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Processo n.º 134/13
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Pela Decisão Sumária n.º 114/2013, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. O conceito de norma jurídica surge aqui como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, entre muitos outros, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal decorre que o recorrente pretende, afinal, a apreciação da decisão judicial que conclui no sentido de serem aplicáveis ao caso os artigos 400.º, n.º 1, alínea f), e 432.º, n.º 1, do Código de Processo Penal na redação vigente e não na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 28 de agosto. Ora, a este Tribunal não cabe apreciar a determinação do direito aplicável pelo tribunal recorrido, porque tal contrariaria a competência que lhe está constitucionalmente cometida de «administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional» (artigo 221.º da Constituição). Justifica-se, por isso, a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC)».
3. Da decisão sumária vêm agora os recorrentes reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, mediante requerimento onde se lê, entre o mais, o seguinte:
«1. Importa desde já salientar, que no presente recurso estão em causa direitos fundamentais de qualquer cidadão, mormente o direito à liberdade de cidadãos condenados em penas de prisão elevadíssimas.
2. Ora, por decisão sumária n.º 114/2013 proferida a fls., e da qual ora se reclama, entende a Exma. Sr ª Relatora dever rejeitar o recurso interposto pelo arguido.
3. Ora, não pode o ora Reclamante concordar com tal decisão porquanto tal decisão colide frontalmente com os princípios constitucionais da igualdade, previsto no artigo 13.º, n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa, da aplicação de lei penal mais favorável, previsto no artigo 29.º, n.º 4 da C.R.P., da mínima restrição dos direitos liberdades e garantias, previsto no artigo 18.º, n.º 2 e 3 da C.R.P., e com os direitos de defesa do arguido em processo penal, in casu, o recurso, consagrado no artigo 32,º, n.º 1 da CR.P., este último visto em conjugação com o princípio de lei penal mais favorável, da proibição da retroatividade defavoravel e imposição da retroatividade favorável, e com o princípio da igualdade.
4. As normas em discussão no presente caso – artigo 400.º e artigo 432.º - relativas ao recurso, são as vulgarmente designadas pela doutrina normas processuais materiais, que se caracterizam por serem normas que “condicionam a efetivação da responsabilidade ou contendem diretamente com direitos do arguido ou do recluso.”
5. E porque o são ensina TAIPA DE CARVALHO que “à sucessão das leis penais materiais sejam aplicados os princípios da irretroatividade de lei favorável e da retroatividade da lei favorável”, pois, deste “direito repressivo” e da consequente proibição de retroatividade das suas normas desfavoráveis só se excluem as normas processuais penais que se referem “aos atos de pura técnica processual”, valendo aqui, e só aqui, o principio da aplicação imediata – tempus regist actum-, respeitando-se os atos praticados e “não podendo ser postos em questão, na sequencia de uma lei nova, quer esta seja ou não favorável à pessoa perseguida.”
6. A aplicação dos artigos citados, na redação anterior à Lei n.º 48/2007, de 28 de agosto. Impõe-se ainda para total cumprimento do princípio da igualdade, entre nós, consagrado no artigo 13.º, n.º 1 da C.R.P.
7. Dispondo o referido preceito constitucional que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sendo que o acórdão uniformizador acima referido, vem, salvo melhor opinião, colidir com este princípio.
8. A lei processual, no que concerne aos recursos, com a nova redação do artigo 400.º, n.º 1 alínea f), que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 28 de agosto, traduz um “agravamento sensível (...) da situação processual do arguido, nomeadamente mediante uma limitação do seu direito de defesa face á anterior redação que lhe permita o recurso ao STJ, que será “ainda evitável” mediante a aplicação daquelas normas na redação que lhes era dada anteriormente à alteração ao processo penal.
9. Assim, se temos que o texto da lei comporta apenas um sentido sempre terá de ser esse o sentido da norma.
10. Pelos motivos acima explanados, ao não se admitir o recurso em causa foram violados os artigos 13.º, 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa».
