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Processo n.º 158/2013
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. e B., recorrentes nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, foram condenados pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Lousada, cada um, na pena de cinco anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro. Tendo recorrido para o Tribunal da Relação do Porto, este, por acórdão de 23 de novembro de 2011, concedeu provimento parcial aos recursos e confirmou a condenação de cada um dos recorrentes pela prática do mesmo crime, mas de menor gravidade (artigo 25.º, alínea a), do mencionado Decreto-Lei n.º 15/93), reduzindo a pena aplicada para três anos de prisão efetiva.
Posteriormente vieram os ora recorrentes arguir diversas nulidades deste acórdão, invocando vários vícios relacionados com a valoração das provas e outras tantas inconstitucionalidades, pretensão essa indeferida pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15 de fevereiro de 2012, no essencial, por considerar que as questões suscitadas pelos requerentes eram novas e, portanto, insuscetíveis de conhecimento depois de esgotado o poder jurisdicional. Os mesmos recorrentes insistiram na questão da nulidade, em novo requerimento, e, em requerimento autónomo, interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos dois acórdãos do Tribunal da Relação do Porto. Por despacho de 11 de abril de 2012, o relator no Tribunal da Relação do Porto indeferiu o primeiro requerimento e não admitiu o recurso para o Supremo. De novo insistiram os oram recorrentes, interpondo recurso da primeira parte deste despacho para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual também foi rejeitado (despacho de 20 de junho de 2012, a fls. 2867). Os recorrentes reclamaram da não admissão dos recursos.
Ainda inconformados, os recorrentes interpuseram recurso de constitucionalidade do “acórdão condenatório”, com base no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida abreviadamente como “LTC”), suscitando quatro questões de inconstitucionalidade. Pela Decisão Sumária n.º 260/2013, foi decidido não conhecer deste recurso de constitucionalidade.
2. Notificados de tal Decisão, vêm agora os recorrentes apresentar reclamação, com fundamento no disposto no artigo 78.º-A, n.º 3 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, em requerimento com o seguinte teor:
«A douta decisão sob reclamação (entre outras questões de que os recorrentes se conformam) sustenta que relativamente à quarta questão de constitucionalidade invocada a violação do parâmetro constitucional pelos preceitos ordinários invocados pelos recorrentes é imputada diretamente à decisão recorrida e não a uma autónoma interpretação normativa dos mesmos preceitos pelo que este Tribunal não pode conhecer do recurso apresentado pelos recorrentes.
I
Com o devido respeito os recorrentes não se podem conformar com o decidido quanto a esta matéria na dita douta decisão.
Conforme é elencado pela douta decisão reclamada no sistema português de fiscalização de constitucionalidade a competência atribuída ao Tribunal Constitucional tem dois parâmetros:
A) Questões de desconformidade constitucional imputadas a normas jurídicas.
B) Questões de desconformidade constitucional imputadas a interpretações normativas.
Nesta última situação, ou seja, quando o recurso de constitucionalidade se reporta a determinada interpretação normativa (conforme é igualmente elencado na dita douta decisão reclamada) este tem de incidir sobre o critério normativo da decisão e sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica.
Conforme é igualmente indicado na douta decisão reclamada a distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada à uma interpretação normativa daqueles que é imputada diretamente à decisão judicial que faz aplicação da mesma radica em que na primeira situação é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo o qual depois se subsume o caso concreto em apreço com carácter de generalidade enquanto na segunda situação está em causa a aplicação dos critérios normativos escolhidos apenas para as particularidades do caso concreto pelo que se se utiliza uma argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito legal ordinário e simultaneamente violadas normas constitucionais tem-se por certo que a questão de desarmonia constitucional é imputada à decisão judicial.
É ainda indicado na douta decisão reclamada que no caso do recorrente pretender apenas questionar certa interpretação de um preceito legal deverá especificar claramente qual a interpretação ou dimensão normativa do preceito que tem por violador da CRP enunciando os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional.
