das penas.
Pelo exposto, há que concluir que a interpretação normativa sindicada não viola qualquer norma ou princípio constitucional, devendo ser negado provimento ao recurso interposto.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 77.º, 78.º e 56.º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretados no sentido de ser possível, num concurso de crimes de conhecimento superveniente, proceder à acumulação de penas de prisão efetivas com penas de prisão suspensas na sua execução, ainda que a suspensão não se mostre revogada, sendo o resultado uma pena de prisão efetiva.
b) consequentemente, negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 17 de junho de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.