4. Notificado da reclamação, o Ministério Público veio dizer o seguinte:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 114/2013, não se conheceu do objeto do recurso porque o recorrente não identificava no requerimento recursório uma questão de inconstitucionalidade de natureza normativa, única passível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
2º
Na reclamação agora apresentada, o recorrente dá conta da sua discordância e afirma que a Decisão Sumária colide frontalmente com diversos princípios constitucionais que identifica.
3º
Ou seja, o recorrente, verdadeiramente, não impugna os fundamentos, naturalmente de natureza processual, que levaram á conclusão de que não se podia conhecer do objeto do recurso, continuando a não identificar uma questão que tenha natureza normativa.
4º
Aliás, já foi essa ausência de normatividade que levou a que na decisão recorrida – proferida pelo Senhor Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça – se tivesse afirmado:
“Porém, apenas normas, não decisões judiciais que as aplicam, são suscetíveis de impugnação por inconstitucionalidade, face ao disposto nos art.ºs 204.º e 280.º, n.º 1, da CRP, pelo que não se conhece desta questão (a de inconstitucionalidade) ”.
5.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão reclamada foi no sentido do não conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade, por não ter sido requerida a este Tribunal a apreciação de uma norma, quando apenas normas podem integrar o objeto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Entendeu-se que do requerimento de interposição de recurso decorre que o recorrente pretende a apreciação da decisão judicial que conclui no sentido de serem aplicáveis ao caso os artigos 400.º, n.º 1, alínea f), e 432.º, n.º 1, do Código de Processo Penal na redação vigente e não na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 28 de agosto. Lê-se no requerimento o seguinte:
«26. Assim deve aplicar-se o C.P. Penal na sua versão anterior ao caso em apreço, por ser mais favorável ao arguido, em obediência ao disposto no artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal,
27. Ora, é indesmentível que a aplicação da lei nova, vem agravar retroativamente a situação jurídico-processual do arguido, vedando-lhe um grau de recurso que anteriormente lhe era reconhecido.
28. E porque assim é impõem-se a aplicação do antigo artigo 400.º, n.º 1, alínea f) e artigo 432.º, n.º 1, alínea b), da redação anterior à Lei 48/2007, de 28 de agosto, por forma a cumprir-se os comandos constitucionais».
A presente reclamação acaba por confirmar o bem fundado do decidido. Além de continuar a não identificar a norma que, afinal, constituiria o objeto do recurso de constitucionalidade interposto, é significativa de que o reclamante pretende a apreciação da decisão de indeferimento da reclamação do despacho de não admissão do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual são aplicáveis, ao caso, os artigos 400.º, n.º 1, alínea f), e 432.º, n.º 1, do Código de Processo Penal na redação da Lei n.º 48/2007, de 28 de agosto. Para o reclamante, ao não ser admitido este recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, foram violados os artigos 13.º, 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
A propósito da alusão que agora é feita a um “acórdão uniformizador” note-se que, não obstante ter reproduzido a jurisprudência fixada no Acórdão n.º 4/2009 no requerimento de interposição de recurso, o recorrente não chegou aí a identificar uma qualquer norma por referência a esta decisão do Supremo Tribunal de Justiça, sendo certo que o entendimento que dela se extrai foi seguido na decisão que confirmou a não admissão do recurso, com fundamento em irrecorribilidade (cf. fl. 143 dos presentes autos).
Em suma, há que confirmar a decisão sumária reclamada. O “Tribunal Constitucional português é concebido essencialmente como um órgão jurisdicional de controlo normativo – de controlo da constitucionalidade e da legalidade” (Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, Almedina, 2007 p. 29) – e não de controlo das decisões dos tribunais (artigos 280.º da Constituição e 70.º da LTC). É, por isso, manifestamente inconsistente a afirmação de que a decisão reclamada colide frontalmente com princípios e direitos constitucionalmente consagrados.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 20 de março de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.