Vejamos agora o dito excerto do requerimento transcrito a este respeito na dita decisão sumária:
“[O]s artigos 21 e 25 do decreto-lei n.º 15/93 de 22JAN, 126 n.º 3, 127, 187 n.º 1 e 190 do CPP violam o artigo 18 n.º 2, artigo 26 n.º 1, artigo 32 n.º 1 e 8, artigo 34 n.º 1 e 4 da CRP quando interpretados no sentido de permitirem a valoração de elementos probatórios resultantes de escutas telefónicas quando o arguido é condenado pelo crime de tráfico p. e p. pelo artigo 25 do decreto-lei n.º 15/93 de 22JAN”. (sublinhado nosso não constante do dito excerto)
Verifica-se que a questão da inconstitucionalidade invocada respeitou todos os pressupostos essenciais ao conhecimento do recurso, em concreto:
A) A questão foi suscitada durante o processo no primeiro momento processual em que o podia ter sido feito;
B) Teve como objeto a interpretação normativa dos preceitos aplicados pela decisão recorrida (existe correspondência entre o critério normativo cuja fiscalização de constitucionalidade se requereu e a interpretação normativa adotada pela decisão recorrida);
C) Foi suscitada de modo a poder ser utilizada genericamente em outras situações ou seja em abstrato.
É certo que na peça processual em que pela primeira vez esta inconstitucionalidade foi invocada se faz referência à decisão recorrida mas tal foi feito para contextualizar as referenciadas inconstitucionalidades praticadas por essa mesma decisão em função da interpretação normativa que essa decisão levou a cabo dos referidos preceitos ordinários (com necessária repercussão na decisão judicial em apreço uma vez que em de se operar a referenciada subsunção mas não unicamente reportada à mesma atendendo a que as inconstitucionalidades invocadas são potencialmente aplicáveis de forma genérica) e no que releva no presente recurso de constitucionalidade apresentado é a autónoma interpretação normativa dos ditos preceitos que conduziu à respetiva aplicação que é atacada e com a qual os recorrentes não se conformam e não diretamente a dita decisão judicial uma vez que se é certo que os recorrentes não se conformaram com a circunstância da utilização das escutas telefónicas como meio de obtenção de prova para o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade em que foram condenados arguindo a respetiva nulidade não é menos certo que paralelamente e ou adicionalmente entenderam e invocaram que a interpretação normativa efetuada pela dita douta decisão recorrida relativamente aos preceitos ordinários supra expostos e que conduziu à respetiva aplicação violava artigos da CRP nos termos igualmente supra expostos por entenderem que esse sentido ou dimensão normativa dos ditos preceitos ia para lá do constitucionalmente permitido.
II
Termos em que respeitosamente se requer que sejam os autos levados à conferência para que esta decida da admissão do recurso e posterior tramitação do mesmo,
Para que se faça JUSTIÇA.»
Na verdade, no requerimento de interposição do presente recurso de constitucionalidade, os ora reclamantes haviam identificado nos seguintes termos a quarta questão:
« O presente recurso vem interposto:
[…]
IV
Do artigo 127 do CPP e o artigo 25 do decreto-lei n.º 15/93 de 22JAN violarem o artigo 18 n.º 2 da CRP (principio da proporcionalidade), o artigo 32 n.º 1 e 8, o artigo 26 n.º 1 e o artigo 34 n.º 1 e n.º 4 todos da CRP quando interpretados no sentido de permitirem a valoração de elementos probatórios resultantes da interceção e gravação de comunicações para fixação da factualidade provada em decisões judiciais quando a condenação é pelo crime de tráfico de menor gravidade.
Nota:
Esta questão trata-se de matéria que não poderia ser arguida no primitivo recurso apresentado pelos recorrentes pois estes foram condenados pela prática do artigo 21 do decreto-lei n.º 15/93 de 22JAN sendo que a possibilidade de invocar a mesma só nasceu com a convolação daquele crime e subsequente condenação daqueles no artigo 25 do decreto-lei n.º 15/93 de 22JAN pelo que só a partir da referenciada convolação se coloca a inadmissibilidade legal da utilização das escutas telefónicas enquanto meio de prova para a fundamentação da decisão que pôs termo a esta causa.»
3. É a seguinte a fundamentação da Decisão Sumária ora reclamada na parte relevante:
« 5. No caso vertente a decisão recorrida é, conforme indicado no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, o “acórdão condenatório”, ou seja, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de novembro de 2011.
[…]
5.3. Alegam os recorrentes no requerimento de interposição do presente recurso que a quarta questão de constitucionalidade resultou da «convolação», pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de novembro de 2011, do crime por que foram condenados na primeira instância no crime de «tráfico de menor gravidade”, pelo que só a puderam invocar no requerimento de arguição de nulidades daquele acórdão, visto que “só a partir da referenciada convolação se coloca a inadmissibilidade legal da utilização das escutas telefónicas enquanto meio de prova para a fundamentação da decisão que pôs termo a esta causa”.
Sem necessidade de apreciar esta justificação, a verdade é que o modo como a questão é suscitada no requerimento de arguição de nulidades do citado acórdão de 23 de novembro de 2011 não deixa margem para dúvidas sobre a imputação da inconstitucionalidade diretamente ao decidido nesse mesmo acórdão (cfr. fls. 2609):
“ESCUTAS TELEFÓNICAS
Os recorrentes foram condenados pelo crime de tráfico de menor gravidade em função do provimento parcial do recurso apresentado pelos mesmos do douto acórdão do Tribunal recorrido pelo que defendem os recorrentes (sem prejuízo de melhor entendimento) que este meio de prova não é admissível para sustentar a matéria de facto em discussão quando estamos perante este tipo menos gravoso de tráfico de estupefacientes.
Com efeito sem embargo de opinião mais esclarecida para o tipo de atividade delituosa acima discriminada fazer-se uso da prova resultante da interceção e gravação de comunicações é desproporcional para o fim pretendido (descoberta da verdade material dos factos) atendendo à natureza do crime em que os arguidos foram condenados (artigo 25 do decreto lei n.º 15/93 de 22JAN) pelo que nessa medida (com o devido respeito) o douto acórdão deste Venerando Tribunal violou o principio da proporcionalidade previsto no artigo 18 n.º 2 da CRP bem como consequentemente violou o artigo 32 n.º 1 e 8, o artigo 26 n.º 1 e o artigo 34 n.º 1 e 4 da CRP e ainda os artigos 126 n.º 3, 187 n.º 1 e 190 do CPP.»
Na verdade, os recorrentes discordam da possibilidade de utilização das escutas telefónicas como meio de obtenção de prova dos factos que conduzam à condenação por um crime de «tráfico de menor gravidade» em vez do crime inicialmente imputado de “tráfico de estupefacientes” (cfr. os artigos 21.º e 25.º, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro), como sucedeu no caso concreto. E consideram que tal utilização, sendo proibida pelo direito vigente, consubstancia uma nulidade. E, por isso mesmo, arguiram-na. Viciada é, no entender dos recorrentes, a decisão recorrida; e não as normas por ela aplicadas. A ilegitimidade constitucional que imputam às normas de direito ordinário (também violadas) não tem, assim, qualquer autonomia. Isso mesmo resulta da parte conclusiva do aludido requerimento quanto a esta matéria:
“Tendo assim sido violado o principio da proporcionalidade (valorando-se medidas excessivas sem respeitar o principio da justa medida para alcançar os fins pretendidos atendendo a que as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar- se como um meio para a prossecução dos fins visados com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos como a reserva da vida privada e familiar, ao sigilo e à inviolabilidade no domínio das telecomunicações) consequentemente os artigos 21 e 25 do decreto-lei n.º 15/93 de 22JAN, 126 n.º 3, 127, 187 n.º 1 e 190 do CPP violam o artigo 18 n.º 2, artigo 26 n.º1, artigo 32 n.º 1 e 8, artigo 34 n.º 1 e 4 da CRP quando interpretados no sentido de permitirem a valoração de elementos probatórios resultantes de escutas telefónicas quando o arguido é condenado pelo crime de tráfico p. e p. pelo artigo 25 do decreto-lei n.º 15/93 de 22JAN.» (itálicos aditados)
Ou seja, a violação do parâmetro constitucional pelos referidos preceitos de direito ordinário é uma consequência imediata da decisão concreta da respetiva aplicação. A inconstitucionalidade é imputada diretamente à decisão e não a uma autónoma interpretação normativa dos mesmos preceitos.»
4. O Ministério Público pronunciou-se no sentido de se dever julgar improcedente a reclamação, porquanto:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 260/2013, não se conheceu do objeto do recurso no que respeita às quatro questões de constitucionalidade que o recorrente identificava no requerimento de interposição do recurso.
2º
Na reclamação agora apresentada o recorrente apenas impugna a decisão quanto ao não conhecimento da quarta questão, pelo que, apenas quanto a esta, nos pronunciaremos.
3º
O recorrente identificou a questão desta forma:
“Do artigo 127.º do CPP e o artigo 25.º do decreto-lei n.º 15/93 de 22JAN violarem o artigo 18.º, n.º 2 da CRP (princípio da proporcionalidade), o artigo 32.º, n.º 1 e 8, o artigo 26.º, n.º 1 e o artigo 34.º, n.º 1 e n.º 4 todos da CRP quando interpretados no sentido de permitirem a valoração de elementos probatórios resultantes da interceção e gravação de comunicações para fixação da factualidade provada em decisões judiciais quanto a condenação é pelo crime de tráfico de menor gravidade.”
4º
Segundo os recorrentes expressamente referiram, a questão de constitucionalidade foi suscitada no requerimento de arguição de nulidade do acórdão que, na Relação do Porto, que, concedendo parcial provimento ao recurso interposto da decisão de 1.ª instância os condenou, a cada um, na pena de três anos de prisão efectiva.
5.º
Ora, como inequivocamente se demonstra na douta Decisão Sumária, nessa peça processual não se mostra adequadamente suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa.
6º
Poderíamos ainda acrescentar que, diferentemente do que os recorrentes afirmam, a questão de constitucionalidade podia e devia ter sido suscitada antes da prolação do acórdão da Relação.
7º
Na verdade, foram os recorrentes que, na motivação do recurso para a Relação, pugnaram pela condenação por um crime de tráfico de menor gravidade (artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), quando a 1.ª instância os tinha condenado pela prática de um crime de tráfico, previsto e punido no artigo 21.º do mesmo diploma.
8º
Essa posição dos recorrentes é evidente e consta expressamente, quer do texto, quer das conclusões 10 e 11 da motivação do recurso do arguido B. (fls. 2104 e 2105) e das conclusões 11 e 12 da motivação do recurso do arguido A. (fls. 2287 e 2288).
9º
Ora, limitando-se a Relação, nesta parte, a dar razão aos recorrentes, parece-nos evidente que não se pode falar de uma interpretação inesperada ou imprevisível que os dispensasse do cumprimento do ónus da suscitação prévia.
10º
Em síntese, sustentando os próprios recorrentes a condenação pelo crime de tráfico de menor gravidade, tiveram oportunidade de suscitar a questão de inconstitucionalidade da valoração de elementos probatórios resultantes da intercepção e gravação de comunicações, quando a condenação fosse por aquele crime.
11º
Acresce que, apesar de resultar dos autos que os arguidos foram, em 1.ª instância, condenados por um crime previsto e punido no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 e a Relação, dando, nesta parte, provimento ao recurso, os condenou por um crime previsto e punido no artigo 25.º, estas relevantes circunstâncias estão ausentes da dimensão normativa que os recorrentes enunciaram como devendo constituir objecto do recurso.
12º
Por último diremos que os recorrentes referem sempre e só o artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93.
13.º
Ora, este preceito tem duas alíneas, sendo que na alínea a) se prevê uma pena de prisão de 1 a 5 anos e na alínea b), uma pena de prisão até 2 anos.
14.º
A Relação condenou-os pelo crime previsto e punido nos termos do artigo 25.º, alínea a), não sendo irrelevante este aspecto, atendendo ao disposto no artigo 187.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
15.º
Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
5. Notificados os recorrentes para, querendo, se pronunciarem sobre o fundamento adicional de não conhecimento do recurso invocado na promoção do Ministério Público, responderam os mesmos no sentido de que tal fundamento não deveria ser conhecido uma vez que, não tendo sido aduzido na decisão sumária reclamada, deveria o Ministério Público, em tempo oportuno, ter suscitado tal questão, de modo a que a referida decisão se pudesse, sobre a mesma, pronunciar.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. A questão de inconstitucionalidade em causa na presente reclamação não foi conhecida em virtude de, como se dispôs na decisão ora reclamada, não ter um objeto normativo. Com efeito, o modo como os reclamantes suscitaram perante o tribunal recorrido o problema em apreço traduziu-se na imputação direta da desconformidade constitucional à decisão então recorrida, como decorre dos trechos transcritos na decisão ora reclamada.
Em sede de reclamação, os recorrentes sustentam, todavia, que, não obstante se ter feito referência, na dita sede processual, às “inconstitucionalidades praticadas por essa mesma decisão”, o que relevaria, em sede de recurso de constitucionalidade, seria o facto de que “paralelamente e ou adicionalmente entenderam e invocaram que a interpretação normativa efetuada pela douta decisão recorrida relativamente aos preceitos ordinários supra expostos e que conduziu à respetiva aplicação violava artigos da CRP”.
O que se constata, contudo, é que os recorrentes nunca autonomizaram verdadeiramente a questão normativa da inconstitucionalidade imputada à decisão da atividade judicial de valoração da prova nas circunstâncias concretas do caso. Tanto assim é, que são os próprios recorrentes a reconhecer expressamente que a “possibilidade de invocar [esta questão] só nasceu com a convolação daquele crime [o p. e p. pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro] e subsequente condenação [dos ora recorrentes] no artigo 25.º do decreto-lei n.º 15/93, de 22 de JAN pelo que só a partir da referenciada convolação se coloca a inadmissibilidade legal da utilização das escutas telefónicas enquanto meio de prova para a fundamentação da decisão que pôs termo” ao processo. Deste modo, e contrariamente ao que parecem fazer crer os recorrentes na reclamação, a invocada inconstitucionalidade é, na respetiva argumentação, simples efeito colateral que afeta a decisão concreta em resultado da inadmissibilidade legal da utilização das escutas telefónicas enquanto meio de prova para a fundamentação da decisão de punir pela prática do crime menos grave.
7. Mas, mesmo que lhes assistisse razão, sempre subsistiria um outro impedimento ao conhecimento do recurso, conforme assinalou o Ministério Público na pronúncia sobre a reclamação.
Na verdade, tendo sido os próprios recorrentes a pugnar, em sede de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pela condenação por um crime de tráfico de menor gravidade (p. e p. pelo artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro), quando a primeira instância os havia condenado pela prática de um crime de tráfico, nos termos do artigo 21.º do mesmo diploma, e limitando-se a decisão do Tribunal da Relação, nesta parte, a dar-lhes razão, não podem os mesmos recorrentes posteriormente vir invocar surpresa com a decisão, de modo a ficarem dispensados do ónus de suscitação atempada da inconstitucionalidade normativa. Com efeito, na medida em que os próprios recorrentes pugnaram pela condenação por crime de tráfico de menor gravidade, tiveram a oportunidade, logo nesse momento, de se pronunciarem acerca do problema da valoração, no âmbito desse ilícito criminal, dos elementos probatórios colhidos mediante a interceção e gravação de comunicações (os quais, recorde-se, haviam sido valorados na condenação proferida pela primeira instância).
Não se podendo qualificar, por conseguinte, como inesperada ou insólita a decisão recorrida, a suscitação da inconstitucionalidade que os recorrentes vieram a fazer em sede de arguição de nulidade é verdadeiramente extemporânea. Com efeito, o Tribunal Constitucional intervém, no âmbito da fiscalização concreta, em sede de recurso, o que pressupõe que, sobre os problemas de constitucionalidade em questão tenha havido uma pronúncia prévia do tribunal recorrido. Assim, este tribunal deve ter sido constituído, pela parte, num tal dever de pronúncia ou de decisão o que não ocorre quando a questão de constitucionalidade apenas é suscitada após a decisão final, em requerimento que se limita a arguir nulidades da mesma, uma vez que nesse momento já se encontra esgotado, em princípio, o poder jurisdicional do tribunal a quo.
Adiante-se ainda que o que os recorrentes vieram invocar na sequência da notificação do teor do parecer do Ministério Público é totalmente infundado. Com efeito, o Ministério Público não tem qualquer oportunidade para se pronunciar antes de ser proferida decisão com fundamento no artigo 78.º-A, n.º 1 da LTC, uma vez que os autos não lhe são previamente remetidos. Acresce que a notificação de tal promoção teve precisamente por objeto permitir aos recorrentes exercer, quanto ao que foi então promovido, designadamente quanto aos fundamentos adicionais de não conhecimento do objeto do recurso, o seu contraditório.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar os reclamantes nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 10 de outubro de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro (votei a decisão, mas apenas pelo fundamento enunciado no ponto 7)